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4.2 “QUIMERAS”: CIRCUNVOLUÇÃO

4.2.1 O signo da poesia na prosa: a aglutinação dos gêneros

A construção tensionada entre prosa (relato 1) e poema (relato 2) confere ao miniconto um caráter híbrido. No miniconto “Quimeras”, há uma tensão dramática entre “o nada acontecer” e “o tudo vier a acontecer”, realizada por meio de recursos poéticos, da leveza e estaticidade das ações narrativas. Se, em “A dança”, o drama é de ordem interpessoal, o conflito entre a personagem que recebe o presente e a da “fraca companhia, sem carga de expressão”, em “Quimeras”, o drama se manifesta pelo caráter intrapessoal, entre a personagem e suas próprias reflexões e questionamentos internos.

Essa atmosfera nos é sugerida desde as primeiras linhas do texto, o que, de certa forma, remete-nos aos apontamentos particulares dessa forma narrativa descritos por Cortázar (1974), Poe (s.d.), Piglia (2004) e outros.

Poe (s.d. p. 407), por exemplo, comenta que “só tendo o epílogo, constantemente em vista, poderemos dar a um enredo seu aspecto indispensável de conseqüência, ou causalidade, fazendo com que os incidentes e especialmente o tom da obra tendam para o desenvolvimento de sua intenção”. Logo nas primeiras palavras de “Quimeras”, o aspecto poético permanece no conto como se o “epílogo” adiantasse para o leitor a supremacia dos recursos da poesia em detrimento da ação particular do gênero prosa presente no miniconto. Ou seja, não ocorre o abandono de uma forma e estrutura para que a outra ocorra.

Segundo Cortázar (1974, p. 122), “Poe descobriu a maneira de construir um conto, de diferenciá-lo de um capítulo de romance, dos relatos autobiográficos, das crônicas romanceadas de seu tempo”. Para Poe, a eficácia de um conto depende de sua intensidade como acontecimento puro, isto é: todo comentário ao acontecimento em si deve ser radicalmente suprimido; cada palavra deve confluir, concorrer para o acontecimento e não alegoria ou pretexto para generalizações psicológicas, éticas ou didáticas. Um conto, segundo Poe, é uma verdadeira máquina literária que provoca interesse e desafia o leitor.

Em “Quimeras”, a “tática da delonga” que retarda o “acontecimento puro” foge dessas elucidações de Poe, pois o narrador nos apresenta a sua reflexão por meio da descrição poética e da repetição. Porém, esse procedimento funciona, como já dito, como um falso rodeio e, aí sim, a “máquina literária” de que nos fala Poe se realiza no miniconto, pois, além de incitar o leitor a continuar a leitura e a ver que desfecho será

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dado ao texto, exige desse mesmo leitor um posicionamento teórico crítico, tendo em vista a estranheza tanto do relato como a da trama desse relato. Com isso, podemos ainda dizer que o miniconto possui “resíduos da forma narrativa” e torna-se um “organismo, um ser que respira e palpita [...] sua vida consiste – como a nossa – em um núcleo animado inseparável de suas manifestações” (CORTAZAR, 1974, p. 123). Desse modo, ao levarmos em conta a imbricação dos relatos, é possível pensarmos a própria reflexão da personagem como “encadeadora” do acontecimento no miniconto.

Cada período do miniconto, bem como a elipse, a repetição, e a “escassez de material” contribuem para a operacionalização desse organismo, promovida pela articulação entre suas partes. Cortázar (1974), no que diz respeito às “leis” do conto, comenta que não há, propriamente, leis, “no máximo cabe falar de pontos de vista, de certas constantes que dão estrutura a esse gênero tão pouco classificável” (p. 150). Nesse sentido, a “inclassificação” desta forma narrativa coopera para a configuração do entrelaçamento dos relatos 1 e 2. O miniconto “Quimeras” não pode ser inserido na “moldura rígida” das leis e das regras, não somente do conto, como de qualquer outro gênero e forma literária.

Se o conto é “irmão misterioso da poesia em outra dimensão do tempo literário” (CORTAZAR, 1974, p. 149), a estrutura do miniconto “Quimeras” remete-nos aos procedimentos do poema na prosa. O poema, comumente, foge das regras impostas à língua e às convenções; há a escolha, seja no eixo paradigmático, seja no eixo sintagmático, que faz a “nova ordem” parecer a “ordem possível” para a significação, ou seja, é a partir dessa nova rede de relações que se configura o “universo literário” do miniconto de JGN. A previsibilidade própria das estruturas narrativas dissolve-se e dá lugar ao espaço narrativo que se aproxima dos procedimentos próprios da poesia. Queremos dizer, nesse momento, que o miniconto utiliza procedimentos de produção de sentidos peculiares à poesia, pois verificamos: a discrepância da estrutura narrativa; a presença de mecanismos gramaticais típicos do poema, que resulta no poder de abstração suscitada pelos recursos verbais; a produção de imagens; a repetição, etc.

Num poema, há a presença de diferentes processos de seleção, distribuição e inter-relacionamento das diferentes classes morfológicas e das diferentes construções sintáticas. Também ocorrem, num poema, simetrias e antissimetrias inesperadas, realizando, assim, um efeito particular, cuja análise não poderia ser feita segundo as convenções gramaticais: são desvios composicionais de que, muitas vezes, o poeta se vale para poder construir a significação.

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“Quimeras” se realiza por meio de recursos imaginativos particulares do discurso da poesia. A projeção do princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de combinação no miniconto abstrai o valor “concreto” dos vocábulos. Assim, o significante, ao mesmo tempo em que possui o significado, procede a sua exclusão, levando à ambiguidade, ao uso conotado das palavras, que assumem seu valor de concretude e de abstração a depender do relato (1 ou 2) da qual fazem parte.

A prosa, como diz Jean Cohen (1974, p. 15-16), é a linguagem corrente que pode ser tomada como “norma” e o poema como um “desvio” em relação a ela. Convém explicar que “desvio” é visto nas considerações de Cohen como “erro voluntário, como estilo de algo que não é corrente, que não segue o ‘padrão usual’, mas com valor estético”. O poeta, portanto, não se expressa como todo mundo, sua “linguagem é anormal, e tal anormalidade confere-lhe um estilo” (p. 16). A prosa contemporânea de JGN não faz parte dessa norma narrativa a que Cohen se refere, pois apresenta padrões de “erro voluntário” que dão ao miniconto o “fato poético”. Se a poesia “destrói” a linguagem para reconstruí-la num plano superior, podemos dizer que “Quimeras”, ainda com resíduos do gênero narrativo, promove essa “destruição voluntária” nos moldes da linguagem poética. A diferença que nos interessa, portanto, entre prosa e poesia, é de natureza linguística, quer dizer, formal. É no “modo particular” de relações entre significado e significante e entre os significados em si que “Quimeras” se institui.

O discurso da poesia do que chamamos de relato 2 no miniconto “Quimeras” realiza-se pela peculiaridade de sua estrutura rítmica, percebida pelas repetições, pela morfossintaxe e pela semântica, que sugerem várias significações, evocando correspondências entre termos que se tornam presentes na memória do leitor, associando significantes linguísticos a significados imprecisos e nem sempre narrativos.

Uma das particularidades dos minicontos de JGN é esse constante movimento, ou melhor, a migração dos vários discursos e, principalmente, a revelação do outro lado da palavra, juntamente com a imprecisão de conteúdos. Com isso, percebemos a transcendência da palavra como um dos procedimentos da literatura contemporânea e que está, evidentemente, presente não somente em “Quimeras”, mas nos demais contos do autor em estudo. A palavra sugere mais do que, aparentemente, diz, provocando a ambigüidade peculiar do discurso literário. “Quimeras” rompe os limites da mera compreensão inteligível do texto narrativo (discurso da prosa - relato 1) e se estrutura como texto poético (discurso de poema - relato 2).

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independentes narradas no conto e no miniconto, mas, sim, da interligação de uma a outra, como bem pontua Piglia (2004), ao dizer que a intriga se oferece como um paradoxo, o que resulta no caráter duplo.

Consoante Chklovski, a imagem é um dos dispositivos pelos quais o poeta singulariza o texto, mediante a realização do estranhamento, responsável pela dificuldade que atribui densidade à percepção estética. A imagem é uma das possíveis manifestações da idéia de procedimento artístico: o conjunto de atitudes rumo ao desvio da linguagem comum em favor do imprevisto. Esse imprevisto, entretanto, não se manifesta apenas pelo conteúdo insólito da obra, mas por meio da particularização da matéria que a constitui: o signo lingüístico. Ultrapassando os limites das figuras e dos tropos, a concepção de procedimento artístico de Chklovski pode consistir em qualquer agudeza favorável ao estranhamento da disposição e da elocução da matéria: qualquer escolha e combinação que transmita a sensação de surpresa e espanto. Desse modo, a função poética da linguagem consiste na ambigüidade da mensagem mediante o adensamento do significante.

Em “Quimeras”, o narrador relata sua ida a um determinado lugar aonde irá se inscrever num tal concurso, ao mesmo tempo em que, figurativamente, reflete sobre o discurso poético. Ora, basta levarmos em consideração a “imagem”, no sentido de Chklovski, que a “criança de cabelos suados na nuca” suscita. Ela nada mais é do que a imagem, ou melhor, do que o “fruto da mente de algum sonso cidadão que por ali passara”; a criança faz parte da criação imagética do narrador; somente ela está em condições de observar “o ponto ínfimo”, “a nesga de nada sempre rebrilhando”.

O discurso da poesia na narrativa “Quimeras” se operacionaliza por meio da linguagem conotada, do adensamento do significante, o que provoca surpresa e espanto. Podemos pensar o “ponto ínfimo” e a “nesga de nada” como o próprio limite entre realidade e ficção, entre prosa e poesia, e a desautomatização da linguagem cotidiana. A criança seria a imagem do próprio procedimento artístico; quando se faz presente na reflexão do narrador, portanto na moldura do texto, torna-se a “possibilidade do poetar narrativo”. Além disso, o discurso poético é da ordem do sugerir, e da ordem do “se”.

O narrador, enquanto repete “Se tudo viesse dali”, faz com que o fazer poético se realize desde as primeiras linhas do texto e, ao fazer isso, descarta a simples possibilidade de “ter mais sossego” e de “estar contando alguma história para a criança”. É como se a personagem quisesse se afastar da previsibilidade da fábula –

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alguma história -, e quisesse, de certa forma, descrever “a poesia do instante flagrado”, mas que, na verdade, se configura, no miniconto, como a “nesga de nada sempre rebrilhando”.

O entrelaçamento do relato 2 no relato 1 permite-nos perceber a prosa e a poesia em “Quimeras”. Ao mesmo tempo em que há a ação, ocorre a descrição de um estado de ser do narrador e de um instante-espaço singularizados. Desse modo, podemos avançar essa leitura e pensar no “prazer da leitura” do texto literário, “cujo vencedor não terá nada a ganhar”, a não ser que aceite as “condições” e “exigências” da poesia.

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