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3.1 A EQUIDADE EM SAÚDE NA PERSPECTIVA DA CAPACIDADE

3.1.3 A Crítica à Equidade no Paradigma Rawlsiano

Venkatapuram (22), reconhecendo a grande influência do conceito de Whitehead na motivação de políticas públicas e de movimentos internacionais pela promoção da equidade em saúde nas últimas décadas, aponta alguns aspectos problemáticos da conceituação.

Para o autor, apesar de sua articulação detalhada, persiste uma falta de clareza no conceito sobre o escopo e o objetivo da preocupação moral e da ação política sobre a disparidade, especialmente em sua aplicação a diferentes países e contextos morais e políticos.

O questionamento feito é se a preocupação moral sobre "diferenças de saúde" está relacionada apenas aos padrões de distribuição das disparidades entre os grupos sociais, ou se deve atentar para dimensões outras, tais como: os níveis absolutos de funcionamentos e

potencial de saúde, os tipos de causas e consequências das disparidades, as possibilidades concretas de mitigação, ou, ainda, o conjunto de todas essas dimensões. Questina-se, principalmente, se o objeto da preocupação e ação seriam exclusivamente as diferenças intergrupais ou deveriam abranger desigualdades interindividuais, internas aos grupos.

A parte dessa ambiguidade nos aspectos gerais, Venkatapuram aponta uma falta de clareza também no corte oferecidos pelo conceito entre evitável e inevitável. O inevitável pode dever-se à falta de recursos ou insuficiência do conhecimento epidemiológico sobre etiologia, controle ou tratamento.

Nesses casos, o inevitável pode ser uma questão de tempo e local determinados, resultante do nível de investimento em pesquisa e desenvolvimento tecnológico. Os recursos financeiros e capacidades institucionais limitados são razões óbvias e significativas da persistência de restrições ao gozo da boa saúde em países pobres. Nesse contexto, a maioria das disparidades em saúde se tornaria inevitável, não podendo ser identificadas como iniquidades socialmente acionáveis.

Também se poderia questionar a delegação do critério do inevitável, que se pretende ético, para a instância do conhecimento científico ou epidemiologico. Isso significaria pemitir que a experiência epidemiológica definisse o escopo e conteúdo da ética, em vez da ética conduzir o propósito e escopo da ciência e da epidemiologia.

O conceito, embora produzido no paradigma dos direitos humanos e fazendo referências à teoria da justiça como equidade, assume na verdade uma visão utilitarista e cosequencialista, que prevalece sobre qualquer visão ética deontológica. Ao focar exclusivamente as desigualdades ou disparidades inter-grupais, haveria dificuldade de se utilizá-lo nas abordagens sob a perspectiva de um direito humano individual.

A parte eticamente mais preocupante dos três critérios (desigualdade desnecessária, evitável, não razoável e injusta) talvez seja precisamente como lidar com indivíduos com deficiências em saúde que sejam inevitáveis e necessárias.

Trata-se da resposta social aos indivíduos vulneráveis nessas condições, que não pode ser apenas o silêncio do conceito. Esses indivíduos vulneráveis não podem ser empurrados para fora das margens da preocupação moral, como já discutido nesta tese ao tratarmos da perspectiva dos funcionamentos de Maria Clara Dias (25).

A contribuição de Mann et al (118), embora inovadora ao trazer a observância dos direitos humanos na análise das causas, distribuição e respostas sociais às questões de saúde, não deixa de apresentar alguns problemas. Direitos humanos não são coisas naturais, mas afirmações éticas sobre reivindicações, privilégios, liberdades, imunidades e poderes em relação a várias capacidades humanas. Isso pode gerar mal-entendidos desnecessários e evitáveis e prejudicar a importante análise científica das vias causais e distribuição de deficiências.

A estrutura de saúde e direitos humanos pode ser (e de fato é) muito poderosa se suplementar, em vez de tentar substituir, a análise dos múltiplos dimensões das deficiências e da mortalidade que constituem as assimetrias em saúde.

Em síntese: Venkatapuram pondera que, embora louvável na motivação de combate à disparidades intergrupais o paradigma dos direitos humanos é insuficiente como uma estrutura ética para o tratamento da equidade. Isso porque confia demasiadamente na capacidade das instituições e nos conhecimentos científicos já existentes e impede, dessa forma, a avaliação ética abrangente das causas, persistência, níveis, conseqüências variáveis e padrões de distribuição das restrições à saúde, assim como dos possíveis remédios sociais. Estas são dimensões da saúde humana, a par de outras, que também possuem relevância moral.

Por outro lado, não podemos justificar direitos, em sua dimensão ética, apontando instrumentos legais. O raciocínio na verdade é oposto. O campo ético produz valores e estes consagram determinados direitos humanos. Ou seja, o raciocínio ético produz direitos e não vice-versa. O raciocínio ético deve debruçar-se sobre indivíduos e suas condições de saúde, não se limitando aos direitos que já lhe foram historicamente reconhecidos.

A abordagem da capacidade, ao fornecer um conceito coerente de saúde como capacidade e uma teoria de sua causalidade e distribuição, torna a saúde parte da discussão sobre os princípios primeiros de organização social e colabora para construir um direito humano à capacidade de ser saudável. Se atualmente, não existem capacidades para lidar com restrições de saúde não razoáveis ou injustas, a ética deveria nos obrigar a cria-las.

Melhorias substanciais na equidade em saúde exige mudanças sociais também significativas, exige recursos, políticas governamentais intersetoriais, participação social e assim adiante. A avaliação ética das desigualdades em saúde requer, mais do que um conjunto

de princípios casuísticos, que coloquemos a saúde no centro de nossa teorização sobre justiça social.