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4.5 “A VÉSPERA”: MOMENTO QUE PRECEDE

4.5.1 A fábula e a prosa, a trama e a poesia

Como é típico das formas narrativas conto e miniconto, não nos é informado o nome da personagem de “A véspera”, mas a identificamos por meio do pronome pessoal “ele”, como em “Ele se preparava”, “ele estava ali”, “ele já não via mais”, e pelas formas verbais que podemos associar a ele, tais como em “o vinho que lhe dava”, e “Ali, vivendo a véspera indecisa”.

Logo no início da narrativa, o leitor se depara com o estranho do relato ao ler que a personagem não tinha mais a parte visível do corpo. Assim, se ele não tinha “mais”, quer dizer que um dia teve essa “forma”. Nesse sentido, podemos pensar a relação “forma” e “fôrma” e prosa e poesia dos relatos do miniconto. “A véspera” tem o ser prosa, contudo, em sua essência, é poesia. Poesia é vista em nossa tese como a organização singular e particular das disponibilidades da língua, como a preocupação paradigmática e sintagmática da forma de conteúdo. Conseguimos identificar a “fábula”, a história de alguém que se prepara para algo, porém a organização do que seria o desenvolvimento desta forma verbal mínima, para retomar Genette (197-), faz com que a trama se destaque.

Ora, é no desenvolvimento da forma verbal que a relação intertextual singular ocorre. Caso esteja acostumado àquele tipo de leitura passiva, na qual o acontecimento sempre ocorre de maneira linear e automática por conta da “nomeação do mundo” (SARTRE, 1989), o leitor pode ter a “impressão” de estar lendo um poema tendo em vista a visão, a imagem, e não o reconhecimento (CHKLOVSKI, 1971). As palavras, portanto, estão a serviço do miniconto (ser) que, em seu procedimento literário é poesia (essência).

O segundo período, “Só pele e osso”, frase nominal, na qual está ausente o verbo ser, ressalta o “osso”, a estrutura que sustenta e “forma” o corpo, e que podemos associar ao interior, à parte de dentro dos seres, bem como a pele, ao revestimento exterior. O osso e a pele da personagem do miniconto, cuja relação com o escudeiro de Lazarillo de Tormes é significativa, figurativizam os relatos 1 e 2, caso associemos os aspectos internos aos externos.

Podemos modificar ou alterar a pele, a camada que reveste o ser, contudo, torna-se mais problemática a modificação do osso, da estrutura que os sustenta. Os minicontos de JGN são prosas em seus “elementos ósseos”: identificamos personagem, espaço e tempo, bem como as estruturas e suas ausências - (1) Exposição, (2)

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Desenvolvimento, (3) Peripécia e (4) Resultado (JUNG, 2001). Contudo, a pele que reveste a forma narrativa (prosa) é poesia, é essência.

O miniconto é narrativo, há resíduos do gênero prosa quer nos elementos, quer nas estruturas. Verificamos a matéria do conto e do miniconto, como observaram Coronado (1969-1970) e Lagmanovich (2006), todavia ele comporta-se como poesia, ao utilizar a linguagem oblíqua, a palavra motivada e transparente, para lembrar Ullmann (1964). A linguagem poética, então, oblitera os elementos e as estruturas narrativas e faz uma “tatuagem artística” na “pele” dos minicontos.

O terceiro período, iniciado pela conjunção aditiva “E”, liga-se ao anterior e adiciona predicação à personagem: “infindável memória de dias melhores na pele”. É, pois, na pele da personagem que percebemos o seu querer (dias melhores), por conta de sua magreza (Só pele e osso). O relato 1, o da fábula e da prosa, oferece-nos esses conteúdos internos; o relato 2, por outro lado, exige que saibamos perceber a imagem, a visão, bem como a trama realizada pela linguagem poética. Não há, nesse período, o verbo, a ação; a frase é nominal. Se um dos recursos da arte é o procedimento de singularização dos objetos que consiste em obscurecer a forma, tais ausências frasais particularizam a trama narrativa e aumentam a dificuldade e a duração da percepção (CHKLOVSKI, 1971).

Constituído por frase nominal, o quarto período também contribui para a descrição do instante flagrado pelo miniconto por conta da ausência do verbo e, assim como a fotografia, torna o plano de conteúdo estático. O narrador relata-nos a preparação da personagem por meio de um recorte: o momento que precede o acontecimento que não é contado.

Assim, o quinto período, composto basicamente pelo pronome demonstrativo, funciona como recurso que constrói a ligação do emissor narrador ao receptor leitor, em que aquele quer manter este atento: a função fática. Esta função encontra-se nas mensagens que servem para prolongar ou interromper a comunicação, para testar o canal, para atrair a atenção do interlocutor ou, até mesmo, confirmar sua atenção continuada. Recurso que se repete no sexto período, quando o narrador diz “digamos”. Convém lembrar que o quinto período faz parte do processo de retardamento da ação iniciada no primeiro período. Ao interromper a ação da forma verbal mínima (Ele se preparava), o narrador prolonga a descrição da personagem. Além disso, a função fática adquire no miniconto um caráter estilístico ao “fisgar” o leitor, ao mantê-lo curioso por conta da leitura, como assinala Cortázar (1974) sobre os

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aspectos do conto. Sendo assim, a função fática da linguagem estabelece a permanência da leitura. O período demonstrativo torna-se ícone do próprio miniconto: demonstrativo, pois se refere ao próprio relato narrado e conciso, uma vez que é constituído por uma única palavra significativa.

O sexto período configura-se como oração reduzida de infinitivo com valor adverbial cuja oração principal é elíptica, mas que pode ser pressuposta a partir dos períodos anteriores: a personagem possui um corpo até imperativo em algumas noites, sobretudo, ao beber o vinho que lhe dava certa nobreza em estar em si mesmo. Por conta dessa organização paradigmática e sintagmática, percebemos a supremacia da trama à fábula, e da poesia à prosa.

O sétimo período estrutura-se por sintagma nominal complexo, “um inquilino perdulário daquele metro e oitenta de altura”, e por expressão adverbial de espaço complexa, “entre uma princesa e outra, diante talvez de um escudeiro tão forte quanto ele na arte de ‘hablar’”. Apesar de a complexidade dos sintagmas, o período não tem sintagma verbal; o predicado verbal está elíptico e, assim como o quarto período, o plano de conteúdo é estático. O narrador fotografa o estado de ser da personagem por meio da descrição e da elipse e torna o fragmento estranho e deformado na perspectiva do procedimento artístico descrito por Chklovski (1971).

A retomada da ação inicial do primeiro período ocorre no oitavo do miniconto. Contudo, a conjunção “mas”, que inicia o fragmento, não adverte a ação dos períodos anteriores, não há necessariamente uma relação de contraste. O signo verbal está a serviço da narrativa, a palavra a serve.

Piteri (2009, p. 106), em “A escrita-corpo e o corpo da escrita em Llansol”, ao analisar a obra da escritora portuguesa, diz que a linguagem utilizada possibilita o aparecimento de construções inusitadas: “palavras aparentemente desconexas passam a constituir acordes harmônicos que vibram com intensidade numa pauta infindável, tecendo uma partitura que se dobra, redobra e desdobra em cores e tons vertiginosos”. Em JGN, a linguagem oblíqua constrói “figuras e imagens surpreendentes” que culminam no “embate” entre as categorias da língua.

Ao lermos, temos a ilusão de normatividade, ao refletirmos notamos a desestrutura sígnica, a discordância da linguagem. Nessa luta, a linguagem é posta em destaque, e somos convidados à luta para verificar, por meio do sensível, a relação fábula e prosa (ser) do relato 1, e trama e poesia (essência) do relato 2.

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Mesmo que nesta forma narrativa as ações sejam dinâmicas, pois de acordo com Cortázar (1974), no que diz respeito ao conto, e com Lagmanovich (2006), no que se refere ao miniconto, não há tempo e espaço para a pormenorização dos detalhes; a palavra motiva a ação. A preparação da personagem, antes retardada pela descrição, é lenta: “Mas hoje ele estava ali, preparando-se lentamente, no andamento do fôlego”, o que pode ser visto pela combinação das nasais; a escrita se faz lenta, pela nasalização, tal como a preparação da personagem. Já próxima ao fim, a narrativa dribla o leitor para um desfecho que não se resolve e, tampouco, relata o que estaria por vir.

O nono período reforça a lentidão do anterior: “Ali, vivendo a véspera indecisa, abrindo o armário com esforço, trocando a fronha, quem sabe a senha”. Conseguimos identificar, por conta dos elementos semânticos (armário e fronha), que o espaço onde a personagem prepara-se pode ser o interior de um quarto. A relação espaço interior (dentro do quarto) e exterior (fora do quarto), percebida pelo “murmúrio de fora, de lá” (nono período), contribui para aumentar o clima de ansiedade, pois a fábula está prestes a se finalizar e nada nos é informado sobre o que vai ocorrer depois: trata-se de um fragmento da véspera, o recorte de um momento particular.

O último período da narrativa não resolve o drama da personagem, mas finaliza o miniconto. A relação dentro e fora (coxilha) permanece, e o desfecho fica em aberto. Temos a impressão de que a personagem desfalece por não mais ouvir e ver “aquele vento brando na relva”; desfecho ou resolução que podemos, apenas, supor.

As elipses e as frases nominais como procedimentos estruturais auxiliam a construção da eliminação do plano de conteúdo do miniconto, juntamente com as estruturas da narrativa. Desse modo, o que estaria por detrás daquilo que não é contado pode ser somente suposto.

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