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A Construção e a Elaboração do Sofrimento

A psicanálise utiliza a categoria mal-estar para designar o sofrimento subjetivo. Etimologicamente, o substantivo “mal” se refere a enfermidade, doença, infortúnio, aflição, tormento, sofrimento; o verbo “estar”, a ser, permanecer, existir. Mal-estar define-se como estar em sofrimento de forma contínua e intrínseca à existência do indivíduo. Caracteriza-se como uma sensação vaga, não localizada e idiossincrática de desconforto, um composto de sentimentos de tristeza, apatia, desencantamento, mágoa, aflição, insegurança, insatisfação, irritabilidade, ansiedade, introspecção — enfim, sentimentos negativos que de alguma maneira atrapalham a vida da pessoa. Na visão dos analistas entrevistados, a pessoa, quando chega à análise, está sofrendo, não suporta mais esse sofrer e, muitas vezes, não sabe quando e por que começou a sofrer, o que é esse sentimento, e procura aquela em busca de algo que sequer sabe nomear, “um mal-estar que não passa, não passou com remédio, não passou com

a roupa nova que comprou, não passou com a promoção que recebeu, com o presente que ganhou do namorado” (Beatriz). No entanto, esse mal-estar não serve exatamente como

categoria de “adoecimento” para a psicanálise lacaniana, é mais como um destino subjetivo estrutural à organização psíquica:

[...] na nossa leitura de um fenômeno, de um sintoma, o social estaria alocado no funcionamento estrutural; o mal-estar não é inato, ele foi constituído pelo laço social. Nada é um acidente de percurso, não é uma pedra no meio do caminho, como é no entendimento de um diagnóstico de depressão no campo médico e psicológico, como uma coisa que aparece como se fosse uma gripe e que você tem que eliminar ou com remédio ou com o tratamento para voltar a ter aquele bem- estar anterior, a saúde como um estado homogêneo, estável e que pode ser adquirido. Na psicanálise não existe essa noção de bem-estar. O ser humano é marcado exatamente por essa condição de conflito, ideia de ser a pessoa dividida em duas ordens de funcionamento conflitantes, que é a ordem consciente e a ordem inconsciente. O mal-estar faz parte da subjetividade. (Helena)

Ora, se o complexo de Édipo não pode ser universal, como já foi atestado pela antropologia, acredito que o mal-estar, enquanto estrutura, muito menos. A psicanálise lacaniana considera que a cultura exerce papel fundamental na determinação dos sofrimentos psíquicos — concepção que não lhe é singular no meio psiquiátrico. Com os protestos morais a favor da liberdade dos “loucos” dos asilos psiquiátricos, o tratamento dos distúrbios psíquicos ultrapassou os pressupostos médico-organicistas pelos quais se pautava e se estabeleceu um discurso sobre a natureza social dos mesmos, deslocando a análise clínica para a observação dos aspectos sociais e culturais da sua formação (CARDOSO, 1999).

Conforme explicou Ana, as pessoas chegam à clínica com os mais variados sintomas (anorexia, dificuldade sexual, dificuldades de relacionamento, por exemplo), mas são sempre queixas direcionadas ao outro. O que é considerado “patológico” é a incapacidade de reconhecer os próprios desejos, o que leva a problemas de relacionamento que resultam em angústia, desorientação e sentimento de falta de (re)conhecimento de si. O mal-estar se coloca como questão a ser resolvida pela pessoa, e advém de uma percepção negativa de diversos eventos e relações da vida cotidiana — e o que a psicanálise propõe é uma mudança no

posicionamento da pessoa ante os eventos e relações que lhe são fonte de sofrimento.

A categoria “sofrimento” costuma ser utilizada pelos indivíduos que demandam

análise em diferentes sentidos, como um “significante flutuante”, conforme apontado por

Lévi-Strauss, comportando significados que se movimentam entre os planos mais concretos e os mais abstratos (CAROSO; RODRIGUES, 1998). No plano concreto, diz respeito a fatos determinantes (morte de alguém próximo, rompimento de relacionamentos amorosos, perda do emprego, brigas com membros da família, etc.) e a somatizações (entre outras, dores físicas que não têm diagnóstico certo). No plano abstrato, encontramos elementos cognitivos referentes às experiências subjetivas, idiossincráticas. A própria narração do sofrimento, embora calcada em perspectivas genéricas, respalda-se num discurso específico, direcionado por fatores como relações pessoais, relações amorosas, situação econômica ou qualquer outro tipo de situação que origine desconforto e aflição para o indivíduo — e a noção de sofrimento faz alusão direta a uma trajetória, a uma história de vida. Os analisantes viam o sofrimento como algo intrínseco, mas involuntário, o que fazia que se sentissem impotentes diante de uma aflição existencial: “Eu estava perdido, desanimado, tinha acabado de terminar com

minha namorada, não sabia o que fazer pra sair desse desânimo. Sei que nunca vamos deixar de ter problemas, e a psicanálise me pareceu o caminho para entender por que estava me sentindo daquele jeito” (Fabrício).

Percebe-se como essa terapêutica, urbana por excelência, fornece as bases para a operacionalização e a incorporação, pelos analisantes, de mecanismos de pensamento que servem de explicação para as suas experiências subjetivas. Essas experiências acabam sendo tomadas como fontes de sofrimento, já que a análise aponta uma série de elementos relacionados em uma significação — “O mal-estar é isso, alguma coisa que faz mal à pessoa,

seja porque o namoro está uma inhaca e já é o terceiro namoro que está indo pro brejo; ou porque não consegue saber se casa ou não casa; a perda de alguém” (Beatriz). É como se a

de sua vida, caso das questões acerca do casamento e das demais relações afetivas; do relacionamento com os filhos, da possibilidade ou impossibilidade de tê-los; da escolha da profissão ou do posicionamento no trabalho; da relação familiar — enfim, esses aspectos específicos que remetem o indivíduo para “dentro de si mesmo”, para uma busca das próprias escolhas.

A noção de mal-estar aparece como uma antinomia entre aquilo que é vivido (as experiências cotidianas) e aquilo que é pensado, idealizado. A condição humana parece exigir a totalização dos sentidos, e o mito atua como um artifício metodológico produzido pela

análise para articular as experiências sensíveis e inteligíveis em uma mesma lógica de

pensamento. O mito filtra e organiza a experiência vivida enquanto função do intelecto, seja no pensamento ameríndio, seja no pensamento psicanalítico. A própria interpretação psicanalítica, baseada na construção de mitos individuais, remete à maneira como se podem englobar, em uma ordem de sentidos coerentes com a própria história do indivíduo narrada no interior da clínica, as experiências vividas.

4.4 Desejar o Próprio Desejo, o Mecanismo Psicanalítico de Individuação