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2.1 A ABORDAGEM DA CAPACIDADE

2.1.5 A Crítica de Ingrid Robeyns

Uma revisão recente e, portanto, incorporando muitas das criticas anteriormente formuladas por outros autores, respondidas, refutadas ou acolhidas por Sen e Nussbaum, é apresentada de forma bastante sistemática por Ingrid Robeyns (80). A autora sumariza, na forma de perguntas, as críticas e debates em torno da aptidão da abordagem das capacidade para dar conta das questões do bem-estar, da liberdade e da justiça social.

Selecionamos, dentre as perguntas formuladas por Robeyns, cinco que consideramos centrais para os objetivos da tese. A autora questiona: 1) se tudo que é denominado capacidade é realmente capacidade; 2) se deveríamos assumir alguma lista de capacidades; 3) porque não utilizar a noção de necessidade, no lugar da noção de capacidade; 4) A abordagem da capacidade é individualista; 5) a abordagem da capacidade dá suficiente atenção aos grupos.

Na sequência, apresentaremos uma síntese das respostas da autora a essas questões.

1) se tudo que é denominado capacidade é realmente capacidade: a autora pontua que a imprecisão em relação ao que é e ao que não é capacidade deve-se muito ao caráter e à linguagem interdisciplinar da abordagem e frisa que nem tudo que é importante para o bem- estar deve ser denominado capacidade. Cita como exemplo a proposta de se definir o funcionamento ecológico-ambiental como uma metacapacidade, fazendo referência à proposta de Breena Holland (81), numa tentativa de colocar a proteção do ecossistema como uma precondição crucial e insubstituível para a discussão das capacidades. Ocorre que embora o meio ambiente seja uma precondição para o bem-estar, ele não é uma capacidade, uma vez que capacidades são oportunidades de ser e fazer, atribuíveis, portanto, ao sujeito moral, o que não é o caso do meio ambiente. A autora conclui que a pergunta reflete não uma crítica ao conceito de capacidade em si, mas, sim, uma crítica à forma pouco precisa em que o conceito é utilizado por diferentes autores.

2) se deveríamos assumir alguma lista de capacidades: também este questionamento pode ser equacionado menos com a afirmação ou negação da importância das listas de capacidades e mais com a distinção entre abordagem da capacidade e teorias da capacidade. Como já vimos, Sen concebe uma abordagem geral das capacidades para uma ampla gama de aplicações. No objetivo de uma abordagem geral, Sen sempre recusou a tarefa de construir uma lista de capacidades. Nenhuma lista única poderia ser útil a todas as aplicações possíveis da abordagem. O que não quer dizer que, ao se debruçar sobre uma aplicação específica da abordagem, a elaboração de lista de capacidades não seja útil ou mesmo necessária e indispensável. Robeyns aponta duas críticas à ausência de listas que denomina crítica fraca e crítica forte. Na crítica forte, postula-se que deve haver uma lista clara de capacidades que possa ser utilizada para todas as teorias da capacidade e suas aplicações. Esta posição é, como vimos, a de Nussbaum, com as dez capacidades centrais fundadas na dignidade do ser humano, que deveriam pautar a aplicação de qualquer teoria específica da capacidade. Sen

rejeita esta crítica forte pelo motivo que aceitá-la nulificaria a importância da agência, do processo de escolha e da liberdade na seleção da própria lista de capacidades relevantes. As listas devem ser deixadas, na opinião do autor, para os processos democráticos e procedimentos sociais participativos de escolha, objetivando implementação de políticas distributivas. A conclusão é que a escolha de listas (e não de uma lista única) de capacidades no âmbito de uma teoria específica da capacidade, deve ser sensível a natureza dessa teoria ou ao objetivo a que ela se destina, como por exemplo, a avaliação da pobreza ou a construção de uma teoria específica de justiça.

3) porque não utilizar a noção de necessidade no lugar da noção de capacidade: a construção da noção e teoria da necessidade ou das necessidades básicas precede a construção da noção de capacidade e se destina a dar conta de problemas de mesma natureza, o enfrentamento da pobreza e a promoção do desenvolvimento humano. Aqui também Robeyns faz uma distinção entre a abordagem das necessidades básicas e as teorias filosóficas das necessidades básicas. Na defesa da noção de capacidade, com apoio nas ponderações de Frances Stewart (82) aponta uma fundamentação filosófica mais elegante desta, além da razão pragmática na natureza interdisciplinar da abordagem da capacidade e sua maior aptidão para transitar do campo filosófico para o campo da política aplicada. A abordagem da capacidade foca mais o indivíduo do que a teoria sobre necessidades básicas. Outra razão, a abordagem das capacidades se destina a todo ser humano como indivíduo, pobre ou rico, e a abordagem das necessidades básicas está direcionada apenas ao indivíduo pobre ou em condições de miserabilidade e, muitas vezes, apenas nos indivíduos que vivem em países também pobres, podendo revelar um viés paternalista e discriminatório na abordagem das necessidades básicas. O próprio Sen afirma a superioridade da ideia de capacidade sobre a ideia de necessidade, por considerar esta demasiadamente focada nas commodities, tomando o ser humano de uma forma passiva e carente. Robeyns conclui reconhecendo o fato de que, por razões pragmáticas e políticas, a abordagem das necessidades básicas se tornou parte do paradigma do desenvolvimento humano. Entretanto, no nível teórico, a fundamentação filosófica da abordagem da capacidade é mais promissora do que a das necessidades básicas.

4) se a abordagem da capacidade é individualista: Robeyns primeiro questiona de que individualismo se pode estar falando: 1) do individualismo ético ou normativo; 2) do individualismo metodológico; 3) do individualismo ontológico e 4) do individualismo explanatório. O individualismo ético ou normativo assume que os indivíduos, e apenas os indivíduos, são as unidades de preocupação moral final. Ou seja, ao analisar diferentes

estados de coisas, o interesse recai apenas nos efeitos diretos e indiretos sobre o indivíduo, como indivíduo. O individualismo metodológico tem seu cerne na afirmação de que “todos os fenômenos sociais devem ser explicados total e exclusivamente em termos de indivíduos e suas propriedades” (p. 19)(83). O individualismo ontológico afirma que apenas indivíduos e suas propriedades existem, e que todas as entidades e propriedades sociais podem ser identificadas reduzindo-as aos indivíduos e suas propriedades. Nesta visão, a sociedade é construída apenas a partir de indivíduos e, portanto, nada mais é do que a soma dos indivíduos e suas propriedades. O individualismo explanatório, de maneira similar, mas abstraindo a questão ontológica, é a doutrina de que todos os fenômenos sociais só podem, em princípio, ser explicados em termos de indivíduos e suas propriedades. A questão crucial para Robeyns é que um compromisso com o individualismo normativo não é incompatível com uma ontologia que reconheça as conexões entre as pessoas, suas relações sociais e sua inserção social e, da mesma forma, uma política social voltada para certos grupos ou comunidades pode ser perfeitamente compatível com o individualismo normativo. Para a autora, a abordagem da capacidade abrange o individualismo normativo, mas essa seria uma propriedade desejável dela. Não vê, entretanto, como a abordagem da capacidade possa ser entendida como metodológica ou ontologicamente individualista. O próprio Sen analisa em suas obras processos que são profundamente coletivos e nos quais reconhece as pessoas como socialmente integradas. A abordagem da capacidade reconhece algumas estruturas não individuais e, nas várias teorias de capacidades mais específicas, o grau em que elas se afastarão do individualismo metodológico ou ontológico depende das escolhas feitas, sendo sua construção passível de se incorporarem recursos que impeçam que tais teorias de capacidade sejam metodologicamente ou ontologicamente individualistas.

5) se a abordagem da capacidade dá suficiente atenção aos grupos: esta crítica, embora associada, é distinta da crítica anterior acerca do caráter individualista da abordagem da capacidade. Robeyns afirma que uma versão forte desta crítica teria o sentido de que a abordagem da capacidade não pode prestar atenção suficiente aos grupos - que há algo no aparato conceitual da abordagem da capacidade que torna impossível sua apropriação para esse fim. Essa afirmação, segundo Robeyns, é obviamente falsa, porque existe uma ampla literatura de pesquisa analisando as capacidades médias de um grupo comparado a outro, por ex. mulheres e homens, incluindo a própria Nussbaum (20), ou grupos de pessoas com deficiência. Ademais, várias listas de capacidades que foram propostas na literatura incluem capacidades relacionadas à participação na comunidade. É o caso, novamente, de Nussbaum

que enfatiza a afiliação como uma capacidade arquitetônica (p. 34)(20). Não há, portanto, razão para se afirmar que a abordagem da capacidade não seja capaz de levar plenamente em conta a importância normativa e constitutiva dos grupos. A crítica mais fraca afirma que o estado atual da literatura sobre a abordagem da capacidade não dá atenção suficiente aos grupos. Nesse ponto a autora concorda, ponderando que, enquanto alguns teóricos da capacidade enfatizam a capacidade das pessoas de serem racionais e resistirem à pressão social e moral proveniente de grupos, outros autores da abordagem da capacidade prestam muito mais atenção à influência das normas sociais e outros processos baseados em grupos. A autora cita Alkire (84) e Nussbaum (20), entre outros, e conclui afirmando que, para entender completamente a importância dos grupos, as teorias de capacidade devem se engajar mais intensivamente em um diálogo com disciplinas como sociologia, antropologia, história e estudos culturais e de gênero. Isso fará com que as escolhas relacionadas a diversidade humana e à explicação das restrições estruturais e das teorias ontológica e explicativa do individualismo sejam mais precisas.

As críticas e ponderações apresentadas por Robeyns enfatizam, sobretudo, o caráter geral da abordagem da capacidade que é o que a habilita para, como instrumento, servir a um espectro bastante amplo de concepções de bem-estar e de justiça.

Como já afirmado nesta tese, a abordagem da capacidade é apenas um instrumento, com imperfeições e necessidade de ajustamentos, porém, um instrumento com aptidão para ser utilizado para diferentes propósitos.

Como instrumento, ela pode contribuir para a construção de diferentes teorias da justiça, como afirmado e proposto pelo próprio Sen. Para o autor, a abordagem das capacidades aponta para um foco informacional para julgar e comparar vantagens individuais globais, e não propõe, por si mesma, qualquer fórmula específica sobre como essa informação pode ser usada e "os diferentes usos podem surgir em função da natureza das questões que estão sendo abordadas" (p.266)(9).

Esta tese visa utilizar o instrumento para o fim da análise de um conceito de saúde que esteja conectado com a ideia de justiça sanitária. Para esse fim, na próxima seção, se analisará algumas propostas de conceituação da saúde a partir da ideia de funcionamento e de capacidade.