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3.1 O Diagnóstico das Estruturas Clínicas

3.1.2 A elaboração do sintoma

Os sintomas, na psicanálise lacaniana, não se referem a algo perceptível pelos indivíduos e que indique a necessidade de procurar a terapêutica. São percepções que o indivíduo tem de si e dos eventos que lhe acometem determinadas pela análise como algo prejudicial, nunca a priori. São produções estritamente subjetivas, não há categorias sintomáticas em que se agrupam determinadas características pré-estabelecidas nem têm causação única, como explicou Helena:“Sintoma aqui [na psicanálise lacaniana] não é a

mesma coisa do sintoma médico; sintoma é efeito do inconsciente, uma coisa recalcada, que tem uma satisfação pulsional, só que faz a gente sofrer. É satisfação mas é sofrimento ao mesmo tempo”. Apesar de Helena afirmar que o sintoma não se refere à concepção médica, a

      

58 A disseminação das práticas de “cuidado de si” na tradição ocidental remonta ao período helenístico, em que

se evidenciam efetivamente práticas que pretendiam não apenas tornar melhor a vida dos indivíduos, mas incrementar a economia dos seus prazeres (FOUCAULT, 1985, p.49).

ideia de que ele é uma manifestação que pode ser observada e diagnosticada pelo analista não o afasta tanto dessa acepção.

De acordo com os psicanalistas entrevistados, Lacan afirma ser sua clínica “a clínica do real”. A instância do real caracteriza-se pelo que é impossível de ser simbolizado, mas que não cessa de se inscrever no inconsciente, permanecendo como experiência residual. O real se caracteriza como um centro de gravidade, ao redor do qual a ordem simbólica é condenada a circundar sem nunca ser capaz de apreendê-lo, como se fosse um caroço que a cadeia de

significantes é obrigada a contornar. O sintoma é, então, uma resposta ao real, e leva o

indivíduo a confrontar-se com o sem sentido, com esse ponto onde a palavra não consegue expressar, sendo fonte de sofrimentos psíquicos. A psicanálise não busca suprimir, mas captar esse sintoma pela fala, a fim de tornar o real simbolizável e mais suportável:

[...] parte do processo psicanalítico envolve claramente permitir a um analisando colocar em palavras aquilo que permanece não simbolizado para ele, verbalizar as experiências que podem ter ocorrido antes do analisando ter sido capaz de pensar sobre elas, falar delas, ou formulá-las de qualquer maneira que seja. [...] Ao conseguirmos que o analisando sonhe, tenha devaneios e fale por mais incoerente que seja sobre um ‘evento’ traumático, fazemos com que ele articule-o em palavras, criando relações com um número cada vez maior de significantes. (FINK, 1998, p.44-45)

O sintoma é estruturado pelas funções dos significantes em relação ao significado e está localizado na duplicidade entre o que é enunciado e o que se pretendia levar à enunciação; pertence à ordem da metáfora, já que se manifesta na substituição de um significante recalcado por um outro não recalcado. Em vez de buscar um significado para o

sintoma, a psicanálise lacaniana busca o significante, ou os efeitos do significante nos sintomas, e, com isso, a interpretação não cede lugar à significância, estabelecendo apenas um

deslocamento da técnica de sugestão do significado para o significante. A análise engendra, na fala dos analisantes, uma sobrecodificação de enunciados, cria relações entre termos, busca o significante, invocando uma ordenação da enunciação especificamente psicanalítica. O analisante assume uma fala passiva, e o sintoma se expressa no modo como esta é organizada e proferida enquanto expressão direta da manifestação do inconsciente. Ou seja, o

sujeito fala, mesmo que o “eu” da consciência não saiba, através dos gestos, dos tropeços, das

falhas, dos lapsos, do silêncio, das atitudes.

Segundo o que disseram os psicanalistas, enquanto outras abordagens tomam para si a responsabilidade de “corrigir” seus pacientes em relação à realidade, influenciando suas

crenças e entendimentos frente a diversos assuntos, a psicanálise lacaniana insiste em que o dever do analista é intervir no real do paciente, não na sua visão de realidade; é preciso levá- lo a simbolizar o real em vez de fornecer simbolizações prontas. O objetivo é fazer o

analisante falar, para que a partir daí possa estabelecer as significações. Entretanto, o analisante é levado a simbolizar de acordo com o direcionamento de significados fornecido

pelo analista, e não a partir de suas próprias conclusões:

A psicanálise não vai curar esse sintoma, o que ela vai fazer é buscar o que está por trás disso, o que está por trás desse funcionamento. Por exemplo, uma garota que vive se apaixonando, namorando, e todo namorado acaba traindo ela, com todos que ela se envolve é isso. O sintoma seria ela como vítima, sofredora, coitadinha. Você começa a ouvir, buscar o que está por trás disso. Aí ela fala que mexe no celular do namorado, vê que ele tem o telefone de ex-namoradas, você percebe que ela fica procurando alguma coisa, se torturando, porque não tem problema ter número de ex no telefone. A garota parece que fica demandando que o namorado a traia; ela fica cutucando, esperando que ele faça isso. Aí, quando ele faz: ‘Aí, tá vendo? isso de novo! Olha como eu sofro, eu não tenho sorte, homem não presta, tenho que ficar sozinha mesmo’. A psicanálise não vai fazer você pensar de outra forma, mas vai fazer você analisar porque sua insegurança é tão forte, tirar o foco do outro [...] a pessoa não se livra totalmente desse sintoma porque há um gozo nisso, há um ganho secundário em ser a coitadinha, sofredora, vítima. Por mais que ela sofra muito com isso, de algum jeito ela gosta e se aproveita dessa condição. A psicanálise vai mostrar pra ela por que ela faz isso, por que ela gosta de se fazer de vítima, coitadinha. Aí ela escolhe se quer mudar ou não, ela vê o que este gozo traz de benefício e de prejuízo. Aí a pessoa se posiciona. (Ana)

Essa responsabilização por seu sofrimento e a vontade que o analisante deve assumir para sair de uma posição vitimizadora de dependência do outro aparecem como atributos da noção individualista constituinte do pensamento psicanalítico, pois “Se a representação ‘psicológica’ traz em si a noção de indivíduo como um valor fundamental, o que se espera como ‘resultado’ positivo é o posicionamento e ação de acordo com os valores correspondentes” (SILVA, 2007, p.60). O sintoma, então, aparece como algo experienciado,

elaborado e construído ao longo das sessões, a partir da narração da história pessoal do analisante; é sobre ela que o sintoma adquire sentido. Muitas vezes, ele só descobre que

determinado comportamento ou sentimento é um sintoma que o faz sofrer após os

apontamentos do analista, o qual delineia a mobilização simbólica operada pelo processo

terapêutico na significação dos seus sentimentos.  

Considerar os sintomas como derivações de um conflito inconsciente remete à ideia de um conflito que diz respeito à impossibilidade moral de realização de um desejo que,

recalcado, permanece ativo na conduta do indivíduo. Isso implica a articulação de uma

ser compreendida em termos da aplicação de uma teoria, seja esta legítima ou não, em vista da descoberta de uma verdade pré-existente, mas sim em termos da produção de uma realidade subjetiva. Pode-se ainda afirmar, como Katz (1993, p.9), que “A psicanálise já não escutaria os sofrimentos, mas os elaboraria, estabelecendo a articulação do que os ordena e regula”. Conforme aponta Foucault, o profissional perito na escuta torna-se o “mestre da verdade”, um especialista do significado (DREYFUS; RABINOW, 1995). A crença nessa técnica revela a autoridade do analista, que consiste em levar o analisante a tomar tal técnica e as suas interpretações como se lhe fossem inerentes.