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2. MARCO TEÓRICO

2.3. O Ideário da Participação Política e da Cidadania

2.3.2. A Ressignificação da Cidadania

A cidadania surge na Grécia antiga de um encontro político entre a cidade e o seu território na polis ou Estado. A expressão polis, que daria origem à palavra política, designava ao mesmo tempo a cidade, seu território, e o seu poder político, o Estado, de tal modo que um não era concebido sem o outro. O termo cidadania tem origem etimológica no latim civitas, que significa cidade e, contemporaneamente, assume o significado de um estatuto de pertencimento de um indivíduo a uma comunidade politicamente articulada – a polis – e que lhe atribui um conjunto de direitos e obrigações, sob vigência de uma constituição.

A palavra cidadania está hoje por toda parte, apropriada por todo mundo, com sentidos e intenções diferentes, decorrentes da disputa histórica em torno de seu significativo, que abriga projetos diferentes no interior da sociedade, mas também tentativas de esvaziamento do seu sentido original e inovador. Nesse sentido Haroldo Abreu (2008) afirma que diferentes projetos de sociedade convivem e confrontam-se mutuamente com o objetivo de se consolidar enquanto projeto hegemônico de sociedade, da mesma forma, diferentes concepções de cidadania convivem em uma mesma conjuntura histórica, constituindo-se como um desdobramento das lutas sociais e simbólicas.

Para a cientista política Evelina Dagnino (1994) se isso é positivo, porque indica que a expressão ganhou espaço na sociedade, por outro lado, face à velocidade e voracidade das várias apropriações dessa noção, nos coloca a necessidade de precisar o seu significado, desvendando o seu caráter de estratégia política, especialmente porque o processo de construção de cidadania como afirmação e reconhecimento de direitos é, na sociedade brasileira, um processo de transformação de práticas muito arraigadas não apenas no Estado, mas na sociedade como um todo.

Para a autora a cidadania ultrapassa as relações com o Estado ou entre o Estado e o indivíduo, que limita seu sentido à aquisição formal e legal de um conjunto de direitos, e passa a ocorrer de forma ampliada, no interior da própria sociedade, assumindo o conceito de "nova cidadania". Trata-se de uma cidadania que funciona como um parâmetro do conjunto das relações sociais que se travam nessa sociedade e que busca um formato mais igualitário das relações sociais e um novo sentido de responsabilidade pública (DAGNINO, 1994), o que implica na constituição de uma dimensão pública na sociedade em que os direitos possam se

consolidar como parâmetros públicos para a interlocução e na reconfiguração de uma dimensão ética da vida social, na qual são respeitados os direitos à igualdade e à diferença.

No entender da filósofa Marilena Chauí (1984), a cidadania se define pelos princípios da democracia, significando necessariamente conquista e consolidação social e política. A cidadania exige instituições, mediações e comportamentos próprios, constituindo- se na criação de espaços sociais de lutas (movimentos sociais, sindicais e populares) e na definição de instituições permanentes para a expressão política, como partidos, legislação e órgãos do poder público. Nesse contexto a compreensão de Chauí guarda correlação com o conceito de "Cidadania Ativa", cunhado por Benevides, na qual o cidadão é reconhecido como portador de direitos e deveres, mas essencialmente criador de direitos para abrir novos espaços de participação política.

Em Manifestações Ideológicas do Autoritarismo Brasileiro, Chauí (2013) afirma que a sociedade brasileira conheceu a cidadania através de uma figura inédita: o senhor cidadão, e que conserva a cidadania como privilégio de classe, fazendo-a ser uma concessão regulada e periódica da classe dominante às demais sociais, podendo ser-lhes retirada quando os dominantes assim o decidem.

Preocupado com a tensão existente entre a cidadania, que contém em si a idéia de igualdade, e a sociedade de classes no capitalismo, que é inerentemente desigual, Thomas Humprey Marshall (1992) elaborou uma teoria crítica da cidadania. Em Citizenship and Social Class explica que o conteúdo da cidadania mudou com o desenvolvimento do capitalismo enquanto sistema social e estrutura de classes. Marshall distinguiu na cidadania três partes ou elementos constitutivos: civil, político e social. O elemento civil é composto dos direitos necessários para a liberdade individual (liberdade da pessoa, liberdade de expressão, pensamento e credo, o direito à própria propriedade e de realizar contratos válidos, e o direito à justiça); a parte política diz respeito ao direito de participar no exercício do poder político, como membro de um corpo investido de autoridade política ou como eleitor dos membros de tal corpo; o elemento social corresponde a todo o âmbito que vai do direito a um módico bem- estar econômico e segurança até o direito de partilhar do todo da herança social e viver a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões prevalecentes na sociedade. As instituições mais proximamente conectadas a este elemento são o sistema educacional e os serviços sociais. (MARSHAL, 1992, P. 8)

Ao debater a teoria crítica da moderna cidadania, Haroldo Abreu (2008) afirma que a cidadania, entendida como modo de pertencimento e de participação na ordem existente, não se edifica a partir dos direitos e deveres dos indivíduos diante da superestrutura jurídica

vigente, como supõem o senso comum, as teorias do direito e as principais vertentes do pensamento social dominante, mas como um desdobramento das lutas sociais e simbólicas. De acordo com o autor o conceito de cidadania foi se expandindo de tal forma que os liberais não poderiam se opor frontalmente à noção de cidadania, tendo que adotar a estratégia de apropriação e de deslocamento semântico do termo, de forma que não se explicitasse a forte ruptura simbólica que se pretendia estabelecer. (ABREU, 2008).

Assim, percebo que a cidadania é ressignificada, seu caráter coletivo e de defesa de classe dá vez ao individualismo, e sua liberdade se expressa em sua capacidade e possibilidade de consumir, de ser proprietário de algo. Nesse contexto, os cidadãos são tratados como objetos de utilidade, não estando engajados na autorrealização e distante de um concerto para o bem-estar geral.

Discutindo sobre a primeira faceta da mudança da cidadania, o sociólogo francês Jean Leca afirma que o individualismo corrompe a cidadania, destruindo a vida em comum e os laços comunitários. “O individualismo atomiza, fragmenta e corrói todo grupo social, e transforma o indivíduo em juiz soberano de tudo”, conjugando-se na economia capitalista com os interesses privados da exploração e do mercado (LECA, 1991, P. 189).

Ainda sobre o aspecto do individualismo, vale ressaltar que sobre a ótica neoliberal, as questões sociais, como a exclusão, o desemprego e o aumento da miséria, por exemplo, são transferidos para a esfera individual pela legitimação meritocrática da sociedade. Por trás desse raciocínio há uma filosofia da incompetência, segundo a qual são os mais competentes que governam, e que implica que aqueles que não têm trabalho, não o possuem por sua própria incapacidade, por sua incompetência.

No que se refere à segunda transfiguração da cidadania, o geógrafo Milton Santos afirma que o consumismo desenfreado é um demiurgo do individualismo em larga escala. Este último refaz-se e nutre-se vorazmente do primeiro, a cada instante. Segundo o mesmo autor (1987), "enquanto constrói e alimenta um individualismo feroz e sem fronteiras, o consumo contribui ao aniquilamento da personalidade, sem a qual o homem não se reconhece como distinto, a partir da desigualdade entre todos (SANTOS, 1987, P. 35). E complementa:” o consumo exercerá sobre o indivíduo um papel alienador funcionando como um “verdadeiro ópio, cujos templos modernos são os Shopping-centers e os supermercados (...), construídos à feição das catedrais”. Assim, em lugar do cidadão tem-se “um consumidor, que aceita ser chamado de usuário” (SANTOS, 1987, 34).

Dessa forma, alerta Gros (2003), o característico antiestatismo neoliberal tem procurado, nos seus mecanismos pedagógicos e na sua propaganda midiática, apresentar-se

com uma roupagem popular, ao reforçar as noções de liberdade e modernidade como sendo verdadeiramente possíveis apenas na esfera privada, ou seja, na própria liberdade do mercado. Nesses termos, o sujeito político, que se define por sua história, identidade social e ação coletiva, transforma-se em mero agente econômico individual. Suprime-se, assim, a cidadania politizada e reivindicativa e reduz-se o cidadão a consumidor.

Nesse cenário, avalio que o conceito de cidadania tem sido historicamente encurtado em seu significado essencial - de conquista e consolidação social e política - por meio da degradação constante de seu senso coletivo e da vinculação direta do direito à liberdade ao direito de consumir. Nesse contexto, a liberdade do cidadão só se expressa no livre mercado e o consumismo, entendido como a realização pessoal e como signo de distinção social, passa a ser algo essencial para a manutenção do sistema capitalista, pois a acumulação só pode prosseguir com a condição de que as mercadorias sejam rapidamente consumidas, sucateadas e trocadas, sendo essa uma necessidade do capital. Assim, a sociedade civil não se apropria do tema coletivo e o cidadão é confundido propositalmente com o consumidor, tendo, em consequência, sua significação desviada e despolitizada.

A discussão sobre cidadania guarda estreita relação com a Lei de Acesso à Informação, pois sua eficácia, com repercussões na melhoria da vida das pessoas, depende em grande medida da assunção, pelos cidadãos, do verdadeiro significado de cidadania, que busca o alcance dos interesses coletivos. Nessa contextura, a apresentação de demanda por informações e documentos ao Estado, a elaboração da análise crítica sobre esses documentos e a disponibilização dos resultados à sociedade, com vistas à diminuição das desigualdades sociais, constitui-se em um efetivo exercício de cidadania.