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2 Fundamentos e Argumentos

2.4 A construção social da realidade em Berger e Luckmann

Nossa orientação epistemológica é interacionista, mais especificamente, sócio- construcionista. Esta seção surge então destinada à apresentação dos pontos que nos são mais significativos de “A Construção Social da Realidade”, de Peter L. Berger e Thomas Luckmann71, publicada em português em 1985. É nesta obra que nos apoiamos.

Nela, os autores se propõem a redefinir escopo central da sociologia do conhecimento, ou seja, suas problemáticas centrais. Em suas palavras,

[...] o ‘conhecimento’ do senso comum, e não as ‘idéias’, deve ser o foco central da sociologia do conhecimento. É precisamente este ‘conhecimento’ que constitui o tecido de significados sem o qual nenhuma sociedade poderia existir.

A sociologia do conhecimento, portanto, deve tratar da construção social da realidade. A articulação teórica desta realidade continuará certamente sendo uma parte de seu interesse, mas não a parte mais importante. Ficará claro que, apesar da exclusão dos problemas epistemológicos e metodológicos, o que estamos sugerindo aqui é uma redifinição de longo alcance do âmbito da sociologia do conhecimento, muito mais ampla do que tudo quanto até agora tem sido entendido como constituindo esta disciplina. (p. 30)

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Trata-se de uma proposta bastante ousada, principalmente se observarmos o ano da publicação original (1966). A questão que é apresentada, “[...] saber quais são os ingredientes teóricos que devem ser acrescentados à sociologia do conhecimento para permitirem que seja redefinida no sentido acima indicado [...]” (p. 30), possibilita a abertura de uma nova perspectiva para o estudo do conhecimento na realidade cotidiana em sua construção social. É justamente esta perspectiva que orientará nossa investigação.

De fato, o conhecimento não se constrói apenas através de elaborações teóricas. O mundo objetivo, o dia-a-dia do convívio social, requer uma série de aprendizagens por parte do indivíduo. Informações e dados precisam ser apreendidos para que este indivíduo seja capaz de participar da vida em sociedade. É para este processo que os autores atentam ao afirmarem que a adequada compreensão da “realidade sui generis” da sociedade exige uma investigação da maneira pela qual esta realidade é construída. Sendo, esta investigação, a tarefa da sociologia do conhecimento. A vida cotidiana – em suas objetivações e significações – é o foco da análise à qual os autores se dedicam.

Após apresentarem os fundamentos da sociologia do conhecimento, Berger e Luckmann dedicam a segunda parte da obra para analisar a sociedade como uma realidade objetiva. O fato de viver numa sociedade específica proporciona ao indivíduo uma série de possibilidades e limitações contingenciais, “[...] embora seja relativamente difícil impor padrões rígidos à interação face a face, desde o início esta já é padronizada se ocorre dentro da rotina da vida cotidiana” (p. 49), ou seja, tanto este poderá explorar a sua capacidade de ação dentro daquele conjunto de códigos, significados e significantes, quanto estes poderão ser aspectos que reduzirão sua agência em determinado contexto, já que, o acervo social do conhecimento inclui o conhecimento, por parte de cada indivíduo, de sua situação, limites e possibilidades.

É interessante observar que as tipificações são tendências naturais nestes processos, sendo concebidas de acordo com a lógica moderna tradicional que orienta as padronizações das mesmas quando estabelecidas nos diversos sistemas sociais. Para Berger e Luckmann, os esquemas tipificadores que orientam as interações face a face são naturalmente recíprocos, e entram em ‘negociação’ nesta situação, ou seja, as tipificações do outro são suscetíveis de sofrerem interferências de minha parte e vice-versa.

A realidade social da vida cotidiana é portanto apreendida num contínuo de tipificações, que vão se tornando progressivamente anônimas à medida que se distanciam do ‘aqui e agora’ da situação face a face. [...] A estrutura social é a soma dessas tipificações e dos padrões recorrentes de interação estabelecidos por meio delas. Assim sendo, a estrutura social é um elemento essencial da realidade da vida cotidiana. (p. 52)

Podemos perceber que a construção social que se dá na interação face a face pode ser interativa e específica, mas isso não implica dizer que ela não esteja inserida numa macro- estrutura que contempla as possibilidades de interação entre “A” e “B”. Este é um argumento pertinente para análise da interação social humana, ou seja, da construção social da realidade (e.g., em interações face a face), tomando por base uma estrutura social.

Também é pertinente observar o imbricamento da sociedade, de sua realidade objetiva e do homem como produto e produtor social. Este imbricamento somente pode ser viabilizado através de sistemas simbólicos e de comunicação. Neste ponto, torna-se elementar a importância da produção humana de sinais, a significação. Assim sendo, a linguagem pode ser vista como o mais importante sistema de sinais da sociedade humana.

A linguagem constrói [...] campos semânticos ou zonas de significação linguisticamente circunscritas [...], então, imensos edifícios de representação simbólica que parecem elevar-se sobre a realidade da vida cotidiana como gigantescas presenças de um outro mundo. [...] o simbolismo e a linguagem simbólica tornaram-se componentes essenciais da realidade da vida cotidiana e da apreensão pelo senso comum desta realidade. Vivo em um mundo de sinais e símbolos todos os dias. (p. 61)

A linguagem é capaz de inserir ou excluir muitos dos elementos inerentes ao convívio social já que a distribuição social do conhecimento (de certos elementos) da realidade

cotidiana pode tornar-se altamente complexa e mesmo confusa para os estranhos. Ou seja, somente aqueles aptos a interagirem através das convenções simbólicas estabelecidas na linguagem é que poderão se relacionar com os demais que compartilham daquela realidade. As verdades serão ali acordadas, mais que isso, serão institucionalizadas e perpassadas por gerações. A institucionalização irá ocorrer sempre que houver uma tipificação recíproca de ações e significados habituais por tipos de atores. As tipificações recíprocas das ações são construídas no curso de uma história compartilhada. Não podem ser criadas instantaneamente. O mundo institucional é então experimentado como realidade objetiva. Em outras palavras, é a atividade humana objetivada em cada instituição particular.

O conhecimento concernente à sociedade é uma realização tanto no sentido de entender a realidade social objetivada quanto no de gerar continuamente esta realidade. Entretanto, somente uma pequena parte das experiências humanas são retidas na consciência. As experiências que ficam assim retidas são sedimentadas, isto é, se consolidam na lembrança como entidades reconhecíveis e capazes de serem lembradas. Os significados objetivados da atividade institucional são concebidos como “conhecimento” e transmitidos como tais.

“A cristalização dos universos simbólicos segue os processos anteriormente descritos de objetivação, sedimentação e acumulação do conhecimento” (p. 133). A elaboração dos universos simbólicos é um ponto de destaque na argumentação dos autores já que estes passam a compor a realidade objetiva da sociedade, e não apenas o significante, ao adquirir significado e serem socialmente reconhecidos como objetivações.

As idéias apresentadas são fundamentais para que se possa observar a sociedade como uma estrutura a qual os indivíduos constroem, e são construídos por ela, através de uma clara interdependência que toma por base a estrutura social vigente.

Após apresentarem os pressupostos nos quais se baseiam para a construção objetiva da realidade, Berger e Luckmann partem para explicar como se dá o processo social dialético

relativo à formação subjetiva dos indivíduos, analisando a sociedade também como sendo constituída por uma realidade subjetiva. Para isso, faz-se necessário à conscientização a respeito do “outro” enquanto referência, e de sua generalização social, como aspectos fundamentais para a interiorização da sociedade e de sua realidade objetiva.

A formação da consciência do outro generalizado marca uma fase decisiva na socialização. Implica a interiorização da sociedade enquanto tal e da realidade objetiva nela estabelecida e, ao mesmo tempo, o estabelecimento subjetivo de uma identidade coerente e contínua. A sociedade, a identidade e a realidade cristalizam subjetivamente no mesmo processo de interiorização. (p. 179)

Muito embora se saiba que há sempre elementos da realidade subjetiva que não se originaram na socialização (e.g., a existência da consciência do próprio corpo do indivíduo), a significância daquilo que está socialmente institucionalizado na formação das realidades subjetivas é notável. Principalmente em se tratando de um processo de socialização que se dá nos seguintes termos:

A socialização primária termina quando o conceito do outro generalizado (e tudo quanto o acompanha) foi estabelecido na consciência do indivíduo. Neste momento é um membro efetivo da sociedade e possui subjetivamente uma personalidade e um mundo. Mas esta interiorização da sociedade, da identidade e da realidade não se faz de uma vez para sempre. [...][Surge ao longo da vida do indivíduo, numa segunda etapa do processo, a socialização secundária. Esta] é a interiorização de ‘submundos’ institucionais ou baseados em instituições. (p. 184)

Algumas das “crises” que acontecem depois da socialização primária são causadas na verdade pelo reconhecimento de que “o mundo dos pais não é o único mundo existente”. No entanto, estas “crises” podem ser “contidas” através da aderência do indivíduo aos padrões que lhes são socialmente “impostos”, ou afirmados, pelos “outros significativos” e pela totalidade da situação social do mesmo.

Os outros significativos na vida do indivíduo são os principais agentes da conservação de sua realidade subjetiva. Os outros menos significativos funcionam como uma espécie de coro. A mulher, os filhos e a secretária reafirmam solenemente cada dia que o indivíduo é um homem importante ou um fracassado sem esperança [ou o contrário]. [...] [Contudo a] conservação e a confirmação da realidade implicam assim a totalidade da situação social do indivíduo, embora os outros significativos ocupem uma posição privilegiada nestes processos. (pp. 200-201)

Neste ponto, a formação identitária do indivíduo pode decidir seu destino. A identidade é evidentemente um elemento-chave da realidade subjetiva, e tal como toda realidade subjetiva, acha-se em relação dialética com a sociedade. Ou seja, é formada por processos sociais “direcionados” pela estrutura social. No entanto, as identidades produzidas inversamente pela interação do organismo, da consciência individual e da estrutura social reagem sobre a estrutura dada, mantendo-a, modificando-a ou mesmo remodelando-a. As sociedades têm histórias no curso das quais emergem particulares identidades. Estas histórias, porém, são feitas por homens com identidades específicas.

O contexto social do empreendedor tem influência substancial na sua formação e ação, afinal, estar em sociedade significa participar de sua dialética. E, neste processo, as pessoas interagem, o organismo se transforma, o homem produz a realidade e com isso “se produz a si mesmo”. Tudo isso no decorrer destas interações entre a natureza humana e o mundo socialmente construído.

No entanto, há restrições para isso já que “[...] todas as identificações realizam-se em horizonte que implicam um mundo social específico” (p. 177). O contexto social de referência do indivíduo será o seu horizonte. Mas as pessoas podem enxergar além deste horizonte e atuar na realidade objetiva forçando os limites estruturais da sociedade na qual vive. Ou seja, enquanto a sociedade se estrutura no sentido de “[...] criar procedimentos de conservação da realidade para salvaguardar um certo grau de simetria entre a realidade objetiva e a subjetiva” (p. 196), um agente social pode tentar extrapolar estes procedimentos de conservação, “alçar vôos subjetivos” e, paralelamente, trabalhar na realidade objetiva para aproximá-los desta. Assim, as realidades subjetiva e objetiva que, a princípio estão distantes, podem ser aproximadas pela ação deste agente. “Pode-se considerar a vida cotidiana do indivíduo em termos do funcionamento de um aparelho de conversa, que continuamente mantém, modifica

e reconstrói a sua realidade subjetiva” (p. 202). A articulação social – que se dá através da linguagem – é decisiva neste processo.

Muito embora, a força das interações sociais seja destacada na formação do indivíduo, a natureza biológica não pode ser esquecida, como bem ressalvam os autores. “A animalidade do homem transforma-se em socialização, mas não é abolida” (p. 236). Contudo, obviamente, é afetada por procedimentos inerentes à socialização.

A sociedade determina durante quanto tempo e de que maneira o organismo viverá. [...] A canalização social da atividade é a essência da institucionalização, que é o fundamento da construção social da realidade. [...] Assim, funções biológicas tão intrínsecas quanto o orgasmo e a digestão são socialmente estruturadas. A sociedade também determina a maneira pela qual o organismo é usado na atividade. [...] A questão é que a sociedade estabelece limites para o organismo, assim como o organismo estabelece limites para a sociedade. [...] No indivíduo completamente socializado há uma dialética interna contínua entre a identidade e seu substrato biológico. O indivíduo continua a sentir-se como um organismo, à parte das objetivações de si mesmo de origem social, e às vezes contra elas. Esta dialética é freqüentemente apreendida como luta entre um eu superior e um eu inferior, equiparados respectivamente à identidade social e a animalidade pré-social, possivelmente anti-social [...]. O homem é biologicamente predestinado a construir e habitar um mundo com os outros. Este mundo torna-se para ele a realidade dominante e definitiva. Seus limites são estabelecidos pela natureza, mas, uma vez construído, este mundo atua de retorno sobre a natureza. (pp. 238-241)

Expandir os limites da sua natureza humana, lutando pela construção dos seus projetos e contra as normatizações sociais parecem ser pontos de destaque na misteriosa “dialética do empreendedor reflexivo” em nosso tempo:

[...] o homem ocidental contemporâneo, de modo geral, vive em um mundo extensamente diferente de qualquer outro precedente. No entanto, está longe de ser claro o que isso significa, no que se refere à realidade, objetiva e subjetiva, em que esses homens levam a vida cotidiana e na qual suas crises ocorrem. (p. 246)

2.5 O estudo da vida cotidiana: uma perspectiva