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As Críticas à Abordagem da Equidade em Saúde pelo STF

3.1 A EQUIDADE EM SAÚDE NA PERSPECTIVA DA CAPACIDADE

3.2.4 As Críticas à Abordagem da Equidade em Saúde pelo STF

Boa parte da crítica da abordagem jurídico-constitucional da equidade em saúde no Brasil é dirigida à intervenção assistemática do poder judiciário sobre o sistema de saúde. São as críticas formuladas, por exemplo, por Octávio Ferraz e Fabíola Sulpino, que apontam para uma interpretação dominante no judiciário brasileiro do direito à saúde como "um direito individual a atendimento médico ilimitado [...] sustentável apenas às custas dos princípios da equidade e universalidade estabelecidos na Constituição" (p.246)(151).

É necessário lembrar que a construção do direito à saúde como um direito subjetivo à prestação concreta de saúde, exercitável individual e coletivamente pelo cidadão para exigir, em concreto, a prestação correspondente do Estado, possui razões históricas no Brasil. Trata- se de construção doutrinária e jurisprudencial ligada ao contexto da redemocratização na busca dar máxima efetividade à afirmação constitucional dos direitos humanos e sociais (152,153).

O desafio atual, contudo, é o da conformação desse direito, que, como direito humano, manifesta-se em sua tríplice dimensão: como direito de liberdade, de igualdade e de solidariedade. Como direito de terceira dimensão, ou de solidariedade, enfatiza-se a ideia de vida humana digna em sociedade, de respeito recíproco aos interesses da sociedade como um todo, projetando uma pretensão difusa não apenas de curar ou evitar a doenças, mas também de ter uma vida saudável em sociedade (154).

A crítica formulada por Chieffi e Barata, mencionada no julgamento do STA 818/DF, aponta para o viés introduzido pela judicialização, onde “a interferência do Poder Judiciário na política de saúde rompe o princípio da equidade ao favorecer as demandas dos que menos necessitam, em detrimento daqueles que só podem contar com o sistema público de saúde” (p.1840)(155).

A crítica expressa o fato de que a dispensação de prestação individual de saúde por intermédio da decisão judicial favorece aqueles que já possuam um acesso privilegiado ao poder judiciário, em detrimento dos demais, que não o tenham. Fazer depender a prestação de saúde individual de uma decisão judicial, com o destaque do conjunto das pessoas na mesma situação, acaba por constituir, para os cidadãos em geral, uma dupla barreira de acesso, em prejuízo dos menos favorecidos. Além da barreira de acesso ao sistema de saúde, impõe-se a

barreira do acesso ao judiciário, ampliando a distinção entre cidadãos segundo sua capacidade de transpor tais barreiras.

A crítica aponta para a necessidade de maior respeito pelo judiciário à integridade das políticas públicas de saúde fundadas no tripé: universalidade, equidade, integralidade, especialmente nos julgamentos das ações individuais.

Essa crítica, como vimos, tem ressonância no STF, principalmente a partir da realização da Audiência Pública em Saúde, moldando as decisões do STF no sentido de reconhecer na política pública de saúde um indicador da equidade do acesso às ações serviços de saúde. Essa ponderação, contudo, ainda carece de uma sistematização mais abrangente dentro do judiciário e também de maior reflexão quanto a seus limites, não estando isenta de críticas.

O principal problema desse entendimento é que ele se fundamenta em alguns pressupostos facilmente falseáveis. O primeiro deles é o de que o sistema de saúde esteja adequadamente organizado em políticas públicas formais, normatizadas e implementadas, de forma a garantir um catálogo ou elenco suficientemente completo de ações e serviços de saúde, aptos a atender a população como um todo e de forma equitativa.

Um segundo pressuposto é o de que o déficit democrático do poder judiciário seria suprido pelo fato das referidas políticas públicas serem elaboradas através de mecanismos legislativos e administrativos democráticos, com a garantia da equilibrada participação popular e objetivando o acesso igualitário.

Para garantir a equidade em saúde, bastaria então ao judiciário garantir o acesso do cidadão a tais políticas e exigir do Estado-administrador o seu cumprimento efetivo quando sua implementação fosse falha. Essa é uma concepção ponderável e que encontra suporte no texto do art. 196 da Constituição Federal, que menciona que o direito à saúde deve ser garantido:"mediante políticas sociais e econômicas".

Porém entendemos que a hipótese corresponde, em regra, à solução dos "casos fáceis" (soft cases) levados ao judiciário, não correspondendo aos "casos difíceis" (hard

cases), na classificação de Hart (156) e Dworkin (56).

Temos a incidência dos casos fáceis quando o descabimento da desigualdade gerada é manifesta: tais como, estabelecer diferenças de classes no atendimento hospitalar com base

no pagamento de adicionais; ou a violação da fila de atendimento não justificada pela urgência ou pelas condições de saúde do paciente. Ou algumas outras hipóteses de violação de políticas públicas estabelecidas para evitar a discriminação e garantir o acesso igualitário.

Nos casos fáceis, as lacunas e obscuridades na aplicação das normas podem ser resolvidas com fundamento em um raciocínio lógico-dedutivo simples. Um raciocínio de subsunção do fato à norma. Isto porque a prévia elaboração social e legislativa já teria, quando menos, explicitado os limites de seu conteúdo fático e ético e, por consequência, os limites da atuação jurisdicional. A solução de casos fáceis corresponderiam, no aspecto moral, ao que Hare (5) denomina nível de raciocínio intuitivo.

Ocorre que esse modelo não corresponde à realidade fática de muitos dos casos em concreto. Em primeiro lugar, porque a atenção à saúde não se reduz a um catálogo de ações e serviços e não é possível operar o acesso às ações e serviços de saúde de forma desatrelada das demais políticas relacionadas direta ou indiretamente à saúde e à qualidade de vida. Uma consideração ampla da saúde implica reconhecer o caráter muldimensional da equidade em saúde, como demonstrado no Capítulo 2 desta tese, aumentando a complexidade do problema. No sentido defendido nesta tese, também não se pode abstrair a concepção ampla de saúde como capacidades e funcionamentos, ou suas relações com os determinantes sociais da saúde. Em segundo lugar, porque o caráter conflitivo do acesso a saúde a exigir pacificação diz respeito em grande parte, precisamente, ao teor das políticas públicas formuladas. Em outras palavras, a discussão jurídica e jurisdicional do acesso à saúde não pode abstrair o teor e o próprio processo de formulação de tais política.

Estas questões, somente podem ser trazidas dentro da reflexão moral e ética no âmbito do que Hare (5) denomina nível do raciocínio crítico (em oposição a raciocínio intuitivo). Isto é, tais questões não se encaixam nas fórmulas dos casos fáceis (soft cases), exigindo sua abordagem como casos difíceis (hard cases), por envolverem questões mais sutis do ponto de vista do critério ético da equidade em saúde.

Embora soluções possam ser pensadas, em uma racionalidade jurídica estrita, em termos do mecanismo de normatização, legislativa ou jurisprudencial, e de sua posterior aplicação pelo processo de subsunção do fato à norma, ocorre, com frequência, que soluções obtidas por esse mecanismo rapidamente se tornam anacrônicas em sociedades democráticas, dinâmicas e plurais. Esse modelo, em regra, deixa de fora da argumentação jurídica as questões no nível do raciocínio crítico trazidas pela reflexão ética e bioética. Um exemplo

dessa reflexão gira em torno das políticas de reparação e das políticas de reconhecimento mencionadas por Dias (25).

Muitas questões que envolvem conflitos éticos sanitários e bioéticos nessa dimensão crítica ainda não foram apreciados pela jurisdição pelo simples fato de não terem sido levados à judicialização. Entretanto, a medida que a judicialização, no escopo de pacificação social, penetre o mérito da política pública, a jurisdição irá se deparar com escolhas morais e políticas mais complexas, que demandam o raciocínio crítico. São escolhas que demandarão também uma participação ampla dos destinatários na construção da decisão jurisdicional.

Nesse sentido, uma crítica à atuação jurisdicional no Brasil é a de que ela ainda possui pouca tradição no reconhecimento da necessidade de participação e de adequada representação no processo judicial, mesmo no processo judicial coletivo, onde a necessidade se faz mais evidente.

A abordagem da capacidade, como vimos, ainda não penetrou a jurisprudência do STF também porque, em verdade, não penetrou ainda, em maior extensão, a formulação das políticas públicas. A medida em que aumenta a complexidade das políticas públicas inclusivas em sociedades plurais, essa complexidade repercutirá nas questões levadas à jurisdição e, portanto, no teor das decisões jurisdicionais.

Os casos difíceis nas sociedades atuais exigem a elaboração de soluções de compromisso, que somente são possíveis com a participação ampla dos afetados nas decisões administrativas e jurisdicionais. A necessidade e a problematização dessa participação é o objeto da próxima seção.