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3 O MINICONTO E A FOTOGRAFIA

3.2 A CORRESPONDÊNCIA ENTRE MINICONTO E FOTOGRAFIA: ASPECTOS ESPECÍFICOS

O que denominamos correspondência na organização das formas nos aspectos específicos entre a forma narrativa conto e miniconto e a fotografia se realiza por meio do gesto do corte. Nos minicontos, esse gesto se manifesta por meio das elipses frasais, das frases nominais, das reticências, e das próprias estruturas da narrativa. Na fotografia, por sua vez, tal procedimento se realiza por meio do que Philippe Dubois (1994) chama de fora de campo ou espaço off.

Em certas situações de comunicação ou em certos enunciados, determinados elementos de uma frase dada podem deixar de ser expressos, sem que por isso os destinatários deixem de compreendê-la. Diz-se então que há uma elipse, que as frases são incompletas ou elípticas. Jean Dubois (1978, p. 207), no Dicionário de linguística, explica:

a) A elipse pode ser situacional: em certas situações, não é indispensável pronunciar certas palavras para que o destinatário compreenda. Se perguntarmos a um pintor o que ele fez durante o dia e ele diz “Pintei” a

elipse remete para quadros, que a situação permite acrescentar. Do mesmo

modo, quando perguntamos “A que hora você vai embora?” e nos respondem “Às três”, a elipse de “vou-me embora” é permitida pelo contexto (aqui, a frase precedente);

b) A elipse também pode ser gramatical. Palavras que o conhecimento da língua (das regras sintáticas) permite suprir podem ser omitidas. Assim, se produzo o enunciado “Completamente perdido”, são as palavras eu e estou que a estrutura da frase impõe que se introduza; o sentido do que precede não intervém em nada.

Pode haver elipse do sujeito, como em Seja dito entre nós. Há igualmente elipse quando várias proposições são justapostas, como Ele corre, salta, sapateia, urra. A elipse do sujeito é típica do estilo “telegráfico” (Chegaremos amanhã). Há também elipse do verbo em fórmulas como Ao vencedor as batatas!, e em frases como Cada um levou uma ferramenta: João uma pá, Pedro, uma enxada, e Luís, um ancinho. A elipse pode ter um caráter arcaico (é frequente em provérbios e adágios) ou em caráter familiar (pode assim expressar a ordem com força, como em “Em meus braços!”).

Gonçalves (s.d.), em Noções de estilística, esclarece-nos, ainda, que a elipse consiste na supressão total de um elemento na frase sem que isso prejudique a sua compreensão; tais elementos “omissos” são dispensáveis ao entendimento do texto. A elipse é vista como procedimento normal do idioma e muito empregada na oralidade, mas, ao ser utilizada como recurso estilístico nas narrativas literárias, contribui para a

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expressividade e fluência do discurso, para a legitimação do foco narrativo e de “determinadas ações previsíveis que parecem se tornar singulares, uma vez que deixam de ser explícitas” (p. 82). Desse modo, sempre há, na elipse, um conteúdo que está ausente no enunciado e que pode ser, ou não, recuperado em determinadas situações.

As frases nominais constituem-se somente por nomes e prescindem de verbo, que podem ser “mentalizados”; a frase, assim, não é elíptica, embora o verbo o seja. Comum na língua falada, a frase nominal ocorre, com frequência, na língua escrita (prosa e verso): “É uma frase geralmente curta, incisiva, direta, que tanto indica de maneira breve, sumária, as peripécias de uma ação quanto aponta os elementos essenciais de um quadro descritivo” (GARCIA, 1986, p. 13).

Essa noção de ausência manifestada pela elipse e pela frase nominal remete-nos ao uso da reticência. Gonçalves (s.d., p. 116) explica que esse recurso é uma figura de pensamento que “consiste na omissão intencional de algo que deveria ou que se poderia dizer e que, por motivos próprios do enunciador, não é dito”. Há, então, um plano de conteúdo ausente marcado por esse recurso gráfico que, por não estar escrito por meio da linguagem verbal, se faz presente, apenas, por meio do sinal que o representa: (...).

Cunha (2001, p. 660) explica que esse sinal de pontuação serve para “indicar que a ideia que se pretende exprimir não se completa com o término gramatical da frase, e que deve ser suprida com a imaginação do leitor”. Distinta da elipse, na qual, muitas vezes, conseguimos recuperar o elemento ausente, a reticência exige um esforço maior do leitor, a fim de que o conteúdo possa ser não somente entendido, mas decodificado.

O que queremos destacar tanto na elipse que constitui um enunciado (frase, oração e período), como na estrutura do texto narrativo, é que nelas está presente um plano de conteúdo que ora pode ser recuperado, ora não, mas que está fora da moldura. Ao lermos os minicontos, percebemos que o termo ou a estrutura está ali, porém de forma ausente, o que poderá ser percebido, é claro, pela descrição, às vezes, exaustiva dos elementos da forma de conteúdo dos minicontos. Ao denominarmos elipses de estruturas da narrativa, queremos dizer que, de todos os elementos que compõem o texto narrativo, há aquele que não faz parte do relato e que, do mesmo modo, pode ser recuperado e pressuposto, ou não, a depender da trama narrativa.

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Como falamos de estrutura narrativa, é indispensável que discutamos certos conceitos. Vejamos. De acordo com as reflexões teóricas sobre a narrativa dos estudos de Tzvetan Todorov, a narrativa ideal:

Começa por uma situação estável que uma força qualquer vem perturbar. Daí resulta um estado de desequilíbrio; por ação de uma força dirigida em sentido inverso, restabelece-se o equilíbrio; o segundo equilíbrio é muito semelhante ao primeiro, mas os dois nunca são idênticos [grifos nossos]. (Todorov, 1986, p. 76).

Essa estrutura descrita por Todorov (1986) pode ser esquematizada, tendo como referência principal o protagonista da história, por três momentos distintos: 1. Equilíbrio Inicial, em que o protagonista é apresentado ao leitor, mas não se encontra em sofrimento; 2. o Desequilíbrio ou Conflito, em que o protagonista por algum motivo começa a sofrer; e 3. Equilíbrio Final, no qual o protagonista restitui o equilíbrio.

Esta superestrutura descrita por Todorov (1986) pode ser definida como a tentativa do restabelecimento de uma situação de equilíbrio, rompida por um dano ou carência do protagonista, que deve ser reparado a fim de que haja a vitória. Devemos, é claro, estender o conceito dessas nomenclaturas do autor a fim de que possamos fazer relação com os textos em estudo. Dano ou carência, por exemplo, pode significar certo mal-estar da personagem por estar na fila de um concurso, como no miniconto “Quimeras”, ou a simples questão de decidir atravessar, ou não, a avenida de determinada cidade, no miniconto “Ele”. A vitória pode simbolizar a resolução desses dramas todos e não, especificamente, a conquista de uma batalha, típica dos contos maravilhosos.

Dos estudos de Todorov (1986), ressaltamos que a situação de Equilíbrio Final pode assumir algumas variações, não especificadas no modelo do autor, tais como: (i) a personagem principal encontra-se em uma situação de completa felicidade (desfecho do tipo “happy-end”) e (ii) a personagem intensifica sua carga de sofrimento ou , ainda, encontra-se em uma situação de felicidade relativa e outras. Destacamos que essa sensação de relativo bem-estar pode, até mesmo, resultar na morte da personagem principal, desde que isso signifique um alívio para o conflito desencadeado. Neste caso, a morte configuraria a resolução do conflito.

Outro estudioso da narrativa que vale a pena trazer para as nossas observações é Claude Bremond, que fez uma revisão dos estudos de Vladimir Propp, propondo, como modelo para os enunciados narrativos, uma estrutura triádica. Sua

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proposta de esquema narrativo não se limitou ao conto folclórico, texto base das pesquisas de Propp, e pode ser expandida para as demais narrativas. A partir desse momento, falamos de estrutura dos enunciados narrativos.

Bremond, partindo do fato de que a natureza cronológica da estória implica que um evento 1º comece (= antes), 2º se desenvolva (= durante) e termine (= depois), segundo uma relação do consequente ao antecedente, estabelece uma lógica de possibilidades que esclarece o encadeamento tanto das ações, como das virtualidades e das atualizações. Bremond parte do princípio de que o processo narrativo apresenta uma situação lógica na qual atuam três papéis básicos: vítima, agressor e ajudante, que se organizam de acordo com o seguinte esquema: Degradação (em curso e a evitar) ĺ Melhora (da situação da vítima) ĺ Ajuda (demanda de um ajudante).

Caso, ao final do processo, a ajuda é recebida, então a melhora será obtida e a degradação evitada. Por outro lado, se o processo de ajuda falha ou não é iniciado, não haverá melhora e a degradação não será evitada. Adam (1985), em Le texte narratif, ao revisitar os trabalhos de Bremond (1966), salienta que a maior parte das narrativas repousa sobre a alternância entre as fases de degradação e melhora, e de equilíbrio e desequilíbrio. Os estudos de Propp e de Bremond nos oferecem uma primeira visão do que poderíamos chamar de unidade mínima da narrativa: a proposição narrativa. Adam (1985) define proposição narrativa como uma combinação de uma ou mais funções com um ou mais atores.

Interessa-nos, nesse esquema proposto, a seguinte observação de Adam (1985): há o Agente (A1), que inicia a ação ou cuja intervenção modifica o curso das coisas; o Paciente (A2), que se submete às transformações; e, por fim, o Objeto (A3), que ocupa o lugar de instrumento. As proposições narrativas irão se agrupar, formando, assim, o que poderíamos chamar de um texto narrativo.

Ora, nem sempre, nos MMCs de JGN, há um agente que inicia a ação, ou mesmo um paciente que se submete a tais transformações, ou melhor, nem sempre é possível perceber a alteração ou mudança de estado/ser das personagens. Quando isso for possível, esse elemento narrativo será percebido de maneira pressuposta; é o leitor que deve fazer essa dedução.

Esses procedimentos a respeito do funcionamento da narrativa já nos permitem traçar algumas condições para que um enunciado possa, a partir de uma abordagem estruturalista, ser definido como uma narrativa. A esse respeito, André Guirland Vieira (2001, p. 601), em seu artigo “Do Conceito de Estrutura Narrativa à sua

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Crítica”, ressalta que, em primeiro lugar, deve haver uma relação lógico-semântica entre funções e atores para que possa haver uma proposição narrativa. Para que tenhamos um texto narrativo coerente é preciso que os fatos denotados pelas proposições narrativas estejam ligados por uma relação cronológica e lógica. Para que haja narrativa, é preciso, também, que haja uma transformação entre uma situação ou estado inicial e a situação ou o estado final que funcione como uma conclusão do texto narrativo.

A situação inicial da narrativa é determinada “pelas relações existentes entre as personagens, anteriormente a qualquer ação” (D’ONOFRIO, 2004, p. 75). Consideramos dupla a situação inicial de uma narrativa: estática e conflituosa. Estática, pois a princípio não encerra nenhuma ação; e conflituosa, porque já contém, implicitamente, o conflito que desenvolverá os fatos da história. Mas será que toda narrativa se inicia com um estado de carência do sujeito em relação ao objeto? A falta deste põe sempre aquele em um estado de tensão? Dito de outro modo, em que medida essas estruturas podem ser percebidas explicitamente?

As formas narrativas conto e miniconto, por conta de sua estrutura concisa, não fazem rodeios para o desenvolvimento da ação, como vimos. Não há tempo para a descrição dos pormenores e, por isso, alguns dos elementos estarão, de fato, ausentes. Contudo, essa elipse atinge o ponto máximo nos minis de JGN. Se, nessas formas narrativas, o narrador não nos oferece a origem das personagens e o porquê de certos acontecimentos, nos MMCs esse procedimento funciona como estratégia para prender o leitor por meio de uma leitura sobremaneira rápida, diferente do romance, como nos pontua Cortázar (1974): o conto deve ganhar por knock-out.

Quanto à quebra da normalidade, “É claro que a transformação só pode ser iniciada a partir do momento em que o sujeito sai do estado de inércia, de situação, e começa a agir” (D’ONOFRIO, 2004, p. 77). Os minis de JGN, às vezes, estruturam-se, unicamente, como o relato da quebra de uma normalidade que não sabemos sequer porque se originou. Ou seja, quando um elemento está presente, não sabemos de que modo ele chegou a essa situação narrativa e é, nesse momento, que o leitor tenta deduzir o que está ausente no relato.

A situação final, descrita por Bremond, também é caracterizada como a resolução dos conflitos vividos pelas personagens. Os minicontos em estudo, às vezes, suspendem o desfecho; não há uma resolução de conflitos, pois o conflito e a intriga não se manifestam no relato e, quando conseguimos identificar o choque entre as

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personagens, bem como os seus dramas, o final fica em aberto, ou, como dizemos, fora da moldura do relato. Há acontecimento ou fatos, matéria do conto conforme Coronado (1969-1970), e também do miniconto, mas os elementos que os constituem não estão sempre presentes.

Além de Tzvetan Todorov e Claude Bremond, um dos pesquisadores a chamar a atenção sobre a existência de uma estrutura no enunciado narrativo foi Carl Gustav Jung (1945/1984). Estudando uma quantidade muito grande de sonhos, Jung reparou que o sonho tende a se organizar como um drama. Retomando o conceito aristotélico de drama, o autor chegou à conclusão de que certos sonhos (sonhos médios) apresentam tal estrutura.

Conforme Jung, os sonhos apresentam uma situação inicial, a qual Jung chamou de Exposição: indica o lugar da ação, os personagens e a situação inicial do drama. A segunda fase é o Desenvolvimento da ação. Nesta fase, a situação inicial complica-se, estabelecendo uma tensão, porque não se sabe o que vai acontecer. Logo, o sonho encaminha-se para a terceira fase, a Culminação ou Peripécia, na qual acontece alguma coisa de decisivo, ou a situação muda completamente. A quarta e última fase é a Lise, Solução ou Resultado: ocorre a resolução do problema ou da falta, apontada na dramatização onírica.

Vieira (2001, p. 602) observa que “Jung (1945/1984) não irá empregar o termo narrativa, mas drama, utilizando, assim, a mesma terminologia empregada por Aristóteles (1992). Tal fato se explica pelo estado da arte na época”. De qualquer maneira, a unanimidade entre os estudiosos da narrativa em apontar Aristóteles como seu principal precursor nos autoriza a entender, neste caso, drama como narrativa. Outro ponto salientado por Vieira (2001) é o fato de que Jung organiza sua estrutura narrativa a partir de quatro macros proposições: (1) Exposição, (2) Desenvolvimento, (3) Peripécia e (4) Resultado.

Portanto, verificamos em Todorov, a situação estável da narrativa com a apresentação das personagens, do espaço-tempo; a configuração de desequilíbrio ou conflito, e a retomada de equilíbrio. O equilíbrio final não é idêntico ao equilíbrio inicial da narrativa, pois, por conta de todo o desenvolvimento e resolução do conflito, ocorreu uma “transformação” do personagem e de determinado fato.

Em Bremond, percebemos uma estrutura sequencial parecida com equilíbrio inicial – evento perturbador – ação – resolução – equilíbrio final. Interessante, nos estudos do autor é a degradação que, provavelmente irá ocorrer. O leitor parece que

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espera um conflito que desestabiliza a paz inicial dos acontecimentos relatados. Em Jung, por sua vez, verificamos as quatro macros proposições que nos remetem às estruturas dos demais autores.

Esses esquemas interessam-nos por conta da própria natureza concisa da forma narrativa miniconto, a escolha do instante mais singular e o modo como o fato é organizado. Esses elementos destacados estarão presentes no relato, mas de forma ausente. Ora um, ora outro elemento dessa estrutura narrativa pode ser percebido ou pressuposto; outras vezes, o leitor não conseguirá recuperar o conteúdo que não foi relatado. A elipse da estrutura narrativa, a do enunciado (frase, oração e período), a frase nominal e a reticência, nem sempre poderão ser identificadas e, por isso, promoverão uma lacuna, um hiato no desenvolvimento do relato. Nesse sentido, esses recursos funcionam como procedimentos estéticos do gênero narrativo e da forma narrativa miniconto.

Essas questões ficarão mais detalhadas na seção 4, em que faremos a análise descritiva e interpretativa dos textos. Como pontua Arnaldo Franco Junior (2009, p. 34), em “Operadores de leitura da narrativa”, a primeira “é aquela voltada para a decomposição do texto em elementos menores que o constituem e o fazem pertencer a um determinado gênero literário”; a segunda “volta-se para a compreensão das possíveis relações de sentido que se estabelecem entre tais elementos que constituem o todo textual e, também, para a compreensão das possíveis relações de sentido que se estabelecem entre a ordem que preside a organização de tais elementos sob a forma de texto e a história ali narrada”. Enquanto numa a decomposição em elementos menores faculta a compreensão e a classificação das partes que o constituem, na outra é possível perceber as relações entre o texto e o seu leitor, o texto e o seu autor, o texto e a escola literária da qual faz parte e com que se vincula, assim como permite dialogar o texto com a sociedade a história.

Feitas essas considerações sobre o fora da moldura do relato, podemos, a partir desse momento, discutirmos a questão do fora da moldura da imagem fotográfica.

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3.3 O FORA DA MOLDURA DA IMAGEM FOTOGRÁFICA: O FORA DE