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3 O REPÚDIO AO MANGUE A PARTIR DO SÉCULO XIX: UM PERIGO À

3.2 O saneamento dos terrenos paludosos

3.3.1 A contribuição do engenheiro Saturnino de Brito

No Governo de Herculano Bandeira, em junho de 1909, foi então contratado o engenheiro Saturnino de Brito, já enaltecido por suas realizações em outros meios urbanos, principalmente pelo saneamento de Santos. Assim, foi criada a “Comissão de Saneamento”, cuja qual foi nomeado chefe, se transferindo para o Recife em janeiro de 1910228. Francisco Saturnino de Brito, publicou no ano de 1917 um trabalho chamado Saneamento de Recife: Descrição e relatórios, que serviu de base para as reformas urbanas no Recife a partir de então. É nesse relatório que Saturnino de Brito se coloca firme em favor da eliminação dos mocambos, associando esse tipo de habitação às áreas de mangue, descrevendo-os da seguinte forma:

Extensas regiões baixas são invadidas pelas marés altas; o fundo é arenoso e coberto de lodo, trazido pelas cheias e acamado pelo fluxo e refluxo das marés; algumas destas terras estão cobertas da vegetação que lhes é própria, - o mangue; outras foram conquistadas para as habitações miseráveis, formando-se os montículos que ficam apenas alguns centímetros emergentes em preamar, sobre os quais se erguem os mocambos229.

Saturnino de Brito trouxe em seu discurso a mesma ótica compartilhada pela classe dominante sobre a necessidade de um Recife mais “civilizado”. Para tal, constava em seus planos os arruamentos que implicaram em canais arborizados, avenidas, parques230 à custa dos aterros e drenagem das áreas alagadas da cidade. No mapa abaixo, é possível visualizar

227 Idem. p.37.

228 BURGER, Juliana Bandeira A. A paisagem nos planos de saneamento de Saturnino de Brito: entre Santos e Recife (1905-1917). Dissertação da Universidade Federal de Pernambuco. CAC. Desenvolvimento urbano, 2008. p.68.

229 BRITO, F. Saturnino Rodrigues de. Saneamento de Recife: Descrição e relatórios. Recife, 1917. p.20. 230 BURGER, Juliana Bandeira A. A paisagem nos planos de saneamento de Saturnino de Brito. Op. Cit. p.136.

um dos principais objetivos do engenheiro, segundo o Jornal do Recife, que era “a execução do canal que projetou, partindo do Jardim 13 de Maio, atravessando Santo Amaro, Espinheiro, indo ao Derby, saneando o mangue entre a rua 13 de Maio e a rua Luiz do Rego”231.

Figura 9 - Esquema adaptado do Plano Geral de Saturnino de Brito para o Recife de BRITO,

Francisco Saturnino de. Saneamento de Recife: Descrição e relatórios. Recife, 1917

Fonte: Burger (2008)

O historiador Alain Corbin tratou em Saberes e Odores das formas distintas que a classe dominante encontrou, na Europa Ocidental, de “desinfetar” os pântanos. Uma vez que a umidade era entendida como mais perigosa que o ressecamento, uma forma interessante de sanear os solos pantanosos foi através do fogo, multiplicando-se as fogueiras e fornos nas regiões pantanosas232. No trabalho de Bruno da Silva Cury, que trata do combate à febre amarela, com o protagonismo de Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro, Cury cita um documento chamado “Conselhos ao Povo” frente aquela epidemia, aonde Oswaldo Cruz recomenda

231 Jornal do Recife, 26 de Junho de 1926.

“derramar querosene, de 8 em 8 dias, em todas as poças de água, pântanos, ou charcos, que não puderem ser esgotados ou aterrados”233.

Corbin lembra que uma das recomendações dos médicos franceses em nome da purificação do ar, no século XVIII, foi a proposta de plantar “plátanos, choupos, olmos e bétulas às margens dos pântanos; e mais árvores de ramada ampla cujo cimo móvel varre, segundo eles, as camadas baixas da atmosfera234”. Um dos meios encontrados por Saturnino de Brito para sanear as zonas alagadas do Recife, também constantemente encontrado na imprensa, foi o plantio de eucaliptos. Segundo o engenheiro, sustentando uma visão utilitarista da natureza, tratando-a como um bem útil às necessidades do homem, as florestas podem ter utilidade “do ponto de vista estético e higiênico”235. Segundo o Diario de

Pernambuco, acerca da “ação sanitária” dos eucaliptos:

Os eucaliptos foram durante muito tempo, e hoje mais que nunca, aconselhados para o saneamento de regiões paludosas, pelas suas propriedades febrífugas, e muitas plantações têm sido feitas exclusivamente com esse intuito. Dizem mesmo muitos médicos que o clima é de salubridade notável onde abundam as plantações de eucaliptos, como, por exemplo, no Sul da Tasmânia, enquanto noutros pontos do mesmo país, onde não existem essas árvores, as febres devastam as populações. Acrescentam mesmo que as localidades pantanosas e doentias onde se fizeram plantações de eucaliptos melhorarem consideravelmente, a ponto de desaparecerem completamente as febres (...) Os médicos chegam até a asseverar que os eucaliptos purificam o ar pelas suas exalações balsâmicas e que, pela sombra que projetam sobre os terrenos úmidos, furtando-os a ação do sol intenso, evita o desprendimento de miasmas paludosos236.

O plantio de eucaliptos é entendido como um meio profícuo à administração pública na busca pela higienização do Recife, destacando-se nessa matéria que as “propriedades higiênicas” dessa planta eram recomendadas, inclusive, pelos médicos. O próprio Amaury de Medeiros em seu trabalho Saúde e Assistência destaca o uso de eucaliptos em solos pantanosos:

233 CURY, Bruno da Silva Mussa. Combatendo ratos, mosquitos e pessoas: Oswaldo Cruz e a saúde pública na reforma da capital do Brasil (1902-1904). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Pós-graduação em História, Rio de Janeiro, 2012. p.154.

234 CORBIN, Alain. Saberes e Odores. Op. Cit. p.128.

235 BRITO, F. Saturnino Rodrigues de. Saneamento de Recife: Descripção e relatorios. Op. Cit. p.135. 236 Diario de Pernambuco, 27 de Outubro de 1919.

Figura 10 - Eucaliptos, com menos de um ano, plantados em um antigo “pântano” nos arredores da cidade de Jaboatão

Fonte: Medeiros (1926)

Essas regiões pantanosas a serem “saneadas” eram justamente os mangues. Saturnino de Brito, seguindo esse raciocínio, no seu famoso relatório visando um projeto adequado ao saneamento do Recife, afirmou que “algumas florestas, situadas em terras baixas e úmidas, são certamente desfavoráveis à existência humana; a derrubada, a drenagem e a formação dos bosques de eucaliptos prestarão serviços saneadores nessas terras”237.

É interessante notar que Saturnino considerava as florestas situadas em terras baixas e úmidas, ou seja, os mangues, como desfavoráveis à existência humana, sendo que, segundo James Scott, vários seres humanos vivem nos alagados há milênios238. A noção do engenheiro sobre as condições inóspitas do manguezal não passa de uma ideia compartilhada pela classe dominante do Recife, que sempre viu com olhares externos aqueles que conviviam com esse ecossistema. Havia homens não só existindo, mas resistindo no mangue, visto que por vezes a própria classe dominante chamava a vizinhança dos alagados de “quilombo”239.

237 BRITO, F. Saturnino Rodrigues de. Saneamento de Recife: Descripção e relatorios. Op. Cit. p.151.

238 Os seres humanos que subsistem das áreas alagadas o fazem há séculos, assunto que será aprofundado no último capítulo. SCOTT, James. Against the grain.Op. Cit.

É fato que a relação da classe dominante com o mangue, horrorizada com o “cheiro pestilencial de matéria orgânica decomposta que vinha da lama”240 sendo os passageiros dos bondes que passavam próximos aos alagados obrigados a “levar o lenço ao nariz”241, em

muito se assemelhou com a relação que estabeleceu com as classes pobres, na vigilância burguesa do olfato. Segundo Corbin “a repulsa olfativa diante do povo passa a ser confessada sem rodeios, sem que se saiba muito bem se se trata de uma intolerância ou de uma franqueza nova”242.