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5 O “VIVER DA MARÉ”: OS FILHOS DA LAMA NAS SUAS PRÓPRIAS VOZES

5.1 Diferentes Imaginários Paisagísticos: Visão dos negros e indígenas x visão da classe

5.1.1 O monopólio do Estado nas zonas úmidas

A atuação do Estado, no período da interventoria de Agamenon Magalhães, agiu articulando estruturas mentais e objetivas458 para manipular todas as vidas que residiam no mangue. Enquanto uma instituição, segundo Bourdieu, que tem o monopólio da violência física e também da violência simbólica459, o Estado nasceu de um golpe de força que “consiste em fazer aceitar universalmente, nos limites de um certo território, a ideia de que todos os pontos de vista não são válidos e que há um ponto de vista que é a medida de todos os pontos de vista, dominante e legítimo”460. Os habitantes do mangue, enquanto indivíduos que tiravam a subsistência dos alagados foram compreendidos pela classe dominante como “vadios e vagabundos”461, segundo o Diario da Manhã, “um verdadeiro potencial humano

jogado à vida como se fora sobra”462, já que seus corpos teriam “melhor uso” em campos

agricultáveis ou nas fábricas, ou seja, à serviço de uma classe abastada.

Não à toa, segundo atesta o antropólogo e cientista político James Scott, em sua obra Against the Grain, que os primeiros grandes assentamentos fixos surgiram em zonas alagadas, não em ambientes áridos, já que dependiam esmagadoramente dos recursos das terras úmidas e não dos cereais para a sua subsistência. Não havia necessidade de irrigação463. O que é

bastante curioso já que, de acordo com Simon Schama:

458 BOURDIEU, Pierre. Sobre o Estado. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 459 Idem. p.15.

460 Idem. p.116.

461 Diario da Manhã, 10 de Janeiro de 1934. 462 Idem. Ibid.

463 De acordo com o autor, as evidências do sedentarismo precedem as da domesticação de plantas e animais, em que esses dois fenômenos ocorreram mutuamente pelo menos 4.000 anos antes de quaisquer aparições de aldeias/povoações. A grande constatação desenvolvida por Scott, quando da análise da formação dos primeiros assentamentos não-nômades, é que o sedentarismo e as primeiras cidades são geralmente produto de zonas úmidas em abundância. SCOTT, James, Against the Grain. Op. Cit. p.47.

A agricultura intensiva possibilitou todo tipo de males modernos. Rasgou a terra para alimentar populações cujas demandas (por necessidade ou por luxo) provocaram mais inovações tecnológicas, que, por sua vez, ao exaurir os recursos naturais, impulsionaram mais e mais o ciclo exasperado de exploração ao longo de toda a história do Ocidente. E talvez não só do Ocidente. É possível, dizem os críticos mais severos, que toda a história da sociedade sedentária, dos chineses loucos por irrigação aos sumérios loucos por irrigação, esteja contaminada pela brutal manipulação da natureza464.

Durante a História Ocidental, a ideia de que a passagem do homem caçador-coletor para o nômade e, depois, para o agricultor, representou o progresso da humanidade, foi estabelecida tanto na ciência como no senso comum465. Segundo Scott, o problema geral da agricultura - especialmente a agricultura de lavoura - é que ela envolve tanto trabalho intensivo466 que mesmo as técnicas de plantação e de criação de gado sendo longamente conhecidas, foram evitadas ao máximo como meio dominante de subsistência, pelo árduo trabalho que requerem.

Na medida em que qualquer intervenção humana era necessária nos alagados, muito mais provável que tivesse sido a drenagem ao invés da irrigação. A visão clássica de que antiga Suméria foi um milagre da irrigação organizada pelo Estado em uma paisagem árida acaba por, segundo o autor, ser totalmente errada. O sistema de irrigação das Antigas Sociedades teria sido uma das formas do Estado fomentar a necessidade de sua existência467.

O desejo do Estado em manter-se firme com seus muros, cobrança de impostos e funcionários em seu favor, está diretamente relacionado à forma de gestão das áreas alagadas. A inconteste autossuficiência dessas zonas no Recife possuía dois grandes riscos: o não aproveitamento da força de trabalho que encontrava-se atolada na lama e, também, o não aproveitamento dos solos alagados a partir da especulação imobiliária.

Os lucros do Estado com os aterros de mangue foram constantemente enaltecidos na imprensa escrita de maior circulação em que, em 1936, nos preparativos do Governo Vargas para a criação da Liga Social Contra o Mocambo, o Diario de Pernambuco reforçava que “desde que o Estado drenou, o pântano, aterrou, fez parte do canal e construiu, logo valorizou um largo trecho da cidade abandonado. O Estado pagou-se de muitas despesas com a venda dos terrenos aterrados”468. Em uma das matérias sobre a campanha da Liga, em 1941, os

464 SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória. Op. Cit. p.24. 465 SCOTT, James. Against the Grain. Op. Cit. p.9. 466 Idem. p.66.

467 Idem. p.52.

habitantes do mangue são entendidos como força de trabalho a ser remanejada para servir ao poder estatal:

Os que paravam, sem ofício, sem profissão, ficavam relegados à penúria como coisa inútil, completamente desaproveitada. E era essa gente, obrigada a ser inutil, que cevava a sua inércia metida num mocambo à beira do mangue, de olhos abertos para o vício e para a degradação. No terreno de onde foram arrancados 58 mocambos, surgirão, brevemente, casas higiênicas e relativamente confortáveis, enquanto êsses braços que, aquí permaneciam parados vão ser agitados, com a vantagem ainda de descobrir a fertilidade da terra (...)A campanha contra o mocambo foi, por todos os motivos, salutar. Ela marcará o renascimento de nossa terra e de maneira indelevel está assinalada a administração do Estado469.

Três elementos são destacados por Scott para caracterizar a sustentação dos Estados: grãos, muros e escrita. A importância da agricultura para a formação dos Estados “precoces” relaciona-se, afinal, com a invisibilidade da magnitude das zonas alagadas na construção da história da humanidade. Scott afirma haver uma “miopia histórica”, que vem do dito cordão umbilical entre a civilização e os principais grãos - trigo, cevada, arroz e milho470.

As mudanças climáticas fizeram da Mesopotâmia uma terra, hoje, árida471 e, a despeito de tantas pesquisas arqueológicas que apontam para esse fato nos últimos vinte anos, a interação longínqua das sociedades humanas com os alagados não possui o devido destaque. De acordo com Scott, é difícil entender como as áreas alagadiças podem ter passado despercebidas, visto que estiveram interagindo com as sociedades humanas não apenas na Mesopotâmia.

As primeiras comunidades sedentárias perto de Jericó, os primeiros assentamentos no baixo Nilo, eram baseadas em zonas úmidas e, apenas marginalmente, dependentes de grãos plantados. O mesmo poderia ser dito da baía de Hangzhou, local da antiga cultura neolítica de Hemudu, no trecho mais aquoso da costa leste da China, em meados do quinto milênio aC, rica em arroz não domesticado - uma planta aquática. Os primeiros assentamentos do rio Indo, Harrapan e Haripunjaya, se encaixam nessa descrição, assim como a maioria dos locais significativos de Hoabinh no Sudeste Asiático472.

Mesmo locais de maior altitude como o Lago Titicaca no Peru foram instalados em extensas áreas úmidas que ofereciam colheitas abundantes de peixes, aves, moluscos e pequenos mamíferos dos ambientes periféricos de vários ecossistemas. As origens da

469 Diario da Manhã, 12 de Outubro de 1941. 470 SCOTT, James. Against the Grain. Op. Cit. p.56. 471 Idem. p.120.

povoação de zonas úmidas permaneceram relativamente invisíveis também porque trata-se aqui de culturas largamente orais que não deixaram registros escritos.

Na perspectiva dos Estados agrários, pântanos, alagados, brejos e charcos geralmente têm sido vistos como a imagem espelhada da civilização - como uma zona de natureza indomável, perigosa para a saúde e segurança. Visão essa abordada nos capítulos anteriores, projetada pelo Ocidente e utilizada como justificativa para a devastação dos mangues Brasil à fora.

Um dos principais questionamentos de Scott consiste na ideia de que, buscando ser crítico à teleologia traçada pelo progresso da civilização, o sedentarismo não foi uma consequência óbvia do avanço da sociedade. Contudo, a tamanha viabilidade da subsistência a partir das áreas alagadas merece destaque no que diz respeito a uma forma alternativa aos assentamentos agrários que originaram os grandes Estados. Na tentativa de compreender porque se continua a ignorar a historicidade das zonas úmidas, Scott faz uma interessante conjectura:

Uma última e mais especulativa razão para a obscuridade das sociedades de terras úmidas é que elas foram, e permaneceram, ambientalmente resistentes à centralização e ao controle de cima. Eles se baseavam no que hoje se chama de “recursos de propriedade comum” - plantas, animais e criaturas aquáticas de vida livre, aos quais toda a comunidade tinha acesso. Não havia um único recurso dominante que pudesse ser monopolizado ou controlado do centro, e muito menos facilmente tributado. A subsistência nessas zonas era tão diversa, variável e dependente de tamanha variedade de ritmos que desafiava qualquer contabilidade central simples. (...) nenhuma autoridade central poderia monopolizar - e, portanto, racionar - o acesso a terras aráveis, grãos ou água para irrigação. Havia, portanto, pouca evidência de qualquer hierarquia em tais comunidades (como geralmente medido por bens de sepulturas diferenciais). Uma cultura poderia muito bem se desenvolver em tais áreas, mas a probabilidade era pequena de que uma teia tão intrincada de assentamentos relativamente igualitários pudesse derrubar grandes chefes ou reinos, muito menos dinastias473.

473 SCOTT, James. Against the Grain. Op. Cit. p.57. No original: “A last and more speculative reason for the obscurity of wetland societies is that they were, and remained, environmentally resistant to centralization and control from above. They were based on what are now called “common property resources”—free-living plants, animals, and aquatic creatures to which the entire community had access. There was no single dominant resource that could be monopolized or controlled from the center, let alone easily taxed. Subsistence in these zones was so diverse, variable, and dependent on such a multitude of tempos as to defy any simple central accounting.(...) no central authority could monopolize—and therefore ration—access to arable land, grain, or irrigation water. There was, therefore, little evidence of any hierarchy in such communities (as usually measured by differential grave goods). A culture might well develop in such areas, but the likelihood was small that such an intricate web of relatively egalitarian settlements would throw up great chiefs or kingdoms, let alone dynasties.”

Os Estados são aqui entendidos como instituições que possuem camadas de funcionários especializados na avaliação e cobrança de impostos - seja em grãos, trabalho ou espécie - e que são responsáveis perante um governante ou governantes. O poder executivo474 é exercido em uma sociedade hierárquica razoavelmente complexa, estratificada, com uma sofisticada divisão de trabalho (tecelões, artesãos, sacerdotes, metalúrgicos, funcionários, soldados, cultivadores)475.

Grãos e muros tiveram papel fundamental na consolidação dos Estados, mas também a escrita merece destaque.Um bom argumento utilizado por Scott para vincular a administração do Estado à escrita é que ela parece ter sido usada na Mesopotâmia essencialmente para propósitos de contabilidade por mais de meio milênio, antes mesmo de começar a refletir as glórias civilizacionais que costuma-se associar à origem da escrita: literatura, mitologia, louvores hinos, reis listas e genealogias, crônicas e textos religiosos. A magnífica Épica de Gilgamesh, por exemplo, data da Terceira Dinastia de Ur (por volta de 2.100 aC), um milênio inteiro depois que a escrita cuneiforme foi usada pela primeira vez para fins estatais e comerciais476.

Privar a classe trabalhadora do direito de ser cultivadores independentes477 -

forrageadores, caçadores-coletores, pastores, pescadores de mariscos478 - foi, afinal, uma das

preocupações do Governo Vargas, ao tirar do mangue os braços considerados inúteis longe do mercado de trabalho. Isso porque o sustento das mulheres e homens-caranguejo ocorria não só nutrindo o corpo com as proteínas presentes nos crustáceos, mas também através da comercialização do alimento pelo mangue ofertado. Uma entrevista do Diario da Manhã, em 1947, com a pescadora de mariscos Dona Sinhá, antiga trabalhadora de um engenho de açúcar que afirmou não querer mais voltar para sua antiga vida, discutia a alta de preços do período, que chegou até mesmo na corda de caranguejo:

474 Segundo Diamond, a partir do momento em que uma sociedade exceda 10 mil pessoas, é impossível produzir, executar e administrar decisões recorrendo-se a reuniões em que todos os cidadãos estejam sentados uns diante dos outros e em que cada um diga o que pensa. Grandes populações não podem funcionar sem líderes que tomem as decisões, executivos que implementem o decidido e burocratas que administrem as decisões e as leis. DIAMOND, Jared. O mundo até ontem. O que podemos aprender com as sociedades tradicionais. Rio de Janeiro: Record, 2014. p.23.

475 Idem. p.118. 476 Idem. p.141.

477 No caso dos trabalhadores da zona da mata, segundo Rogers, os senhores proibiram alguns usos da terra, no intuito de prevenir contra uma atitude entre os trabalhadores de liberdade e controle. Da perspectiva dos senhores, os trabalhadores não mandavam em nada e, qualquer sensação de poder sobre a terra deveria ser devidamente tolhida. ROGERS, Thomas. Imaginários paisagísticos. Op. Cit. p.7.

Antigamente caranguejo não tinha valor comercial. Antes da inflação – da era dos lucros extraordinários – o seu preço era no máximo dois cruzeiros por caranguejos... Mas a cousa mudou. Da família dos crustáceos uma “corda” de 18, 20 e 25 relativamente, é mais caro. Também é o mais magro. Encontrar “carne” na sua armação é cousa que depende de paciência... No entanto, o caranguejo está sendo motivo para exploração. Homens, “dobrados”, fortes, entregam-se a pegá-los e vendê-los pelo alto preço de 6 cruzeiros por corda de 10 caranguejos! Não há impostos a pagar. Não é tabelado. Não distribui “bolas”. É, na verdade um mercado livre479.

Não havia impostos a pagar, e essa era uma das grandes características do comércio feito pelos habitantes do mangue, os quais não deviam satisfações de seu lucro ao Estado. A pescadora Maria Francisca Dias, quando perguntada em entrevista sobre a comercialização do produto capturado nos alagados, disse “Vendemo a 100 reis uma latinha de manteiga de meia libra, cheia de marisco e ainda com casca. E uma cuia de queijo é deztões. Quase todos os dias se arranja 5$480”.

Figura 17 - Marisqueira Maria Francisca Dias do Nascimento

Fonte: Diario de Pernambuco, 16 de Fevereiro de 1936

479 Diario da Manhã, 26 de Abril de 1947.