• Nenhum resultado encontrado

O estudo da vida cotidiana: uma perspectiva metodológica

2 Fundamentos e Argumentos

2.5 O estudo da vida cotidiana: uma perspectiva metodológica

Feliz é aquele que vê, sente, faz versos presentes, recria o cotidiano. Vê no dia-a-dia, sente quase que “por encanto”, faz da vida uma alquimia, transforma minutos em poesia.

Ao procurarmos por um “um método a ser adotado” nos deparamos com inúmeras questões e hesitações que fazem parte do processo de investigação científica. Procurávamos por um “caminho a seguir” mas, como diz o poeta Antonio Machado, “caminante, no hay

camino, se hace camino al andar”72. Foi desta forma que percebemos, na sociologia da vida cotidiana, uma perspectiva metodológica que possibilitaria “fazer o caminho ao caminhar”.

Encontramos na obra do sociólogo português José Machado Pais, “Vida Cotidiana: enigmas e revelações”, edição brasileira de 2003, um lastro adequado para nos apoiar nesta possibilidade propiciada pelo cotidiano. São referentes a esta obra, as citações e idéias que apresentamos nesta seção.

O autor – ao se deter numa discussão que toma o cotidiano como fonte de conhecimento, concebendo seu estudo como uma perspectiva metodológica – acredita que a sociologia da vida cotidiana precisa observar, nas situações de interação, um novo objeto de estudo que deve ter como unidade de análise o “universo das atividades relacionais”. Em sua versão interacionista, parte-se da premissa de que a realidade da vida cotidiana é

72

Como Machado Pais esclarece: “Da mesma forma que o caminho se faz no caminhar, também os métodos se vão descobrindo investigando. Método vem do grego méthodos, isto é, de méta (ao longo, percorrido) e odos (caminho). Método é, pois, o caminho que se percorre” (p.64).

necessariamente interação, tomando como postulado metodológico a concepção de que a conduta social somente pode ser explicada através da interpretação da intersubjetividade.

Quais seriam as melhores estratégias de pesquisa neste sentido? Como observar as estruturas sociais no estudo dos comportamentos de indivíduos em interação? E de que forma as ações individuais renunciam estas estruturas? Como compreender o sentido das ações da vida cotidiana? Como “decifrar” o significado das expressões e representações que dela fazem parte? Como dar conta das vertentes, fluxos ou produtos de comunicação que se dão nos contextos cotidianos dos indivíduos? Foram questões como estas, colocadas por Machado Pais, que nos aproximaram desta forma de olhar, retratar e compreender a realidade. Neste sentido, a sociologia do cotidiano pode ser tida como uma alternativa às diversas formas de reificação do social.

Para a sociologia do quotidiano, o importante é fazer insinuar o social, através de alusões sugestivas ou de insinuações insidiosas, em vez de fabricar a ilusão da sua posse. A posse do real é uma verdadeira impossibilidade e a consciência epistemológica desta impossibilidade é uma condição necessária para entendermos alguma coisa do que se passa no quotidiano.” (p. 28)73

Fica claro então, desde já, que o estudo do cotidiano nos fornece uma perspectiva diferenciada. Mas em que consiste esta perspectiva metodológica? Para o autor, “[...] em aconchegar-se ao calor da intimidade da compreensão, fugindo das arrepiantes e gélidas explicações que, insensíveis às pluralidades disseminadas do vivido, erguem fronteiras entre os fenómenos, limitando ou anulando as suas relações recíprocas” (p. 30). Assim, o estudo do cotidiano busca revelá-lo e não demonstrá-lo de acordo com quadros teóricos ou (pré)conceitos de partida, posto que: “Os conceitos e as teorias devem entender-se como instrumentos metodológicos de investigação ao serviço da capacidade criadora de quem pesquisa” (p. 31). No estudo do cotidiano, faz-se um uso diferente da teoria, o esforço de

73

Nas citações literais referentes a Machado Pais (2003) será mantida a ortografia vigente em Portugal, respeitando a recomendação do autor para a publicação da edição brasileira.

teorização é concebido como indissociável da prática de pesquisa. Muito deste esforço é movido por uma necessidade em dar resposta a dilemas e interrogações concretas que desafiam a imaginação do pesquisador.

Ao definir o cotidiano como uma “rota de conhecimento”, o sociólogo português destaca que os aspectos realmente essenciais nesta prática não são os fatos, mas sim a forma como voltamos nossas questões para eles, como nos cercamos destes mesmos fatos e como os revelamos. Estando esta revelação, não sob a orientação de uma lógica de demonstração, mas sim de uma “lógica de descoberta” na qual a realidade “se insinua”, apresenta indícios. O verdadeiro interesse deste tipo de estudo está direcionado para os processos através dos quais as micro e macro estruturas são produzidas, ou seja, para práticas sociais produtoras da

realidade social. Nesta perspectiva, a própria natureza do “perguntar” pode abrir caminhos

para possíveis respostas...

É que toda a pergunta é um buscar. E, como etimologicamente método significa caminho e como o caminho se faz ao andar, o método que nos deve orientar é esse mesmo: o de trotar a realidade, passear por ela em deambulações vadias, indiciando-se de uma forma bisbilhoteira, tentando ver o que nela se passa mesmo quando [aparentemente] ‘nada se passa’. (p. 33)

O que queremos, ao adotar esta orientação, é uma nova forma de ir, estar, observar e compreender o campo, a realidade, atentando para pormenores que normalmente estão fora da “janela” determinada pela técnica metodológica adotada – através da qual o pesquisador limita-se a cumprir com os roteiros pré-determinados para suas observações de campo e entrevistas. Optamos pela possibilidade de descobertas outras. Descobertas estas que podem estar entre uma “xícara de café e outra”, ou entre um e outro “pormenor” geralmente ignorado. Somente um olhar livre e “distraidamente atento” poderá contemplá-las.

Este “desprendimento metódico” proposto nos coloca frente a frente com os dilemas que circundam a discussão sobre a objetividade do conhecimento nas ciências. Considerando que tendemos a adotar uma postura um tanto quanto ousada neste aspecto, encontramos em

Machado Pais – que acredita ser a objetividade relativa – argumentos aos quais nos alinhamos.

O que é conhecimento objectivo? Aquele que se produz a propósito de realidades objectivas? E estas o que são? A ‘objectiva’ de uma máquina fotográfica nunca é objectiva; corresponde sempre a um ponto de vista. A contemplação do mundo é já transformação do objecto. O conhecimento corresponde sempre a um processo de transfiguração, transformação, metamorfose. [...] o conhecimento produz-se sempre por uma

multiplicidade de vias. Saibamos, então, explorar as vias nobres do desvio. Em que sentido? No sentido de exaltar os desvios em relação aos trilhos que nos encurralam a imaginação [...]. Porque não cultivar o anarquismo do olhar? São nas brechas do saber consolidado que se dão as possibilidades criativas, de desvio. (pp. 45-46, grifo nosso)

Observamos também, assim como o autor referido, que o conhecimento é mimético, não no sentido de ser uma imitação do real, mas sim ao conceber que elementos do real compõem sua representação.

Ao ser pintado, o objecto é transposto para o interior de um quadro diferente. Passa-se da contemplação do objecto real para a contemplação do mesmo objecto como parte de uma recriação: seja ela a pintura ou a explicação sociológica. Procurar fazer surgir o quadro real através da alusão, e não da

ilusão. [...] [Segue ele com outra analogia] Toma-se as falas do quotidiano

como matéria-prima do conhecimento, num processo de transfiguração semelhante ao do poeta que transfigura as palavras do dia a dia em poesia. A fonte primeira de todo o conhecimento é o quotidiano, é o vivido. (p. 47, grifos do autor)

É por este vivido que devemos “perambular”, “trilhar novos e sinuosos caminhos”, “fazer diferente”. A sociologia do cotidiano nos propicia e estimula este intento, não pede que tenhamos roteiro prévio da “aventura” na qual iremos “embarcar”. Pede sim, muita consciência e abertura para este “encontro com o real”. Pede também que levemos em “nossa mochila” as indagações que nos norteiam nesta “viagem”.

A arte do viajante flâneur reside precisamente na combinação da descoberta com o gosto pela aventura – ao contrário do turista, preso aos roteiros turísticos e à necessidade de visitar o que ‘imperativamente’ deve ser visitado [...] o turista não viaja, circula apenas [...] posição semelhante têm os pesquisadores que condicionam os seus percursos de pesquisa ao que os guias teóricos mais em voga e sistemáticos têm para lhes oferecer.” (p. 53, grifo do autor)

A realidade não requer manuais e roteiros (turísticos ou de quaisquer outras naturezas!) para que seja vista, interpretada. Com isso, não se despreza a importância de métodos apropriados para cada “viagem”, mas sim se enfatiza que estes não devem ser confundidos com os objetivos, ou seja, o meio com o fim. Já que, “[...] realidade social não existe a não ser de forma interpretada. Não é um objecto que possamos ver de maneira neutra ou que nos seja dado; antes é uma estrutura semiótica construída, enquanto representação e através da interpretação. A interpretação é sempre construção” (p. 66).

Um outro aspecto importante que precisa ser ressaltado quanto ao estudo do cotidiano é que este não se atém apenas ao regular, rotineiro, aquilo que os indivíduos repetem dia após dia, mas também dá a devida atenção ao perturbador, inquietante, o “diferente”. É no dia-a- dia que os indivíduos, através de suas condutas comportamentais, se adequam ou não às representações sociais, dando continuidade ou não às atividades diárias, e, em ambos os casos, podem ser de interesse nesta orientação – a depender do foco da investigação em questão.

De facto, o quebrar a rotina pressupõe a existência da rotina. Da mesma forma, o rito é a condição de possibilidade do ser. Como na música, em que o ritmo é a condição do solo. Ora o quotidiano, a vida quotidiana, assemelha-se a uma melodia. A melodia da vida. Como quotidiano, também a música é mobilidade, fluxo, temporalidade. [...] Há na melodia, como no quotidiano, repetições de motivos, de temas, de combinações de intervalo, de emoções, de sentimentos desaparecidos, de evocações. Contudo, toda a melodia avança e se distingue por notas ágeis e altas que dão o tom e o toque distintivo à melodia. São as notas mais agudas que guiam o canto e desempenham a melodia; o mesmo se passa na vida quotidiana quando a aventura emerge da rotina e a objectiva. [...] as actividades produtivas e reprodutivas do quotidiano constituem um processo de dialéticas entre o acontecimento e a rotina. Do quotidiano faz também parte o excepcional, a aventura, o inesperado, o sonho. (pp. 80-82)