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1. CARACTERÍSTICAS E CONTRADIÇÕES DO OBJETO DE PESQUISA: A LEI DE

1.4. A Lei de Acesso à Informação no Brasil

1.4.3. Características e Contradições Relevantes da Lei de Acesso à Informação

Após 23 anos da promulgação da Constituição Federal de 1988, o Brasil deu um passo importante para o recrudescimento da democracia com a edição da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, denominada da Lei de Acesso à Informação. Tal instrumento legal regulamenta o artigo 5º, inciso XXXIII da Carta Política de 1988, que garante ao cidadão o direito de acesso à informação e cumpre compromissos assumidos pelo país consignados em vários tratados e convenções internacionais. A LAI não é inovadora, pois o direito de acesso à informação já estava previsto na Constituição Federal. É, sim, um acontecimento relevante para a democracia, pois tira o acesso à informação do plano da proclamação e o coloca no da efetivação do direito.

De acordo com o artigo 3º da lei, os procedimentos previstos destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes: observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção; divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações; utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da informação; fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na administração pública; desenvolvimento do controle social da administração pública.

Nessa contextura, a LAI criou mecanismos de transparência ativa - divulgação espontânea de informações públicas, independentemente de solicitação - e transparência passiva - disponibilização de informações públicas em atendimento a demanda cidadã - estabeleceu procedimentos para eventuais restrições de acesso e definiu as responsabilidades dos agentes públicos, civis ou militares, por possíveis violações ao direito de acesso à informação pública.

É importante ter claro que a LAI regulamenta o direito de acesso às informações públicas, e não somente a documentos públicos. Portanto, o acesso da sociedade não está restrito a informações contidas em documentos registrados e formalmente identificados, tais como ofícios, memorandos, relatórios, processos ou atas de reunião, mas abrange também quaisquer dados e informações que possam ser úteis para a produção e transmissão de conhecimento, contidos em planilhas, gráficos, documentos físicos, eletrônicos, digitalizados, vídeos, áudios, etc. independente de registro em sistemas de protocolo.

A Lei de Acesso à Informação também se presta como instrumento de enfrentamento a um paradigma secular – oriundo do patrimonialismo: “a cultura do segredo”. Por essa ótica,

a circulação de informações representa riscos para o Estado; os dados podem ser utilizados indevidamente por grupos de interesse; a chefia é responsável por decidir pela liberação ou não da informação. Em contraponto, a LAI estabelece como diretriz principal “a cultura de acesso” na qual os agentes públicos têm consciência de que a informação pública pertence ao cidadão, pois esse financia as atividades estatais, e que cabe ao Estado provê-la de forma tempestiva e compreensível e atender eficazmente às demandas da sociedade, formando, assim, um ciclo virtuoso.

Abrir um canal eficaz para que a sociedade conheça efetivamente o que os governos fazem é um dos objetivos centrais da lei. Nos casos em que há informação suficiente, é possível analisar criticamente os números apresentados pelo governo e a metodologia utilizada para a elaboração dos dados divulgados, essencial para a mensuração do resultado de políticas públicas. Isto porque há, sempre, o risco de o governo utilizar metodologias questionáveis com o objetivo de superdimensionar os resultados de suas políticas públicas. Nesse sentido, Lopes (2007) lembra que a manipulação de dados divulgados por governos com o intuito de fazer com que seus resultados pareçam melhores do que realmente são é algo bastante comum em democracias, mesmos nas mais consolidadas.

A despeito de sua importância para o robustecimento da cidadania, em especial no que concerne à possibilidade de aprimoramento do exercício do controle democrático das políticas públicas, a Lei de Acesso à Informação traz em seu bojo algumas vulnerabilidades, que expõem suas contradições e colocam em risco o alcance da efetiva democratização das informações públicas.

Sobressalta-se, nesse contexto, o afastamento da sociedade civil do controle democrático da LAI, pois as quatro instâncias (Secretário de Governo, Ministro de Estado, CGU e Comissão Mista de Reavaliação de Informações) criadas para que o cidadão possa interpor recurso sobre eventual indeferimento ou negativa a sua demanda por informação, são formadas exclusivamente por agentes públicos (art. 16). Da mesma forma, na Comissão Permanente de Avaliação de Documentos Sigilosos (CPADS) não há representantes da sociedade civil, com vistas a garantir que as informações assim rotuladas, representam realmente risco a segurança da sociedade ou do Estado (art. 18). Essas situações são reflexos da ausência de um órgão central e independente para analisar recursos do cidadão e outros embaraços decorrentes da aplicação da lei, a exemplo do que ocorre no México e no Chile.

Demonstra-se, também, incompatível com o discurso governamental, o mandamento contido no artigo 22 da LAI, segundo o qual “o disposto nesta Lei não exclui as demais hipóteses legais de sigilo e de segredo de justiça nem as hipóteses de segredo industrial

decorrentes da exploração direta de atividade econômica pelo Estado ou por pessoa física ou entidade privada que tenha qualquer vínculo com o poder público”, pois permite que as demandas por acesso à informação pública sejam negadas, mesmo que o sigilo da informação tenha sido regulamentado por Portaria, em data anterior à edição da Lei de Acesso à Informação. Esse dispositivo contraria frontalmente o princípio defendido pela Unesco de que a política de abertura deve ter precedência sobre legislações restritivas anteriores.

Também conflita com o interesse público e com as diretrizes estabelecidas pelos organismos internacionais, a extensa lista de excepcionalidades ao regime de acesso, contidas no art. 23 da lei, comprometedoras do propagado livre acesso à informação pública:

Art. 23. São consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado e, portanto, passíveis de classificação as informações cuja divulgação ou acesso irrestrito possam:

I - pôr em risco a defesa e a soberania nacionais ou a integridade do território nacional;

II - prejudicar ou pôr em risco a condução de negociações ou as relações internacionais do País, ou as que tenham sido fornecidas em caráter sigiloso por outros Estados e organismos internacionais;

III - pôr em risco a vida, a segurança ou a saúde da população;

IV - oferecer elevado risco à estabilidade financeira, econômica ou monetária do País;

V - prejudicar ou causar risco a planos ou operações estratégicos das Forças Armadas;

VI - prejudicar ou causar risco a projetos de pesquisa e desenvolvimento científico ou tecnológico, assim como a sistemas, bens, instalações ou áreas de interesse estratégico nacional;

VII - pôr em risco a segurança de instituições ou de altas autoridades nacionais ou estrangeiras e seus familiares; ou

VIII - comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações.

Outra contradição, inserta no artigo 13 do Decreto nº 7.724, de 16/5/2012, institui que não serão atendidos pedidos considerados genéricos, desproporcionais ou desarrazoados; ou que exijam trabalho adicional de análise, interpretação ou consolidação de dados e informações ou serviço de produção ou tratamento de dados que não seja de competência do órgão ou entidade.

Esses dispositivos legais, impregnados de elevado grau de discricionariedade, funcionam como uma válvula de escape que pode ser acionada pelo Estado com vistas a indeferir ou negar, indevidamente, o atendimento à demanda cidadã, tendo como fundamento o entendimento subjetivo do agente público de que a informação solicitada é imprescindível à segurança da sociedade ou do Estado.

No limite, a ampla lista de exceções possibilita que o Estado mantenha sua “cota de segredo” e revele apenas as informações que não são sensíveis, podendo, inclusive, acobertar eventuais irregularidades praticadas por membros do governo. Nesse sentido, a imprensa noticia reiteradamente a dificuldade de obter acesso às informações relativas uso do cartão corporativo por alguns agentes do governo, ao acordo firmado com o governo cubano a respeito do programa “mais médicos”, a lista dos passageiros dos voos da Força Aérea Brasileira e a relação de empresas financiadas com recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Em razão das sucessivas negativas de acesso à informação por parte do Estado, foi inaugurada a judicialização da política de acesso à informação. Recentemente, a primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) acolheu o pedido de empresa de comunicação para ter acesso aos gastos efetuados com o cartão corporativo do governo federal utilizado por ex-chefe da representação da Presidência da República em São Paulo. Em suas argumentações, o juiz explica que “inexiste justificativa para manter em sigilo as informações solicitadas, pois não se evidencia que a publicidade de tais questões atente contra a segurança do presidente e vice-presidente da República ou de suas famílias”.

A possibilidade de o governo usar a máquina administrativa para não divulgar as informações é confirmada nos próprios relatórios oficiais. As estatísticas produzidas pela Controladoria-Geral da União (CGU) mostram que praticamente todos os pedidos mais polêmicos apresentados com base na Lei de Acesso à Informação, levados até a última instância de recurso administrativo, são negados. No decorrer do exercício de 2013 a Comissão Mista de Reavaliação de Informações, composta por representantes de dez ministérios, realizou 12 reuniões ordinárias nas quase analisou 200 recursos, sendo que desses 172 foram conhecidos, em razão do preenchimento dos requisitos legais. Dos 172 recursos reconhecidos, apenas um foi provido.

A Lei de Acesso à Informação assegura, também, a realização de campanha de abrangência nacional de fomento à cultura da transparência na administração pública e conscientização do direito fundamental de acesso à informação; o treinamento de agentes públicos; o monitoramento da aplicação da lei no âmbito da administração pública federal e, ainda, o encaminhamento ao Congresso Nacional de relatório anual com informações atinentes a sua implantação. A leitura desses comandos normativos deixa clara a preocupação do governo federal em preparar-se para o atendimento das demandas, para o monitoramento interno de suas atividades, bem assim, para a prestação de contas ao Congresso Nacional. Na mesma lei, entretanto, não consta disposição específica objetivando capacitar o cidadão para o

desenvolvimento de sua ação junto ao Estado. Em outras palavras, a LAI não disponibilizou os meios para que os cidadãos a usasse em sua completude. Em minha percepção, mesmo que o aparato estatal disponha das ferramentas e qualificações técnicas necessárias para o desenvolvimento de sua missão, sem a formação crítica do cidadão restará prejudicada a capacidade das pessoas de saber eleger, avaliar e criticar as informações (PEREIRA, 2011).

A despeito das contradições aqui apontadas, entendo que a sociedade deve se apropriar das garantias e dos recursos estabelecidos na lei e usá-la abundantemente - com vistas a colher os elementos direcionadores da fiscalização cidadã sobre os atos públicos - e, dessa forma, mostrar a sociedade suas falhas estruturais e lutar pelas mudanças necessárias, exercitando sua autonomia crítica.