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1.1 Londrina e a Psicanálise Lacaniana

1.1.1 Détour historique

Para tornar mais clara a especificidade da abordagem lacaniana dos psicanalistas entrevistados, farei uma síntese histórica do campo psicanalítico francês entre as décadas de 1950 e 1980, fundamental para entender como se organiza a psicanálise lacaniana, suas especificidades em relação a ouras abordagens, e para mostrar as nuances e relações inerentes a esse sistema de pensamento em Londrina.

Em 1948, a Sociedade Psicanalítica de Paris, filiada à IPA, propôs que o reconhecimento de psicanalista fosse reservado aos médicos33, o que levou à crise o círculo psicanalítico francês, pois parte de seus membros defendia a admissão de filósofos e linguistas, entre outros profissionais — resultando em uma cisão, encabeçada por Daniel Lagache34 e Lacan. Estes fundaram, em 1953, a Sociedade Francesa de Psicanálise (SFP), que, no entanto, não conseguiu se filiar à IPA, por conta de “desvirtuações” no método psicanalítico proposto por Lacan, como a condução das sessões terapêuticas em tempo variável (em vez de fixo em cinquenta minutos) e a não exigência de cinco sessões semanais aos aspirantes a psicanalista. A SFP só seria reconhecida pela IPA caso Lacan deixasse de exercer o papel de analista-didata. Não cedendo a essa determinação, contra o sistema burocrático do modelo institucional e descontente com a leitura freudiana feita pelos membros da IPA, Lacan foi pressionado a sair da SFP em 1963, em razão da influência que exercia sobre uma nova geração de psicanalistas, o que ele fez35.

Em 1964, já com uma legião de seguidores, ouvintes de seus seminários na École Normale Supérieure (ENS), Lacan fundou a Escola Freudiana de Paris (EFP), que agregou       

33 A discussão acerca das relações entre medicina e psicanálise subsiste desde o surgimento desta última. Embora

Freud, em 1926, tenha negado taxativamente a necessidade de formação em medicina para a sua prática, alguns de seus colaboradores buscavam vincular medicina e psicanálise para infundir maior legitimidade e cientificidade à terapêutica. O embate entre os partidários e os não partidários dessa vinculação provocou dissensões e dissidências ao longo da história do movimento psicanalítico (RUSSO, 2002).

34 Daniel Lagache (1903-1972), psicanalista e psiquiatra francês, herdeiro de Pierre Janet na psicologia clínica e

introdutor da psicanálise na universidade, foi artífice da separação entre filosofia e psicologia, e defensor da síntese entre esta e a psicanálise. Lagache foi líder da corrente que defendia a análise leiga, permitindo o acesso de psicólogos à profissão de psicanalista (ROUDINESCO; PLON, 1998).

35 Segundo Roudinesco (2008a), o fato de o método lacaniano suspender a sessão arbitrariamente permitia a

Lacan aceitar todas as demandas de análise, ao passo que os colegas, que respeitavam as regras, estavam condenados a ter no divã duas ou três vezes menos alunos e pacientes que ele, o que reduzia consideravelmente a influência deles no interior da IPA. Para Lacan, a duração variável das sessões acompanha o ritmo do paciente; trata-se de “dialetizar a relação transferencial”, interrompendo a sessão em certas palavras significantes a fim de provocar a eclosão do desejo inconsciente. Enquanto estava na IPA, Lacan tinha, em média, quinze análises didáticas; se cada uma contasse com quatro sessões semanais de cinquenta minutos de duração, somadas às supervisões e à clientela particular, ele teria umas setenta horas de trabalho semanais, o que seria inviável. Daí a reprovação dos analistas filiados à IPA e o temor da influência crescente que Lacan exercia sobre os psicanalistas mais jovens.

filósofos, linguistas, artistas e psicólogos. Roudinesco (2008a) aponta como a principal diferença entre Lacan e os demais psicanalistas de sua geração o fato de aquele ter se envolvido com o movimento surrealista e, principalmente, ter convivido com Koyré, Corbyn, Kojéve, Bataille, Heidegger, Lévi-Strauss, Hypolitte, Ricoeur, Althusser, Derrida e Dalí, entre outros. Isso lhe permitiu iniciar-se numa tradição filosófica que passava pela leitura de Husserl, Nietzsche e Hegel, o que ia ao encontro de sua afirmação de que toda valorização do freudismo deveria passar por interrogações de cunho filosófico e antropológico.

Em 1980, descontente com a massificação do lacanismo e com o modelo burocrático assumido por sua própria instituição, Lacan anunciou a dissolução da EFP, e criou a Escola da Causa Freudiana. Ele morreu em 1981, deixando a direção da escola e o direito de edição de seus textos a Miller36. Este foi o responsável por uma leitura de Lacan sem pensá-la como mera (re)leitura da psicanálise de Freud, dando início a uma abordagem especificamente lacaniana da psicanálise. Tal modo de leitura de Lacan constitui uma das principais divergências no campo lacaniano, já que os “não millerianos” se afirmam freud-lacanianos justamente pelo reconhecimento da importância da leitura de Freud no exercício da psicanálise (ROUDINESCO, 2008a).

Na América do Sul, principalmente no Brasil, Argentina e Uruguai, a obra lacaniana suscitou interesse que se reforça incessantemente. A dissolução da EFP e, posteriormente, da ECF sob direção de Miller, teve consequências também nesses países, onde vários grupos cindiram e muitos outros foram criados. Esse é o cenário no qual se inscreve a abordagem psicanalítica e a clínica observada, a qual, embora não filiada formalmente a uma instituição, segue a “linha” promovida por Angela, membro da associação fundada por Charles Melman.

De acordo com Russo (2002), o lacanismo surgiu no Brasil na década de 1980 e rompeu o monopólio das sociedades vinculadas à IPA sobre o controle e a transmissão do título de psicanalista. Essa reorientação do meio psicanalítico brasileiro foi resultante da intensa demanda de profissionais não médicos pelo título de psicanalistas, comandada pelo

lacanismo:

Curiosamente, a proliferação de sociedades lacanianas ocorreu no Brasil como um todo [...], o que não aconteceu no período do monopólio das sociedades ‘oficiais’, nem mesmo na época de maior difusão da psicanálise. Essa       

36 Com o intuito de transmitir o lacanismo, Miller seguiu realizando outros seminários. Em 1992, criou a

Associação Mundial de Psicanálise (AMP) a fim de fazer avançar os ensinamentos de Lacan. A AMP cria escolas de transmissão e formação de psicanalistas em todo o mundo, e, em 2009, contava com mais de mil membros.

proliferação externa aos grandes centros, mas certamente dependente deles, pode ser explicada pela própria saturação do mercado psicanalítico nesses centros, o que provavelmente fez com que as novas sociedades e os novos psicanalistas buscassem adeptos fora do circuito Rio-São Paulo, intensificando o intercâmbio com grupos de outros estados e ampliando o mercado, não tanto da psicanálise em si, mas do treinamento psicanalítico. (RUSSO, 2002, p.50)37

Ainda segundo a autora, Belo Horizonte, Brasília, Curitiba, Fortaleza, Recife, São Luis e Vitória são cidades que, entre 1982 e 1990, fundaram instituições de formação lacaniana, descentralizando o “campo psi” para outras regiões e consolidando a difusão psicanalítica no país.