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Acesso à “Cultura Psi”: uma Atualização Etnográfica

De acordo com Carvalho (1995), na antropologia brasileira, alguns pesquisadores centram a análise sobre a psicanálise a partir de seu processo de difusão, o qual colocou como problema a compreensão das condições sociais e culturais que possibilitaram sua emergência. Entretanto, as explicações e análises da “cultura psi” encobrem, muitas vezes, a lógica interna de contextos locais com generalizações atreladas a reflexões sobre o processo de modernização da sociedade brasileira, o qual, devido à emergência de um ethos individualista, propiciou a ampla difusão da psicanálise como teoria e terapêutica. Assim, relegam a segundo plano a questão da mobilidade ideológica deste processo, que possibilita a não restrição de uma visão de mundo a certos segmentos das camadas médias e altas urbanas.

Velho (1986) afirma que na sociedade moderna o indivíduo tende a se pensar como a unidade básica significativa, a medida de todas as coisas, e que isso fica mais evidente nas camadas médias urbanas, que interiorizam e vivenciam prioritariamente a ideologia individualista. O termo “camadas médias urbanas” diz respeito a um estrato social com uma produção simbólica que fornece as indicações de um grupo específico, com um sistema próprio de comunicação, hábitos, costumes, visões de mundo, aspectos morais e valorativos, ou seja, constitui um estrato não só socioeconômico mas também cultural no interior dos

centros urbanos (VELHO, 1999). Com o boom psicanalítico no Brasil, nas décadas de 1960 e 1970, a psicanálise passou a ser um bem de consumo com o poder de dar prestígio ao seu consumidor (FIGUEIRA, 1988). Sua difusão atingiu as camadas médias urbanas, sendo constituinte de seu “estilo de vida”, fundamental no agenciamento de características específicas do seu ethos.

Na concepção de Velho (1999), quando se tratam de fenômenos psíquicos e emocionais, há um peso específico do segmento social que deve ser analisado. A expressão dos sentimentos e a linguagem utilizada para isso constituem diferencial fundamental entre um segmento social e outro — por exemplo, estar “deprimido”, para o autor, é uma noção vinculada às camadas médias (em decorrência de suas trajetórias e experiências delimitadas), que utilizam designações cujo sentido serve de demarcador de fronteiras sociais. Como a experiência individual constitui preocupação e tema central para as camadas médias, estas desenvolvem todo um vocabulário e um discurso cheio de matizes, diferentemente do que ocorre em estratos sociais inferiores.

Ainda de acordo com o autor, psicanalistas e psiquiatras têm dificuldades em lidar com indivíduos de classes diferentes da sua, pois, por mais que pretendam se basear em um saber oficial universal, com “padrões objetivos” de identificação de doenças, perturbações, neuroses, os “saberes psi” são balizados culturalmente. Suas referências, seus padrões de normalidade, sua avaliação de trajetórias e bem-estar pessoal estão inseridos em uma visão de mundo comprometida com certas noções associadas ao “individualismo burguês”. Dessa forma, Velho (1999) entende a psicanálise como uma experiência terapêutica restrita e pouco sensível à diversidade das experiências socioculturais, “especialmente com as camadas de baixa renda onde as religiões de possessão e outros sistemas de crenças ‘exóticos’, ligados a diferentes visões de mundo e ethos constituem barreiras muitas vezes intransponíveis” (VELHO, 1999, p.30). O ponto que quero ressaltar aqui não diz respeito às delimitações sociais da psicanálise em si, mas os estereótipos generalizantes ligados as expressões de sentimentos e categorias de sofrimentos operados pelas camadas baixas.

A psicanálise aparece, então, como agenciadora de um “estilo de vida” e de “modos de pensar” característicos de um ethos e um eidos individualizantes referentes a uma realidade psíquica e social que deu origem ao termo “cultura psi”. Nesse sentido, constitui-se como um esquema cultural que se serve de um acervo de elementos colados à experiência social capaz

de fazer proliferar e deslizar significações, “como uma linguagem reveladora por meio da qual a sociedade pensa, fala e age” (DUARTE, 2002, p.183).

Segundo Helena, grande parte dos seus pacientes tem dificuldade para pagar as

sessões, e há abertura para negociar o valor destas:

Se vier uma pessoa que não pode pagar o preço estipulado, mas se for interessada, comprometida, é possível a gente fazer abertura e adequar o preço ao que a pessoa pode pagar. [...] O preço que eu informo para quem chega aqui é o mesmo, mas isso não quer dizer que eu cobro o mesmo preço para todo mundo.

Na entrevista com a conselheira do CRP-08, ela explicou que os estudantes de psicologia estão sendo levados, cada vez mais, a fazer estágio em escolas públicas, postos de saúde, presídios, isso como resposta a uma mudança no reconhecimento do governo em relação à profissão de psicólogo, tomada agora como algo fundamental aos serviços sociais de auxílio à comunidade. Tanto é que o CFP nomeia esse processo de “boom da psicologia nas políticas públicas”, e este foi o tema que trabalhou em 2009. Segundo a conselheira, a psicologia deixou de ser uma prática elitizada, atendendo pessoas de qualquer idade e classe social. Esse acesso a atendimentos psicológicos, mesmo que de forma involuntária, pode acabar produzindo uma demanda por esta forma de terapêutica.

Em Londrina existem duas clínicas-escola de psicologia — uma na UEL e uma na Unifil —, que realizam atendimento clínico gratuito para qualquer pessoa. Além disso, no HU da UEL também há atendimento psicológico gratuito. Helena, que já trabalhou no atendimento psicológico desse hospital, contou que “há pacientes no ambulatório que fazem

um trabalho analítico surpreendente, sem pagar; tem pessoas na clínica-escola que fazem trabalhos excelentes mesmo com alunos que estão atendendo pela primeira vez. A pessoa tem tanto afã que a coisa vai pra frente”. Afirmou que não há diferença entre o atendimento de

uma pessoa que busca a clínica particular e uma que procura o atendimento clínico institucional, nem no sofrimento de ambas — “todo mundo sofre da mesma coisa”. No atendimento institucional há, geralmente, a indicação de um médico ou de escolas: “Mas o

médico indicou e ela foi. Teve que enfrentar uma fila imensa para poder marcar a consulta, mas foi. Alguma coisa ela quer com esse atendimento”. No entanto, nas clínicas-escola as

pessoas vão, inclusive, “por vontade própria”: “vão porque estão sofrendo e buscam um

atendimento psicológico, e como não podem pagar por uma clínica particular, fazem uso da clínica-escola”.

Em etnografia realizada em uma comunidade de pescadores no litoral do estado do Rio de Janeiro, Duarte (1986) aponta que a expressão “doença dos nervos” era usada pelos nativos para cobrir diferentes estados emocionais de sofrimento psíquico, ordenados sobre valores e princípios próprios, referentes a uma noção hierárquica e holista de pessoa, de onde o autor infere que as “classes trabalhadoras” estão distantes das representações “psicologizadas” impostas pelo atendimento público psiquiátrico. Já Silva (2007), que etnografou um programa de atendimento e pesquisa à somatização ligado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), diz que os psiquiatras, inclinados à psicanálise, acreditavam que a “somatização”38 nas pessoas de baixa renda seria reflexo da falta de consciência da causa psicológica e da incapacidade de “simbolização”, de expressão das emoções e afetos pela palavra. Segundo o autor, esses psicanalistas estabeleceram um “‘status’ diferenciado e até mesmo inferiorizado de capacidade humana de ‘simbolização’ e ‘expressão dos afetos’, por conta de um ‘psiquismo muito arcaico’” (SILVA, 2007, p.57).

Acredito que se há diferenças importantes entre o atendimento psicológico clínico particular e o atendimento público psiquiátrico em hospitais: no primeiro a pessoa procura um atendimento clínico espontaneamente; no segundo caso, não há uma demanda específica pelos indivíduos por atendimento psicológico ou psiquiátrico, esta forma de entendimento sobre os sofrimentos e perturbações de que as pessoas são acometidas se da de forma mais impositiva, gerando dificuldades e incongruência na comunicação entre médicos e pacientes (CARDOSO, 1999; DUARTE, 1986). Todavia, a “cultura psi” no Brasil, por meio das políticas públicas e da proliferação de conteúdos psi nos meios de comunicação, se expandiu e se atualiza de maneira específica em diversos estratos sociais. As imposições de modelos de subjetividade e a relação unilateral que caracteriza o sistema terapêutico permanecem em sua estrutura, a forma é a mesma, o que muda são os atores envolvidos e as ressignificações que se faz dos aparatos terapêuticos mobilizados. Assim, o acesso à “cultura psi” parece não mais se limitar à renda, aos aspectos sociológicos de divisão em classes. A questão está no plano ideológico, são os mesmos valores e planos de significação do sofrimento psíquico e concepção de si que estão envolvidos, mas os conteúdos são re-significados de forma específica por cada grupo social.

      

38 Segundo Silva (2007, p.40-41), “a ‘somatização’ não seria nem propriamente uma ‘doença’ ou uma categoria

diagnóstica, mas um processo de deslocamento para o corpo de algo que seria próprio de outro âmbito, do ‘psicológico’ ou ‘emocional’”.

O ponto tomado como diferenciador na antropologia, em termos culturais, entre classes sociais, se refere à noção de pessoa, a partir da qual se defende uma relação de oposição entre individualismo/camadas médias e holismo/classes trabalhadoras, como se esses dois universos, não apenas por motivos econômicos, mas devido a diferenças de experiências socioculturais, vivenciassem e representassem essa noção e as relações sociais diferente e antagonicamente. Dumont não descarta tensões internas entre sistemas holistas e sistemas individualistas decorrentes da dinâmica complexa do princípio da hierarquia em confronto com forças sociais individualizantes — conforme o autor, nas sociedades modernas a vigência do princípio de hierarquia não se interrompe, resultando em uma série de efeitos ideológicos fundamentais (LANNA, 1995). A ênfase no indivíduo, enquanto valor ideológico, parece estar presente entre indivíduos de camadas baixas, tanto quanto a organização hierarquica em camadas médias e altas.

Meu campo mostrou que há assimilação das representações psicológicas acerca do sofrimento e de suas formas de resolução por indivíduos que, se socialmente podem ser categorizados como de camadas baixas, cultural e ideológicamente compartilham de um mesmo sistema de pensamento das camadas médias e altas intelectualizadas. Quando falo em uma atualização da noção de “limites sociais e culturais” da demanda e da prática analíticas, não pretendo ratificar a hegemonia e a universalidade desse modelo terapêutico e dos conceitos de “psíquico”, “inconsciente”, etc. O que observei em relação ao atendimento clínico particular é que há uma noção de pessoa, uma visão de mundo e uma percepção de causalidades psicológicas que diz respeito a um plano cultural que apresenta diferentes experiências sociais com conteúdos específicos para uma mesma ideologia individualista. Percebi que a psicanálise, enquanto método psicoterapêutico voltado à constituição e à valoração da individualidade, expandiu-se para além do universo das camadas médias urbanas.

Em Londrina, por conta do alto fluxo de psicólogos na cidade, grande percentual de clínicas montadas por recém-formados que possibilita o acesso de uma clientela potencial justamente de pessoas de baixa renda que demandam tratamento psicológico, já que, em início de carreira, há psicólogos que chegam a cobrar menos de dez reais a sessão. O campo semântico constituído por categorias nosológicas como depressão, síndrome do pânico e

obsessão, por exemplo, são incorporadas à experiência como fatores explicativos de emoções,

sentimentos e sofrimentos subjetivos. Apesar de haver, no discurso dos psicanalistas, o pressuposto de que os seres humanos são “psíquicos” por natureza, ou seja, que a

verbalização numa linguagem psicologizada é algo natural e conduta saudável, e não resultado do processo imposto histórico e culturalmente a favor de mecanismos de individualização e psicologização, o acesso à “psicologização” já não é “privilégio” das camadas sociais mais elevadas, reafirmando os “saberes psi” dentro de uma lógica cultural mais ampla, sem restringir-se a aspectos socioeconômicos.

Diversas análises recentes apontam para a descentralização, a diversificação e a complexificação da oferta psicoterapêutica. Duarte e Carvalho (2009) analisaram as recentes mediações existentes entre as religiões evangélicas e pentecostais e a psicanálise (ou os saberes psicológicos), consideradas como variações de uma cultura psicologizada. Há outros trabalhos que ressaltam a importância de analisar as especificidades existentes em relação às “terapias alternativas”, afirmando haver um deslocamento do modelo individualista de pessoa para a demanda de práticas holistas de terapêutica (MALUF, 1999).

As noções psicologizadas acerca do sofrimento psíquico problematizam a questão da designação de limites culturais fortemente marcados entre segmentos sociais nos centros urbanos. Transformações podem estar ocorrendo, mas, infelizmente, uma análise mais aprofundada desses processos mereceria uma atenção muito maior que o limite desse trabalho me possibilita. Ainda assim, considero necessário e importante pesquisas que revelem esse processo de atualização conceitual sobre o que se entende como “cultura psi” no Brasil.