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2.2 A SAÚDE COMO FUNCIONAMENTO E CAPACIDADE

2.2.4 Saúde como Funcionamento e Capacidade

A intensidade e repercussão da discussão sobre o conceito de saúde exposta nesta tese atesta a riqueza e vitalidade da abordagem das capacidades em sua aplicação ao tema da saúde humana e da justiça sanitária.

Para os fins desta tese, será assumida uma perspectiva conciliatória entre as concepções expostas, pelas razões que a seguir se aponta.

A consideração da agência é relevante sobretudo se a pensarmos em sua repercussão coletiva, não meramente como uma garantia individual, mas, sobretudo, como uma garantia coletiva e um modo de efetivação da participação social na construção de sistemas de saúde que respeitem a diversidade da população à qual tais sistemas estão voltados.

Contrário senso, tampouco se pode ignorar os limites da autonomia e da agência, sob risco de, em uma idealização da liberdade, negar-se a proteção aos indivíduos com déficits significativos para o seu exercício. Porém, ainda neste caso, o mais adequado parece ser, não a rejeição da ideia de autonomia e agência, mas o suprimento da mesma, em uma perspectiva gradual e relacional.

Para o suprimento da autonomia individual importa a audiência dos interesses dos concernidos, conforme pensamento de Peter Singer e Dias, mas também a audiência da vontade individual, em toda a extensão em que esta seja possível, através de instrumentos orientados, principalmente pela ideia de autonomia relacional (106).

O conceito de saúde, em função da complexidade que lhe é inerente, não poderia encerrar-se em modelos totalizantes, pois, em razão mesmo de sua natureza, não pode prescindir de abordagens multifacetadas. Suas diferentes facetas fazem ressaltar um e outro aspecto necessário, componente da definição de saúde, quando esta é invocada em distintas circunstâncias concretas de aplicação.

Apresenta-se, assim, mais vantajosa, não a opção por um ou outro modelo, mas a opção pelo próprio processo dialógico que se estabelece entre as diferentes facetas, uma vez que, ainda que em alguma extensão possam parecer antagônicas, na verdade, encerram, todas, como norte, valores e princípios inerentes ao ser humano, transcendentes ao próprio modelo particularizado. Valores tais como os da equidade, da autonomia e do cuidado como relação incontornavelmente pessoal e afetiva e não traduzível em termos estritamente econômicos.

Em vez de contornar a pluralidade de elementos que compõem o conceito de saúde por meio da fixação de um critério único, a alternativa que nos parece mais adequada, na mesma lógica de operação de princípios que vem sendo defendida na presente tese, é a da aceitação e utilização dessa pluralidade, precisamente, para subsidiar a construção de espaços de coexistência das diferentes concepções.

Espaços que estejam atentos aos diferentes cenários humanos, sociais e políticos, nos quais tais concepções são invocadas, sem prejuízo do trânsito, ascendente e descendente, entre a universalidade daqueles princípios e a adequação dos mesmos às situações que se apresentam em sua aplicação concreta.

Assim, em vez de canalizar esforços para a construção de um conceito universal, unificador ou totalizante de saúde, esta tese prefere dedicar-se a compreender as tensões existentes entre as narrativas que inspiram os conceitos alternativos, ressaltando as vantagens e limites de cada uma, na busca de soluções que melhor contemplem o desafio premente e atual da convivência da diversidade.

Esta opção corresponde a tratar as concepções de saúde de maneira similar à lógica da ponderação de princípios, descritas no Capítulo 1, em que a prevalência de um ou de outro princípio/concepção não elimina do sistema o princípio/concepção confrontante, não lhe retira validade sistêmica e abstrata, significando, tão somente, uma prevalência em face da situação concreta em que é invocado.

Nesse sentido é que consideramos não ser possível abrir mão, na conceituação de saúde, quer da capacidade como liberdade, autonomia ou agência, quer do funcionamento como um valor próprio e intrínseco a ser protegido e, por tal motivo, componente do conceito de saúde.

A promoção da capacidade como liberdade substantiva é um objetivo necessário e incontornável à consecução da saúde, não apenas em termos individuais, mas também em

termos coletivos, conforme já assinalado. Da mesma forma o é a promoção de funcionamentos e o suprimento dos inevitáveis déficits de autonomia, liberdade e de capacidades que se apresentem nas situações concretas de vida real.

Entendemos que milita a favor da operacionalização dessa compreensão a utilização de abordagens mais intuitivas e emocionais de autonomia e de liberdade, conectadas com a autonomia relacional (106) e com a ética do cuidado (107), com repercussões não apenas para o âmbito individual e privado dos cuidados em saúde, como também para o âmbito coletivo e público, refletindo, portanto, nas políticas públicas e na tutela jurídica dos interesses dos concernidos.

As abordagens kantianas e utilitaristas afastaram os desejos e emoções, como uma interferência indesejável na objetividade exigida pelo raciocínio moral. A Ética do Cuidado recoloca as emoções como um elemento relevante para o alcance do juízo moral, em razão, principalmente, de sua importância para desvelar os elementos moralmente relevantes de uma situação.

Se o sujeito moral não se sente suficientemente concernido, tende a ignorar interesses que são relevantes e não podem ser ignorados no juízo moral. O caráter relacional das responsabilidades morais exige genuínos laços de afeto, empatia e compaixão. A Ética do Cuidado repele, portanto, a ideia de autonomia como separação do sujeito moral em relação aos demais, propondo, ao contrario, uma autonomia que se revela na relação, uma autonomia relacional (108).

A nosso ver, o suprimento da autonomia, de caráter gradativo e relacional, capta melhor os aspectos particulares, específicos e singulares dos interesses do concernido, do que qualquer forma de abstração do que sejam tais interesses ou quais os funcionamentos que lhes correspondem. Isto é, a liberdade e a capacidade de eleger, ainda quando por mecanismos de substituição, cotutela e corresponsabilidade, é um fator a ser considerado na proteção dos interesses dos concernidos, recuperando-se assim, de certa forma e na extensão do realizável, a capacidade de agência dos mesmos.

Não há, evidentemente, consensos simples em torno da conceituação de saúde, dado que a complexidade é consoante com a pluralidade característica das sociedades contemporâneas. Porém, os vetores que orientam as ponderações expostas nos modelos apresentados nesta tese permitem sopesar, nas distintas sociedades e grupos sociais, quer a

necessidade de proteção, quer a necessidade de reconhecimento, quer a promoção e suprimento de autonomia e agência, em um equilíbrio e balanço que é também resultado das características históricas particulares de cada grupo ou sociedade que a promove.

Por isso entendemos que a perspectiva mais adequada para aplicação da abordagem das capacidades no campo da saúde, que permita a pretensão de sua universalidade, é aquela que, expressamente, refere a saúde como uma combinação de funcionamentos e de capacidades e considera não somente suas possibilidades, como também seus limites, temas a serem abordados na próxima seção.

2.3 POSSIBILIDADES E LIMITES DA ABORDAGEM DA CAPACIDADE EM SAÚDE E