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Contra o mangue: primórdios da perseguição milenar às áreas pantanosas

2 TERRITÓRIOS ALAGADOS À MARGEM DO IMAGINÁRIO OCIDENTAL

2.3 O predomínio do imaginário ocidental na memória da paisagem

2.3.2 Contra o mangue: primórdios da perseguição milenar às áreas pantanosas

Para compreender o repúdio ao mangue, que marcou uma significativa parcela da história de Pernambuco, é preciso recuar para os primórdios da “vigilância atmosférica” que sustentou a medicina ocidental, principalmente a partir do século XVIII. Reivindicando um ar puro, o discurso higienista fez da lama, entendido como um agressor à sensibilidade das classes abastadas, e seus vapores objeto de um discurso inquieto123, que repercutiu como um verdadeiro asco aos solos alagadiços.

Um dos responsáveis pela ideologia que justificou por séculos a visão negativa das áreas alagadas foi Hipócrates, conhecido como o “pai da medicina”, divinizado pelos médicos brasileiros dos séculos XIX e XX. Segundo Alexandre Chaves, o Tratado Dos Ares, das águas e dos lugares ofereceu relevantes subsídios à história da medicina, sendo o pensamento hipocrático um dos eleitos como fundamentais para o conhecimento, de acordo com a intelectualidade europeia.

Hipócrates teorizou sobre a influência do meio na saúde, o que desencadeou várias questões, sendo destacadas pelo médico a influência do clima e da temperatura, podendo-se dividir a teoria que versava sobre o meio em dois pontos principais: um baseado na situação geográfica e o outro na fisiologia, como no caso da teoria dos humores. De acordo com Chaves:

120 Idem. p.458.

121 CORBIN, Alain. O território do vazio. Op. Cit. p.234. 122 Idem. p. 246.

Em geral as teorias do meio calcadas na fisiologia se desenvolveram a partir da bipolaridade saúde-enfermidade ou ainda a partir da noção de equilíbrio e falta de equilíbrio humoral, respectivamente. A observação que aponta para as vantagens que certas cidades possuíam em função dos efeitos da altitude, possivelmente devido aos lugares altos estarem bem acima de áreas pantanosas, é um dos exemplos da aplicação da teoria do meio mencionada. A teoria humoral, que inicialmente estava embasada no corpo humano, logo foi transposta para a relação com o meio circundante, e é a partir da relação de desequilíbrio então verificada (excesso de umidade), que se chegou a valoração de áreas paludosas. A teoria hipocrática propunha que em terras quentes, pantanosas e florestadas com acumulação de água estagnada, a população não conseguia se desenvolver devido a esse excesso de água, já que respirava um ar úmido e turvo124.

As explicações médicas de Hipócrates também aparecem em outros pensadores clássicos, como Aristóteles, principalmente no modo em que este filósofo aborda os problemas relacionados à medicina e os efeitos do ambiente sobre o pensamento. Dentre as perguntas formuladas pelo pensador a seus discípulos estavam as seguintes: “Por que envelhece rapidamente quem vive em terras baixas (depressões) ou em terras pantanosas?”; Por que os marinheiros, mesmo os que vivem na água, possuem uma coloração mais sã do que os que vivem em terras pantanosas?”125.

As perguntas demonstram e reforçam um caráter sórdido das áreas úmidas e a força das ideias hipocráticas, que assim como as concepções de Aristóteles sobre o mundo natural, atravessaram gerações e pautaram a edificação de instituições médicas de muitos séculos após a disseminação de seus pensamentos. A atenção olfativa prestada à putrefação se deu de modo tão extremo que o pútrido era frequentemente associado ao demoníaco126. Esse discurso voltava-se principalmente às áreas pantanosas, que não foram poupadas nem entre os romances, onde os pântanos são retratados na literatura europeia de modo sórdido e sombrio127.

Quando, no século XVIII, o naturalista Buffon descreveu a natureza da América, associando os ameríndios ao grau mais baixo de “humanidade”, constatou que a Terra teria emergido recentemente do mar, estando ainda coberta de lagos, pântanos e selvas que produziam um ar úmido e venenoso128. O fato do continente americano ser uma formação

124 CHAVES, Alexandre da Silva. Vicissitudes das áreas paludosas no Rio de Janeiro oitocentista: mangue herói ou vilão?. Dissertação de História, UFRJ, 2008. p.11.

125 Idem. p.11.

126 CORBIN, Alain. Saberes e Odores. Op. Cit. p.36.

127 SOFFIATI, Arthur. O manguezal na história e na cultura do Brasil. Op. Cit.

128 GERBI, Antonello. O Novo Mundo: história de uma polêmica (1750-1900). São Paulo: Cia. das Letras, 1996.

geológica recente, para Buffon, o levou a concluir que as áreas pantanosas eram um meio inapto para o desenvolvimento de uma “civilização”. Para ele, era porque os homens da América não sabiam “aproveitar devidamente” a terra que “os insetos, os répteis e todas as espécies de animais que se arrastam no lodo, cujo sangue é água e pululam em meio à podridão, são mais numerosos e maiores em todas as terras baixas, úmidas e pantanosas deste novo continente”129.

Com os higienistas, os mais contundentes disseminadores desse pensamento sobre as zonas alagadas, os solos enlameados tomaram um lugar de verdadeiro malefício à saúde pública, onde era natural que qualquer fissura aberta na lama fosse considerada putrefata e evocadora dos maiores perigos para a classe dominante. Esta impunha sua famigerada “gestão burguesa do olfato”, visto que outro fator que negativava a visão dos pântanos na Europa foi a sua ocupação por pessoas pobres130, excluídas. A população que favorecia a epidemia, no olhar da época, era aquela que “apodrecia na lama fétida”, e por ser pobre e frequentar as áreas pantanosas e insalubres exalava odores ruins131.

O historiador francês Alain Corbin, em sua obra Saberes e Odores, tece com precisão o imaginário ocidental na forma de pensar o olfato, demonstrando que o desprezo por ecossistemas ecótonos como o manguezal era tamanho, tanto que sua riqueza de fauna e flora ficava camuflada perante os possíveis danos que poderia vir a causar à saúde. As margens pantanosas eram um dos tipos de local mais importante para a observação dos gases132, sendo seu solo apenas um depósito de moléculas orgânicas em putrefação com vapores nocivos. Na citação abaixo, Corbin demonstra que as emanações pantanosas eram um dos principais assuntos dos tratados de medicina do século XIX, sendo os pântanos mais funestos àqueles que, como o mangue, misturam água doce e água salgada:

Seja porque o mar traz e deposita aí um maior número de insetos e de peixes que aí morrem e se decompõem, seja porque essa mistura de água salgada e de água doce é muito apropriada (...) para apressar a putrefação das moléculas orgânicas vegetais e animais133.

A percepção miasmática do mar, os vapores mefíticos que dele emanavam deixando as costas malcheirosas, fazia com que o barco fosse um lugar maléfico por excelência134. Dos

129 Idem. Ibid.

130 CORBIN, Alain. Saberes e Odores. Op. Cit. p.185. 131 Idem. Ibid.

132 Idem. p.50

133 FODÉRÉ, F. E. Traité de medicine légale et d’hygiène publique ou de police santé..., 1813. p.168. In. CORBIN, Alain. Saberes e Odores. Op. Cit. p.49

navios, afirmava-se, surgia com frequência a infecção, emergiam as epidemias. Entre seus flancos de madeira úmida acumulavam-se germes da fermentação e da putrefação, em que no porão a latrina concentrava todos os miasmas. Não à toa, o navio era comparado ao monturo e, ainda de acordo com Corbin, no século XVIII era comum que o navio fosse descrito como “um pântano flutuante”.

A concepção de odores ditos “pútridos e fétidos” faz parte de toda a educação de uma cultura na forma de pensar o olfato e, dessa forma, experimentar sensações com perspectivas pré-concebidas. Embora os mangues sejam a espinha dorsal das costas dos oceanos tropicais, formando um importante habitat, berçário para inúmeras espécies de peixes, crustáceos, mamíferos, aves e insetos135, além da forma de sobrevivência dos extratos mais excluídos da

população, foi relegado ao lugar de aversão e constante devastação na história do Brasil, notadamente, na capital pernambucana.

3 O REPÚDIO AO MANGUE A PARTIR DO SÉCULO XIX: UM PERIGO À