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3.2 Transferência, Neutralidade e Sugestão

3.2.1 Analista versus analisante

Os psicanalistas afirmaram que sentem raiva, cansaço, sono, desprezo, cheiros; que se impressionam, têm vontade de rir e de chorar ao longo de uma sessão. No entanto, se se dispusessem a responder a todos esses estímulos, expressando sua subjetividade a todo

analisante que atendem ao longo do dia, acabariam “enlouquecendo”. Pode-se dizer que um

dos aspectos do ofício do psicanalista é ser convocado por um turbilhão de emoções e sentimentos durante uma sessão, devendo, simultaneamente, analisar seus sentimentos, apreender o que suscita tais reações de sua parte na fala do analisante e relacioná-las com a

transferência estabelecida por este. Convenhamos, tarefa similar à dos feiticeiros, xamãs e

dos demais ritos mágicos. Como afirma Lévi-Strauss (2003h), o xamã é quem realiza a ab-

reação em sua prática terapêutica, revivendo efetivamente o infortúnio do doente em toda a

sua vivacidade, originalidade e violência, depois retornando ao estado normal. No entanto, na psicanálise, embora o analista não faça ab-reação concomitantemente ao analisante, esta não deixa de ser exigida, já que é necessário ter sido analisado para se tornar analista. No setting

analítico, o analisante deve se mostrar por completo, “como se estivesse nu”, em uma relação

de intimidade escancarada, confiando na discrição e imparcialidade daquele que o escuta. Elementos como confiança e imparcialidade projetados no analista constituem a própria

transferência: “Se há transferência analítica, vai haver essa confiança, para que a pessoa possa apostar nesse tratamento, falar de suas coisas” (Helena). Os sentimentos dirigidos à

figura do analista são difíceis de ser caracterizados e generalizados, pois o modo como o

analisante apreende sua relação com ele se dá de maneira singularizar e se refere ao que é trabalhado na terapêutica. Entretanto, os analisantes relataram sentir, pelo analista, ódio,

desprezo, amor, admiração, etc. O paciente, por conta de uma “intimidade” escancarada nas

sessões, se vê imerso em inúmeras visualizações acerca da figura do analista: observa suas

expressões corporais, o tom da sua voz, a roupa que veste, como arruma o cabelo. Tece um imaginário acerca da vida daquele que fica a escutar suas mais íntimas revelações. Por conta disso, pode haver o receio de encontrar o analista fora da clínica, como se houvesse distinção entre a figura do analista e a sua realidade enquanto pessoa:

[...] é estranho, você tem que separar as coisas, mas eu não consigo muito, não. Você fala de coisas difíceis, e eu ignoro que ele é uma pessoa, eu quero que ele seja aquilo que eu coloco nele: não é ser humano comum, não espirra. Uma vez meu analista espirrou, eu fiquei chocada, levei o maior susto [risos]. Eu sonho com a casa dele, umas coisas assim, sabe? Preciso naturalizar essa relação. (Adriana, 22 anos, estudante de psicologia, analisante há um ano)

Eu faço análise com uma pessoa que eu não tenho o menor contato fora da clínica. Eu brinco dizendo que ela só existe dentro da clínica. Se eu ver ela com bolsa já vou achar estranho, porque pra mim ela não sai de lá, tá sempre com a mesma roupa, dentro da clínica. [...] é muito estranho quando você encontra fora da clínica, porque daí você não vê só como analista, e parece que a pessoa já sabe tanto da sua vida, você fala uns absurdos pra ela e ela tá ali, convivendo no mesmo meio social. Aí você pensa: ‘Será que ela conhece alguém que eu conheço?’; ‘Será que ela fala de mim pra outras pessoas?’. Isso cria mil fantasias na sua cabeça: você fica pensando como ela vive, se é casada ou não, se ela tem problemas como os seus, e, em alguns momentos na análise, quando o analista muda o tom de voz, você acha que ele tá bravo mesmo com você. Eu, às vezes imagino que posso ter mexido com ela de algum jeito. Por isso que análise não funciona se você for amigo da pessoa. Sair e tomar uma cerveja, nem pensar! [...] eu falei o negócio da bolsa porque uma vez eu estava dentro de uma sala de aula, na UEL, e minha psicanalista passou pela porta com uma bolsa, e eu achei super estranho ela ali, de bolsa, na UEL, tipo ‘O que ela tá fazendo aqui?’. Fiquei transtornada na hora, uma coisa que você sente no corpo. Ainda bem que só vi ela passando, não dei de cara, graças a Deus! (Rosana, 25 anos, psicóloga, analisante há mais ou menos dez anos)

Segundo os analistas, a questão de uma proximidade, ou não, entre analista e

analisante fora da clínica é algo relativo, depende mais da reação do analisante que do analista, pois este sabe manter certo distanciamento quando necessário. Como explicou

Valter, “o analista não estabelece uma relação com o paciente, mas com seu inconsciente”. Helena falou que quando sai da clínica já não lembra do que foi falado ali, que dificilmente fica com a sessão de um paciente na cabeça; caso contrário, acabaria ficando “louca”, não conseguiria mais trabalhar, cuidar de sua família: “O difícil é desenvolver essa habilidade,

porque depois não é um esforço, é uma habilidade que você acaba desenvolvendo”.

A posição de humildade em que os analistas se colocam diante do saber de sua prática parece se impor como lógica que reafirma a submissão que o analisante deve assumir frente a esse saber. Para Chertok e Stengers (1993), o inconsciente psicanalítico serve como escudo erguido por uma profissão contra uma questão que se impõe desde seu surgimento: a de que a

transferência seria uma nova prática de sugestão, pois o inconsciente, nas condições

específicas em que é criado na prática analítica, permite ao analista postular uma diferença entre a interpretação arbitrária da sugestão e uma interpretação que atinja as razões dessa

instância “desconhecida”. Segundo Russo (1980), o próprio critério de terapêutica implica, por si só, atitude normativa. A interpretação do inconsciente, além de retrospectiva, é prospectiva, ou seja, o fato de tomar consciência do passado configura linhas possíveis de atitudes e atuações futuras. A psicanálise é um sistema de pensamento que se utiliza de um conjunto sistematizado de representações, implicando uma perspectiva determinada sobre o mundo a partir de diretrizes da ação e dos valores que regem a conduta.

Ao destituir a verdade da posse do “eu”, as críticas, hesitações e indiferenças acerca da “verdade” apontada pelo analista se submetem ao estatuto de resistências ao que é preciso aceitar. Assim, os pilares fundamentais da psicanálise encontram-se na transferência e na

resistência, que legitimam a posição de autoridade do analista na relação terapêutica, pois ele

possui o controle, e autocontrole, sobre todo sentimento que se evoca ao longo da sessão. A astúcia do saber psicanalítico frente a outras psicoterapias foi tomar essa peculiar relação entre paciente e psicanalista como material subjetivo a ser observado e manipulado no procedimento terapêutico — o que garante sua legitimidade, já que a relação envolve apenas duas pessoas e somente elas podem saber o que de fato acontece em uma sessão.