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4.3 “ELE”: CROQUI E ESBOÇO DE RELATO

4.3.1 O golpe do corte verbal: encobrimento e revelação

Há, no miniconto “Ele”, a simultaneidade de procedimentos de prosa e poesia, de relações de dentro e de fora da moldura textual que culminam em certo desconforto, em certa dissonância que instiga o leitor a realizar a leitura e voltar ao texto para tentar entender o que se passou na narrativa e, ao mesmo tempo, perceber a situação da personagem nesse relato. Embora faça parte das produções do século XXI, os minis de JGN lembram-nos do “poetar” moderno discutido por Hugo Friedrich (1991), em Estrutura da Lírica Moderna.

De acordo com o autor, a lírica europeia do século XX fala de modo “enigmático” e “obscuro”. Essa “obscuridade” fascina o leitor na mesma medida em que o desconcerta: “A magia de sua palavra e seu sentido de mistério agem profundamente, embora a compreensão permaneça ‘desorientada’” (p.15). A essa junção, incompreensibilidade e fascinação, Friedrich chamou de “dissonância”, uma vez que gera uma tensão que tende mais à “inquietude” que à serenidade. Assim, segundo o crítico, a “tensão dissonante” é um objetivo das artes modernas em geral; é vista nas artes como portadora da “desordem”, diferente da consonância que se liga à segurança e à garantia de tranquilidade.

O miniconto em questão provoca essa desordem ao deslocar, no relato, o que seria narrativo e linear, e “poetiza” o que poderia ser, somente, acontecimento. Além disso, o plano de conteúdo desautomatizado comporta-se de modo harmônico com a sua forma dissonante: a palavra poética em busca de um sentido.

Friedrich (1991) cita Baudelaire, Benn e Montale, a fim de caracterizar a “obscuridade da lírica moderna. Do primeiro cita, “Existe uma certa gloria em não ser compreendido”, o que, de certo modo, liga-se aos demais, “poetizar significa elevar as coisas decisivas à linguagem incompreensível, dedicar-se às coisas que tiveram o mérito de que não se venha a convencer ninguém delas”; e “Ninguém escreveria versos se o problema da poesia consistisse em fazer-se compreensível” (p. 16). Logo, diferente do poetar anterior, a lírica moderna quer ser uma criação autossuficiente, pluriforme na significação, amalgamando “tensões de forças absolutas”.

Em “Ele”, o material linguístico reduzido “nocauteia” o leitor desde as primeiras linhas; o relato configura-se como “fruto escuro cujo sumo saturado” é, na verdade, o próprio texto. É, de fato, a leitura do miniconto que “avança”, metonimicamente, em “passadas” não “decididas”. Ao modo do “andar de caranguejo”

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do miniconto “A dança”, na leitura de seu eixo sintagmático, o leitor, a cada palavra ou a cada enunciado do eixo paradigmático, envolve-se no “avançar granulado” de decodificação e codificação do texto “Ele”.

Além dessa tensão dissonante da poesia moderna, Friedrich (1991) ressalta que traços de origem arcaica, mística e oculta contrastam com uma “aguda intelectualidade”; a “simplicidade da exposição” com a complexidade daquilo que é expresso; o “arredondamento linguístico” com a “inextricabilidade do conteúdo”; a “precisão da obscuridade”, a “tenuidade do motivo” com o mais “impetuoso movimento estilístico”. Desse modo, quando se refere aos conteúdos das coisas, dos seres e dos homens, a poesia não os trata descritivamente, contudo conduz o leitor ao âmbito do “não familiar”; torna-os “estranhos”, “deforma-os”. De acordo com esses apontamentos, o miniconto faz da fábula uma desculpa para colocar a linguagem em ação por meio da trama bem realizada, que gera o duplo movimento incompreensível e oculto no modo de se contar a história.

Em “Ele” apenas o primeiro período, “Havia um rudimento qualquer puxando o seu ânimo, algo entre poeira e, quem sabe, sal”, está, sintagmaticamente, completo no texto. No segundo, “Rua após rua”, a frase nominal dá a ilusão do “avançar” da personagem, que não se realiza no miniconto, e do ato de leitura; estratégia auxiliada pela preposição “após” que particulariza a “sucessão” espaciotemporal.

O terceiro período, “Tão extremada a sua situação”, também se inicia com a frase nominal, na qual notamos a ausência de verbo ser. O que se segue, no eixo sintagmático, é a sucessão de elipses, de ausências de complementos frasais que causam a dissonância do relato e a iconização do “estado de ser” da personagem.

No quarto período, por exemplo, com o auxílio do advérbio de possibilidade “talvez”, não sabemos o que a personagem fará na ocasião em que irá ou não “atravessar a avenida e dar mais cinco ou seis passadas decididas”. A elipse dessa oração reduzida de infinitivo de valor temporal reforça a ideia do clique do instante; há um recorte do eixo sintagmático que potencializa a particularidade da forma narrativa miniconto que é a de reduzir para ampliar. Assim, o que ocorrerá na ocasião em que se irá “atravessar a avenida” e “dar passadas decididas” está fora da moldura do acontecimento.

O quinto período não preenche essa lacuna, o que pode ser percebido pela expressão “Ou não” que inicia o período e quebra a lógica da ação. De que se trata,

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apenas, o “avanço granulado, cantarolante”? O estranhamento dos elementos de eixo paradigmático, bem como a sua combinação no eixo sintagmático causam a dissonância do relato, ao mesmo tempo em que iconiza a hesitação da personagem. Se a personagem “ele” está à procura de algo que ainda não sabia dizer, é, pois, coerente que a própria linguagem sugira esse “estado de ser” por meio de recursos oblíquo e opaco. A personagem “ele”, desse modo, amalgama-se com a própria constituição do miniconto e, por isso, torna-se “hospedeiro desse fruto escuro”. Essa hospedagem gera a imbricação do relato 1, a procura da personagem, e do relato 2, a linguagem em processo.

O “sumo saturado” corresponde à estrutura concisa da linguagem em processo; a subtração da matéria linguística para a adição de conteúdos nem sempre precisos, mas poéticos, estranhos e dissonantes. O miniconto seria o croqui do relato; a extração de um acontecimento maior, resultando em sua “porção mínima”. O texto, desse modo, funciona como “pronome” e como “rudimento” de algo maior, que, ao sair da moldura textual, está dentro dela de modo obliterado.

O sexto período da narrativa remete-nos à questão da finitude discutida por Piglia (2004, p. 103), ao dizer que “há uma fatalidade no fim”, e que “Projetar-se para além do fim, para perceber o sentido, é algo impossível de se conseguir, salvo sob a forma da arte” (p. 105). O último período do miniconto é o prolongamento do “logo ali” do quarto período e do “Ali” que inicia o sexto. O narrador expande o espaço “ali” caracterizando-o por meio de encadeamentos poéticos: “esquina ventosa”; “quase irreal de tão parelha com o seu estado submerso”; “aquém do mundo”. Em “Quimeras”, a repetição da expressão “Se tudo viesse dali” promove o encadeamento da reflexão do narrador-personagem, bem como a imersão em seu estado reflexivo. Em “Ele”, o encadeamento de “ali” também sugere tanto a interiorização da hesitação da personagem, como a entrada no labirinto do discurso poético, no qual a recuperação de referentes precisos não se realiza. Há, pois, no miniconto, a aliança da linguagem opaca e da elipse que, ao mesmo tempo em que obliteram conteúdos, ampliam as possibilidades de leituras.

A elipse do desfecho e da resolução dos conflitos quebra a expectativa do leitor, por conta da imprecisão do relato e da indefinição desse “algo” que a personagem e tampouco o narrador sabem dizer. O equilíbrio final está fora da moldura textual, ou melhor, a solução do drama da personagem não faz parte do conteúdo narrativo. O leitor aguarda a possibilidade de esclarecimentos, de explicações e revelações que não acontecem. Essa frustração é aumentada por conta, também, das reticências que,

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graficamente, marcam a omissão de conteúdos. A resolução, o esclarecimento, enfim, o desfecho narrativo estão dentro da moldura textual de forma iconizada pelas reticências. Se esses conteúdos estão relatados no miniconto, eles estão presentes de modo icônico.

À “interrupção” de ação, podemos ligar a “esquina ventosa”, espaço que figurativiza a “aporia do relato” (A aporia, do gr. aporia, “caminho inexpugnável, sem saída”), definida como uma dificuldade, um impasse, um paradoxo ou um momento de auto-contradição que impedem que o sentido de um texto ou de uma proposição seja determinado. A aporia pode também ser definida como uma figura de retórica dizendo respeito aos momentos em que uma personagem dá sinais de indecisão ou dúvida sobre a forma de se expressar ou de agir.

Ao interromper a ação ou mesmo obliterar o fim do relato, a narrativa dribla a morte, a finitude, por meio do discurso literário, no qual os caminhos se bifurcam, tais como as ruas sem saída e as “esquinas ventosas” da literatura. Ao suspender a ação através do desfecho elíptico, o narrador revela uma “tentativa agônica” de dar fim ou eternização a esse intante singular clicado.

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