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2. MARCO TEÓRICO

2.2. A Sociedade Civil: Categoria Determinante na Garantia do Efetivo Direito de Acesso à

2.2.1. A Construção Histórica do Conceito de Sociedade Civil

O conceito de sociedade civil é utilizado em diferentes acepções por organizações governamentais, veículos de imprensa e acadêmicos e reflete um momento histórico-cultural, uma contingência do período em que foi formulado e, principalmente, um posicionamento político de seus autores, decorrente de suas interlocuções com outros pensadores e de suas experiências concretas de vida. Nessa seção, discuto as contribuições dos principais pensadores que historicamente produziram o conceito de sociedade civil e apresento alguns posicionamentos de autores que não se preocuparam essencialmente com o debate sobre a sociedade civil (Maquivel, Adam Smith, John Stuart Mills), mas suas formulações teóricas são fundamentais para a compreensão do modo de pensar e de agir da sociedade, ao longo da história.

A discussão sobre a categoria sociedade civil remonta a Aristóteles, o qual preconizava que não se deveria permitir a todos os seres humanos a participação na atividade

política. No sistema idealizado por ele, as mulheres, os escravos e os estrangeiros eram excluídos do direito de governarem a si mesmos e aos outros. Entendia, entretanto, a sociedade pela lógica da polis, segundo o qual os humanos tinham uma tendência natural a formar unidades sociais (família, vilas, cidades), com vistas a viver uma “vida digna” 24. Nesse contexto, a sociedade civil tinha a acepção de uma “comunidade pública ético-política, possuidora de um ethos compartilhado pelos membros que a constituem” (GOHN, 2005). Nesse contexto, não há uma preocupação específica com o indivíduo, pois este só é pensado em sua associação com a Polis.

O pensador italiano Nicolau Maquiavel estudou a sociedade pela análise efetiva dos fatos humanos, desprendendo-se das explicações teológicas ou metafísicas. Para ele, a sociedade é constituída por homens de natureza ambígua, contraditória que querem não ser dominados enquanto o Estado os pretende dominar. Para Maquiavel, os homens não são, como se pensava até então, devotados essencialmente ao bem: “os homens são todos egoístas e ambiciosos, só recuando da prática do mal quando coagidos pela força da lei. Os desejos e as paixões seriam os mesmos em todas as cidades e em todos os povos" (MAQUIAVEL, 1999).

Os argumentos de Aristóteles constituíram o ponto de partida para que os filósofos Hobbes, Locke e Rousseau examinassem as condições sob as quais os seres humanos poderiam escapar do “estado de natureza”, no qual não havia estabilidade, a segurança não era garantida e não havia diferenças significativas entre um homem e outro; vivia-se então, sem sociedade civil, em um constante estado de guerra, cuja vida era “solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta” (HOBBES, 1992). Nesse contexto, em que as adversidades comprometiam a sobrevivência e a liberdade era uma preocupação secundária, começou-se a discutir a ideia de que os indivíduos deveriam agir coletivamente e entregar suas armas a um Estado soberano, com vistas a ingressar em uma forma contratual de governo baseada na lei, dando início à denominada teoria contratualista da sociedade civil.

Thomas Hobbes partiu do entendimento de que “não há razão para que qualquer homem, confiando em sua própria força, deva se conceber feito, por natureza, superior a outrem” (HOBBES, 1992, P. 358) e buscou estabelecer uma diferenciação entre o estado de natureza e a sociedade civil a fim de justificar sua teoria política do “Leviatã”, segundo a qual a guerra de todos contra todos, que inviabiliza a existência de comércio, indústria ou

24 Para Aristóteles agir bem acarretaria felicidade, compreendendo-se que ser feliz corresponde à realização de

si; ou a tradução da potência em ato: vida digna, vida do bem, autenticidade e ponderação (VENTÓS, 1996, p.58).

civilização, só poderia ser superada pela constituição de um governo central e autoritário, que agiria como uma espécie de monstro (Leviatã) e concentraria todo o poder em torno de si, com vistas ao alcance da estabilidade e da paz. Para Hobbes, somente governo com poder indivisível e ilimitado poderiam prevenir outra forma inevitável de desintegração da sociedade, como a guerra civil.

Para o liberal John Locke, as pessoas têm direitos naturais e se juntam a uma sociedade política para serem protegidas pelo estado de direito. Já o governo deveria proteger a propriedade privada das pessoas, manter a paz, garantir mercadorias comuns para todo o povo e, o tanto quanto possível, proteger os cidadãos contra invasões estrangeiras. Dessa forma, a categoria sociedade civil é confundida com o direito à propriedade privada. Influenciado pelo início do capitalismo agrário apregoava que todos eram iguais, e a cada um deveria ser permitido agir livremente desde que não prejudicasse nenhum outro. Declarava que o mundo natural era propriedade comum de todos, mas que qualquer indivíduo poderia apropriar-se de uma parte dele, se acrescentasse seu trabalho aos recursos naturais. (LOCKE, 1978)

O filósofo e pensador francês Jean-Jacques Rousseau avançou na compreensão de como a política operaria na era moderna e, consequentemente, no papel da sociedade civilnessa nova concepção política. Vislumbrava a soberania sendo investida nas assembleias populares capazes de delegar as tarefas de governo para um poder executivo. Discordando dos pensadores contemporâneos que defendiam governos despotistas, Rousseau (1999) argumentava que a verdadeira soberania não podia ser dividida, nem submetida à limitação constitucional e que essa só existia a partir do povo. Sua obra de referência O Contrato Social propõe que todos os homens façam um novo acordo, no qual as pessoas abrem mão de certos direitos em favor de um conjunto de regras, de um regime político ou de um governante, a fim de obter as vantagens da ordem social.

Na leitura dos autores clássicos destaco a aproximação dos conceitos de sociedade civil com o próprio conceito de Estado. No primeiro momento, sociedade civil assume o significado de superação do “estado de natureza”; posteriormente se coloca como um novo estágio do governo e da civilidade humana, na qual é possível o debate racional das questões que envolvem a sociedade, uma vez que requisitos mínimos de autonomia individual, confiança entre as pessoas, cordialidade e controle da violência foram estabelecidos. Neste debate ainda imaturo histórico-culturalmente, no qual a escravidão era naturalizada e déspotas admirados, a preocupação com a participação de pessoas concretas no debate das questões de

Estado praticamente inexistiu, exceto pela contribuição de Rousseau que ressignificou a categoria de sociedade civil.

Em contradição, e rompendo coma evolução do pensar sobre a sociedade civil formulado por Rousseau, Adam Smith, o mais importante teórico do liberalismo25 econômico, defendeu que a riqueza das nações resulta da atuação de indivíduos que, movidos pelo seu próprio interesse, promove o crescimento econômico e a inovação tecnológica. Ele enfatizou que uma divisão apropriada da mão de obra pela sociedade, com cada pessoa se especializando naquilo que sabe fazer melhor, seria a melhor maneira de aumentar a produtividade e a riqueza de uma nação. Nesse contexto, um mercado livre produzirá bens na quantidade e no preço que a sociedade espera. Recuperando as palavras de Adam Smith:

Ora, a renda anual de cada sociedade é sempre exatamente igual ao valor de troca da produção total anual de sua atividade, ou, mais precisamente, equivale ao citado valor de troca. Portanto, já que cada indivíduo procura, na medida do possível, empregar seu capital em fomentar a atividade nacional e dirigir de tal maneira essa atividade que seu produto tenha o máximo valor possível, cada indivíduo necessariamente se esforça por aumentar ao máximo possível a renda anual da sociedade. Geralmente, na realidade, ele não tenciona promover o interesse público nem sabe até que ponto o está promovendo. Ao preferir fomentar a atividade do país e não de outros países, ele tem em vista apenas sua própria segurança; e orientando sua atividade de tal maneira que sua produção possa ser de maior valor, visa apenas seu próprio ganho e, neste, como em muitos outros casos, é levado como que por uma mão invisível a promover um objetivo que não fazia parte de suas intenções. Aliás, nem sempre é pior para a sociedade que esse objetivo não faça parte das intenções do indivíduo. Ao perseguir seus próprios interesses, o indivíduo muitas vezes promove o interesse da sociedade muito mais eficazmente do que quando tenciona realmente promovê-lo. (SMITH, 1981, P. 456)

A naturalização do indivíduo isolado e autônomo inserida na teoria de Adam Smith foi fortemente rechaçada por Karl Marx. Para ele o caçador e o pescador individuais e isolados, ou “Robinson adas”, de modo algum expressam uma mera reação contra o excesso de sofisticação e um retorno a uma vida natural mal compreendida, como imaginam os historiadores da cultura, trata-se, na verdade, de uma antecipação da ‘sociedade civil’, em preparação desde o século XVI e que caminha a passos largos para a maturidade no século XVIII. Na visão crítica de Marx a fórmula teórica de Adam Smith era absurda:

Somente no século XVIII, na ‘sociedade civil’, as várias formas de conectividade social confrontam os indivíduos como um mero meio para realizar seus interesses privados, como necessidade externa. Mas a época que produz esse ponto de vista, o ponto de vista do indivíduo isolado, é

25O liberalismo é uma doutrina do Estado limitado tanto com respeito aos seus poderes quanto às suas funções. A

noção corrente que serve para representar o primeiro é Estado de Direito; a noção corrente para representar o segundo é Estado mínimo. (BOBBIO, 1988, P. 17).

precisa e igualmente a época de maior desenvolvimento das relações sociais (e, deste ponto de vista, universais). O ser humano é, no sentido mais literal, um animal político, não apenas um animal gregário, mas um animal que pode se individualizar apenas em sociedade. A produção por um indivíduo isolado… é uma absurdidade tão grande quanto o desenvolvimento da linguagem sem indivíduos vivendo juntos e falando uns com os outros. (MARX, 1977, P.84, apud DUAYER,2001, P.18).

Ampliando o leque de teses liberais a favor da propriedade e do mercado, John Stuart Mill (1963), argumentou que a individualidade é o alicerce de uma sociedade saudável. O individuo é soberano sobre si mesmo, sobre seu próprio corpo e mente e, portanto, deve ser livre para pensar, expressar suas opiniões e agir. Dessa forma, a liberdade de viver segundo gostos e objetivos individuais, desde que não cause danos a outros na sociedade; e de associação entre os indivíduos para quaisquer fins não prejudiciais, desde que não haja coerção dos membros, seriam fundamentais para a construção de uma sociedade saudável, na qual a propriedade é o motor de mudança da história da humanidade. A ausência dessas liberdades individuais, ao contrário, restringiria o conhecimento humano e a inovação, essenciais à evolução da sociedade.

Nesse contexto, percebo que a teoria liberal procura migrar o debate sobre sociedade civil da esfera política para a esfera econômica, pois a sociedade civil, antes considerada sinônimo de Estado, passa a ser identificada como a sociedade de mercado capitalista, na qual somente a divisão do trabalho e a extensão do comércio podem gerar estabilidade e prosperidade. Essa compreensão decorre do redimensionamento do debate sobre sociedade civil, engendrado pelos teóricos liberais, à medida que agregam ao seu conceito as categorias ligadas umbilicalmente ao capitalismo (propriedade privada, divisão de trabalho, troca de mercadorias). Nessa visão egocêntrica, busca-se constantemente a fragmentação da identidade e da noção de pertencimento social dos indivíduos, enquanto valores como solidariedade, ética e humanismo não têm lugar e situações de pobreza absoluta são naturalizadas.

Em outro momento histórico, a filosofia alemã imprime uma reviravolta na concepção de sociedade civil. Em primeiro lugar, na visão do filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel; posteriormente, no pensamento de Marx, cujas ideias críticas e inovadoras contribuíram para o enriquecimento do debate, pois abordam as organizações sociais como elementos entre o Estado e os indivíduos.

Em Hegel, a sociedade civil é formada por comunidades e corporações que desempenham um papel normativo e sociológico fundamental na relação entres os indivíduos e o Estado, porém essas associações continuam subordinadas aos interesses universais do Estado racional. Para o filosofo, a interação sociedade civil-Estado dependia de três

condicionantes: um “sistema de necessidades”, ou de maneira mais ampla, a economia, tendo como referência os ensinamentos de Adam Smith; uma “administração da justiça”, que protege a propriedade como a fonte de liberdade individual, inspirada em John Locke; e a “polícia e a corporação” como reguladores das duas esferas precedentes, condicionante inovadora da teoria hegeliana. (HEGEL, 1998). O reconhecimento da importância das associações independentes como componentes fundamentais da sociedade civil que desempenham o papel de mediadoras entre os indivíduos e o Estado e a centralidade dos indivíduos conscientes e reflexivos na construção da sociedade civil moderna são as marcas fundamentais da teoria formulada por Hegel.

Já Karl Marx parte do entendimento de que as relações sociais de poder são definidas pela emergência de duas classes antagônicas: burguesia e proletariado, cuja existência remonta a uma organização particular da produção: o capitalismo. Na visão de Marx, a sociedade civil compreende toda a vida comercial e industrial numa etapa, e nesta medida transcende o Estado e a nação, embora, por outro lado tenha de se fazer valer em relação ao exterior como nacionalidade e de se articular como Estado em relação ao interior (MARX; ENGEL, 1974).

Norberto Bobbio explica que na concepção marxiana, a sociedade civil é anterior e determinante da estrutura do Estado, pois, para Marx, é a história da produção social dos homens que determina a estrutura do Estado. Marx percebeu que em momento algum o Estado foi o representante dos interesses coletivos, ao contrário, o Estado foi sempre aquilo que já havia denunciado Rousseau, um instrumento nas mãos de um determinado grupo social, usado para conquistar e manter determinados privilégios. (BOBBIO, 1994).

Nas explicações de Bobbio, esta dimensão de Estado marca a separação da sociedade civil com o Estado: este está acima dela e, embora por ela determinado, tem um grau de independência que lhe permite fixar regras e leis de modo a perpetuar essa mesma sociedade civil, mantendo os privilégios e infortúnios desta dada organização social. Para Marx, o Estado não supera a sociedade civil, sendo um reflexo desta. Numa abordagem crítica, o Estado contém a sociedade civil com o objetivo de mantê-la como ela é.