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... enquanto os contos aguardam a voz que os tornará reais, uma personagem elabora reflexões sobre a arte de contar histórias, e se enrola nas teias do tempo, ora se vendo no incunábulo desta tradição, misturada a bardos e griots, sherazades e avós; ora se vendo num tempo futuro, disputando o espaço com a imediatez e a instantaneidade do ciberespaço, tentando andar de braço dado com a era da informática... Cléo Busatto

As primeiras intenções de nossa pesquisa sempre circundaram o aporte da contação de histórias como fio condutor na construção do processo cênico por nós objetivado. Inicialmente em uma perspectiva dos contos populares e, logo na sequência vislumbrando uma outra, e não menos potente perspectiva: a da cena sonora.

Inquietações e curiosidades foram aspectos inevitáveis quando do planejamento e estabelecimento desse novo viés, contudo a aposta em um panorama que unia o status quo da narrativa oral ao da cibercultura nos instigou a pensar em múltiplas outras formas e provocações artísticas que se consolidariam a posteriori.

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Para entender como se encaminha tal encadeamento, faz-se necessário fundamentar os pontos primordiais do que designamos como contação de histórias. Neste sentido Busatto (2013, p. 9) explica que: "Criada nas últimas décadas do século XX, a 'contação de história' é um neologismo, uma expressão que se refere ao ato de contar histórias". Partimos assim, com especial interesse, pela ideia do conto, por se constituir, de certa forma, em um estilo de narrativa mais curto. Tentaremos aqui nos concentrar em algumas definições essenciais deste estilo, entretanto no tocante ao conto e sua evolução histórica ao longo dos tempos, deixamos como sugestão para um maior aprofundamento a consulta às explanações de Propp (1984; 1997), Jolles (1976) e Mellon (2006). Todavia, para uma ideia sintética desta evolução recorremos à contextualização de Busatto (2010).

Se inicialmente o conto era um registro de histórias contadas pelo povo, a partir do século XIX, porém, ele se torna uma das narrativas mais exploradas pelos escritores, que passam a criar seus próprios enredos. A tradição do conto é vasta e objeto de muita pesquisa na área da teoria literária. (BUSATTO, 2010, p. 52).

Precisamos assim levar em consideração que os contos nasceram em culturas onde não havia nenhuma separação entre ser humano e natureza, em uma época em que tais categorias se amalgamavam, determinadas pelo mesmo princípio que governava a vida das pessoas, constituindo uma unidade. Podemos tomar como exemplo disso, as histórias com mitos indígenas, nas quais os seres humanos adquirem outras formas e configurações, ou seja, onde essa constante ideia de transformação remeteria à unidade da vida.

O que os contos tentam transmitir é justamente os princípios dessa unidade da vida, o que ela tem de melhor ou de pior, todas essas histórias que a compõem, desde que seja possível parar para escutá-las. Bedran (2012) aponta, nesse ínterim, alguns aspectos significativos da arte de contar histórias.

Talvez possamos dizer que o famoso e insistente pedido da criança, quando acaba de ouvir uma história que lhe agrada, o “conta de novo!", significa sua memória trabalhando no sentido de reconstruir o passado, revelando outras cores e formas à percepção da mesma narrativa. Passado aqui compreendido como o que acabou de acontecer em seu imaginário, enriquecido pelas paisagens que atravessaram o conto. São paisagens que se movimentam e se deslocam no tempo tornando sempre única a experiência do ouvir, sentir, ler e contar. (BEDRAN, 2012, p. 93).

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Desse modo, dentro de uma perspectiva poética, podemos inferir que a possibilidade de se escutar uma história nos conecta com nossas próprias lembranças, experiências e memórias afetivas, possibilitando que avancemos em nossas próprias paisagens internas de conhecimento, colocando-nos em contato com aquilo que faz sentido em nossas próprias vidas. Desse modo, as regras e os condicionamentos do cotidiano desaparecem e o que emerge são justamente os aspectos valorosos da vida, que caracterizam o ser humano. Um conto solicita, portanto, esse espaço, sobretudo no que tange a esses aspectos valorativos, como enuncia Bakhtin (2017).

[...] nenhum ato pode dar acabamento à própria vida, pois ele a vincula à infinitude aberta do acontecimento da existência. O auto informe-confissão não se isola desse acontecimento único, daí ser potencialmente infinito; ele é precisamente um ato de incoincidência de princípio e atual consigo mesmo (por falta de força distanciada capaz de realizar essa coincidência - da posição axiológica do outro), um ato de pura superação valorativa de si mesmo, do final alheio justificado de dentro de si mesmo (que ignora esse final justificado [...]. (BAKHTIN, 2017, p. 132).

O princípio dessa interposição teórica de Bakhtin (2017) quanto ao aspecto da superação valorativa, é crucial para entendermos o acionamento dessas paisagens internas, dessas memórias afetivas que dão sentido à vida. As histórias, os contos nos conectam com essas nuances e promovem esse acionamento sensorial, a imaginação poética (BACHELARD, 2008). Delimitaremos mais acerca desse universo quando tratarmos, mais ao final desta subseção, sobre o conceito de imaginação poética em Bachelard.

Machado (2015, p. 32) fala da importância de se utilizar como eixo articulador as narrativas tradicionais, que, conforme coloca a autora, "[...] são obras de arte de tempos imemoriais, transmitidas ao longo dos séculos e das diferentes culturas, oralmente, de geração em geração". Essa ótica pressupõe, por conseguinte que a história em si, enquanto substância humana de sabedoria e conhecimento, foi feita e delineada em tempos imemoriais para todos os seres humanos com o propósito de dialogar com os eixos fundamentais da vida, e que são alvo das especulações de qualquer ser humano.

Talvez a grande diferença que podemos considerar entre a contemporaneidade e o passado, os tempos imemoriais, como define Machado (2015), é o fato de que dentro da perspectiva remota desses tempos imemoriais, ainda existia a arte do encontro, em que se

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podia parar, sentar, escutar o outro, sutilezas que nos remetem às colocações de autores que defendem o cultivo, em tempos atuais, dessa arte do encontro (LARROSA, 2014), e de uma cultura do ouvir (BAITELLO JUNIOR, 2014).

Assim, um bom encontro por meio da palavra ou por meio da arte em que as pessoas possam sentir, ouvir, respirar, se conectar, tem a função de trazer de volta a humanidade perdida que existe internamente, e que todo ser humano tem, independente de que mundo viva, seja por meio das histórias ou qualquer construção viva de palavra, que tenha esse objetivo, essa intenção, uma história que esteja ligada de algum modo com a importância da vida, com os valores que regem-na, e com as perguntas fundamentais que a norteiam nesse mundo.

Por isso as histórias tradicionais são tão importantes, porque são feitas de propósitos para promover esta ligação existencial com as coisas da vida. São imagens que levam o ser humano para os lugares mais fundamentais dele mesmo. Não é contar de qualquer forma, é a história bem escolhida, é o conto que traz todo esse ensinamento consigo e que recaem sobre a nossa justificativa para a escolha do trabalho com o conto, que parte, essencialmente, das reflexões de que, para a adequação dos processos que tínhamos idealizado através da peça sonora, o conto estruturado dentro do perfil de micronarrativas seria mais conveniente. Busatto (2010) esclarece assim as características fundamentais do conto.

O conto é uma narrativa breve, concisa, precisa, que gira em torno de um único núcleo dramático. Tem poucos personagens, o principal e mais alguns. Eles gravitam em torno dessa ação central. • O início do conto apresenta certa normalidade, com seus personagens e o cenário no qual se movimentam. Do início para o meio, surge uma desordem. A normalidade inicial é rompida por um conflito, algo que rompe a ordem anterior, algo que o personagem central deve resolver. Do meio para o final da narrativa, teremos o desenvolvimento desse conto, com a intenção de restaurar a ordem primeira, na maioria das vezes, com ganhos, seja para o personagem, seja para a comunidade com a qual ele convive. Dá-se então o desfecho. Tempo e espaço são bem delimitados. Existem várias modalidades de conto, e cada uma delas apresenta suas marcas: contos de fada, conto maravilhoso, conto de assombração, conto de ensinamento, conto de exemplo, conto de suspense, conto policial, conto erótico, etc. (BUSATTO, 2010, p. 52-3).

Considerando essas definições, inferimos que uma proposta muito relevante seria a da que provoca a construção ou criação desses contos a partir de uma memória afetiva e que

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podem trazer à tona questões relativas às experiências individuais, coletivas ou mesmo ao microcosmo dessas relações presentificadas no jogo teatral (DESGRANGES, 2017).

A arte da palavra e da narrativa oral presente no conto teria então a capacidade de organizar um discurso que estimulasse os sentidos, criando ressonâncias em quem escuta. Desse modo, a ideia preliminar de contar uma história, seja ela tradicional ou um conto de autor, subentende e considera a importância, o posicionamento, a contextualização e a consciência de onde aquilo vem. Para Machado (2015):

Sua intenção é a de compartilhar esse instante em que se encontra em estado de encantamento dentro de uma história e convidar as pessoas para a visitarem junto com ela. Isso revela que a intenção é tanto permanente - compartilhar esse passeio pelas paisagens dos contos como experiências de conhecimento - quanto se adapta a cada situação narrativa, o que inclui a percepção da presença dos outros que a escutam, modulando-se ao que ocorre nesse encontro. (MACHADO, 2015, p. 118).

Essas elucubrações nos conduzem a refletir que a experiência da narrativa oral do conto se aproxima, em tese, da experiência com a peça sonora, obviamente inserida em uma outra matriz semiótica, a do suporte digital, mas ainda assim caracterizada na vertente do conto. Conforme explicou Machado (2015),, a consolidação dessa experiência de conhecimento ocorrerá adaptada à situação desta ou daquela estrutura narrativa e poderá reverberar de diversas formas, a depender do ouvinte. Não se altera, por conseguinte a essência da intenção primária do conto, mas a do meio em que ele se propaga, instaurando dessa forma uma nova dimensão sensorial.

O que importa é que o conto estabelece uma conversa entre sua forma objetiva - a narrativa - e as ressonâncias subjetivas que desencadeia, produzindo um efeito particular sobre cada ouvinte. As imagens do conto acordam, revelam, alimentam e instigam o universo de imagens internas que, ao longo de sua história, dão forma e sentido às experiências de uma pessoa no mundo. (MACHADO, 2015, p. 43).

Assim, a proposição da peça sonora alia-se à vertente da contação de histórias confabulando um processo que se constitui no âmbito do inusitado, do improvisacional. Essa configuração dos suportes digitais na perspectiva da arte de contar histórias no século XXI que instituem a confluência entre a tradição oral e o ciberespaço implica uma mudança de

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foco, de entendimento e aceitação de outras perspectivas e paradigmas do aprendizado e da fruição dessa arte.

Machado (2015, p. 126) coaduna com essas instâncias ao esclarecer que "a conversa é sempre uma interação entre o dado que está fora de mim, com suas qualidades expressivas, e os dados que fazem parte de minha experiência subjetiva do mundo, minhas imagens internas". Falamos em alguns momentos durante esse debate acerca das imagens internas, imagens poéticas, e é primordial pontuarmos tais conceitos à luz das constatações teórico- poéticas de Bachelard (2008), no sentido de como esse acontecimento singular e efêmero que é o aparecimento de uma imagem poética pode reagir em outras variantes, apesar de todas as barreiras do senso comum e de todos os pensamentos sensatos estabelecidos em determinada imobilidade.

[...] uma imagem poética põe em ação toda a atividade linguística. A imagem poética transporta-nos à origem do ser falante. Por essa repercussão, indo imediatamente além de toda psicologia ou psicanálise, sentimos um poder poético erguer-se ingenuamente em nós: É depois da repercussão que podemos experimentar ressonâncias, repercussões sentimentais, recordações do nosso passado. Mas a imagem atingiu as profundezas antes de emocionar a superfície. E isso é verdade numa simples experiência de leitura. (BACHELARD, 2008, p. 7).

A compreensão da imaginação poética descrita por Bachelard (2008) pode assim ser desvelada como meio e fim nos processos de recepção do trabalho com os contos, com a contação de histórias, das imagens que se introjetam nesse âmbito, presentificadas na memória e na experiência intrínseca que emergem da fruição estética de tais narrativas, no nosso caso, evocadas no contexto da peça sonora.

Neste sentido, conforme sugere Machado (2015, p. 126), é importante olhar para as histórias e perceber o que se pretende com cada uma delas. É preciso "virar o olho", isto é, estimular um jeito divertido, instigante, de olhar as coisas, com o "olho de todos os dias", porém com um outro olhar, com o olho "virado", com o olhar da fantasia, da imaginação, da transformação e da história. E procurando fazer-se sempre aquela pergunta: "E se fosse possível que...?". Pois essa é a pergunta imaginativa essencial, que move o ser humano na direção do conhecimento, e é a pergunta que as histórias, os contos, convidam a fazer.

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Resumindo, o "virar o olho" é um recurso para que o ser humano entre em contato com a sua civilidade, com aquilo que não é, mas pode ser. Desta maneira, essa experiência é muito importante, porque traz o objeto ressignificado em sua singularidade. E assim ele pode ser apreciado e visto com outros olhos, criando ressonâncias e acordando imagens internas significativas para quem ouve.

Têm-se a oportunidade de deter-se sobre aquele objeto, que passaria despercebido em outra circunstância, e assim notá-lo em sua particularidade expressiva. "Aprender a ler imagens e conversar com elas é um importante aspecto da educação estética" (Id., p. 115). A situação cênica eventualmente proposta na arte de contar histórias poderia se tornar assim uma ocasião privilegiada para essa aprendizagem. Isto seria, portanto, uma forma teórico- poética de trabalhar com educação e com arte.

Um fundamento teórico-poético pode ser constituído pelo sujeito como configuração de uma aprendizagem significativa. Nesse modo de aprender, as formulações se tornam significativas a partir da experiência conjunta do pensamento e do encontro de imagens poéticas pessoais despertadas pelo contato com formas artísticas. (MACHADO, 2015, p. 12).

Desse modo, a ação educativa de contar histórias pode se tornar fundamental e ser feita de diversas formas, por história escrita, por livro, por forma oral, por meio digital, entre outras possibilidades, mas que leva o educador a se perguntar sobre sua validade, seus objetivos, seus resultados. A resposta poderá estar em cada um, mas o sentido que perpassa esses questionamentos é o de que ao propor essa experiência está estabelecendo-se um encontro de uma qualidade diferente com os alunos, onde o fundamental é o encontro no ambiente imaginativo e a possibilidade de nutrir e alimentar as imagens internas, pois sem isso impossibilita-se pensar como protagonista.

Portanto, contar histórias dentro de uma função arte-educativa é estabelecer um encontro diferenciado com os alunos, no terreno das possibilidades do imaginário. É, como se refere Larrosa (2014, p. 160), "a arte do encontro".

Trafegar por este universo de possibilidades, onde professor e aluno estarão em um processo mútuo de aprendizagem, do ensinar e do ensinar-se, onde a ação arte-educativa será mediada pela experiência com o outro, com as novas mídias, com as poéticas da voz, com o diálogo entre a peça sonora, a contação de histórias e a audiodescrição constitui-se como um

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desafio, um terreno fértil de possibilidades criativas. A seguir, a fim de fecharmos as considerações do nosso arcabouço teórico, traremos a perspectiva da audiodescrição e elucidaremos de que forma pensamos em trazê-la afim de contribuir com as provocações sensoriais do nosso estudo.

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