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Formas de subsistência e resistência: entre pescadores e lavadeiras

5 O “VIVER DA MARÉ”: OS FILHOS DA LAMA NAS SUAS PRÓPRIAS VOZES

5.1 Diferentes Imaginários Paisagísticos: Visão dos negros e indígenas x visão da classe

5.1.2 Formas de subsistência e resistência: entre pescadores e lavadeiras

O mercado livre481 ou, segundo Soffiati, “o super-mercado das tribos”,era justamente o manguezal que oferecia, por sua fartura: caranguejos, tainhas, robalos, siris, sernambis (moluscos), aves, mamíferos, turu (teredo)482, desde os índios que em suas práticas nômades andavam entre as árvores, praias, montanhas, várzeas e campos. Esses povos, construtores dos sambaquis483, aponta Soffiati, souberam viver em paz com os manguezais “não só aprendendo inconscientemente, com esses ecossistemas, formas de adaptação ao meio, mas também extraindo deles o seu sustento dentro de limites que permitiam a recuperação do seu equilíbrio”484.

A partir dessa herança de conhecimento acerca dos alagados é que uma fração das classes populares, que desenvolveram uma economia apoiada no extrativismo dos recursos dos manguezais, ainda de acordo com Soffiati, adotou tais práticas indígenas, “ressistematizando-as” e incorporando-as à sua visão de mundo485. A pesca de caranguejos,

siris, mariscos, peixes miúdos nos anos 1930, portanto, se estabeleceu na vida daquela classe trabalhadora enquanto sustento da família, ao que Dona Francisca, afirmou que “ia pescar mais os meninos, pegar caranguejo, pegar siri, marisco. A gente vivia da maré”486.

Esse “viver da maré” denotava uma experiência tão íntima com o mangue que, em Homens e Caranguejos, Josué de Castro chega a dizer que esse as pessoas que subsistiam daquele ecossistema eram “irmãs de leite dos caranguejos”487. Gente e bicho se confundiam,

segundo Castro, numa paisagem onde “os homens se assemelhavam em tudo aos caranguejos, arrastando-se, agachando-se como os caranguejos para poderem sobreviver”488 e, de fato, essa

481 Diogo de Carvalho Cabral chega a afirmar que, no século XVII, as conchas de moluscos aquáticos de gêneros como Cypraea (nativo da Ásia) e Olivella (nativo da América do Sul, chamado de “zimbo”, no Brasil), coletadas em estuários, mangues e lagoas rasas, eram amplamente aceitas como moeda pelos negociantes africanos. Essa forma de pagamento era utilizada pelos comerciantes luso-brasileiros em seus portos.

482 SOFFIATI, Arthur. Pé no Mangue. Op. Cit. p.22.

483Segundo Marta Vannucci, o estudo dos sambaquis na faixa tropical indica hábitos alimentares semelhantes, correspondentes aos paralelismos da fauna dos manguezais em todo mundo. VANNUCCI, Marta. Os manguezais e nós. Op. Cit. p.131.

484 O autor lembra como a forma menos ostentatória de viver a partir do mangue, fez com que esses povos sobrevivessem muito mais do que os maias, por exemplo, e talvez continuassem existindo não fosse a invasão europeia. Em vez de um modo de vida apropriado à floresta, os maias parecem ter criado um modo de vida antiflorestal, talvez na crença de que poderiam vencê-la impunemente. Para ver essas questões sobre o fracasso de antigas sociedades devido a forma como se relacionaram com a natureza, ver a obra Colapso do autor Jared Diamond. Idem. p.43.

485 Idem. p.48.

486 Depoimento oral de Francisca Lopes GOMES (nas. 04/10/1928) in MONTENEGRO, Antonio T. et al (orgs). Bairro do Recife; Porto de Muitas Histórias. Recife: projeto Memória em Movimento, Gráfica Recife, 1989. p.39.

487 CASTRO, Josué de. Homens e Caranguejos. Op. Cit. p.15. 488 Idem. p.13.

forma de sobrevivência era uma alternativa às condições pífias que a classe dominante oferecia na labuta dentro de suas posses, já que, de acordo com Maria Francisca Dias “Com esse trabaio a familia vai vivendo. É melhor do que ir pra fabrica”489.

O imaginário paisagístico a partir do qual Josué de Castro apreendeu o manguezal guardava uma memória de afeto. O geógrafo via o homem se confundir com o caranguejo evocando o sentimento de ternura por um meio que ele mesmo quando criança havia tirado o seu sustento490, afirmando que:

A primeira sociedade com que travei conhecimento foi a sociedade dos caranguejos. Depois, a dos homens habitantes dos mangues, irmãos de leite dos caranguejos. Só muito depois é que vim a conhecer a outra sociedade (...) de tudo que vi e aprendi na vida, observando estes vários tipos de sociedade, fui levado a reservar, até hoje, a maior parcela de minha ternura para a sociedade dos mangues491.

Por outro lado, como já constatado, a visão de Castro não era predominante na “classe intelectual” pernambucana. Afinal, a mesma classe dominante que via a vida no mangue como uma verdadeira “tragédia”492, em que aquela lama era diariamente conquistada pelo

negro493, se utilizou da imprensa escrita para relatar seu estranhamento daquele meio, tão comum a Josué de Castro. No entanto, essa mesma classe percebia o afeto com que o mangue era sentido pelos seus habitantes. Segundo o Jornal do Recife, nos arrabaldes da cidade:

perdida no meio dos mangues, vive uma população minada de sífilis, mal alimentada e sem instrução. Vive ou vegeta dentro de quatro paredes tortas, de barro grosseiro, olhando o mangue, eternamente. E de tanto vê-lo e senti-lo, já se acostumou a querer-lhe bem494.

Para além do extrativismo animal que crianças “pescavam o almoço de cada dia”495 e

as mulheres vendiam os mariscos em alternativa ao trabalho nas fábricas, o pescador João Dias contou que no sururu muito velho era possível encontrar uma pedrinha como vidro que se vendia nas joalherias por 5 ou 6$000496. Também, as lavadeiras da rua Imperial faziam da lavagem de roupas uma forma de renda, utilizando-se do mato do mangue para estender seus panos. Segundo o Diario de Pernambuco, eram inúmeras as mulheres que torciam toalhas molhadas em meio aos alagados. De acordo com a lavadeira Dona Paulina: “Isso aqui é bom.

489 Diario de Pernambuco, 16 de Fevereiro de 1936;

490 CASTRO, Josué de. Homens e Caranguejos. Op. Cit. p.15. 491 Idem. p.16.

492 Diario da Manhã, 26 de Abril de 1947. 493 Diario da Manhã, 10 de Novembro de 1934. 494 Jornal do Recife, 01 de Janeiro de 1937. 495 Diario da Manhã, 26 de Abril de 1947.

Basta estender a roupa no capim e pronto. É melhor do que ir lavar no Barro. Aqui se compra água. Lá o rio é de graça mas se paga bonde e se perde tempo”497.