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PROPENSÃO PARA A VITIMIZAÇÃO

5 1 A CRENÇA NA VIOLÊNCIA

Ao longo da história da humanidade o Homem, diariamente, trilhou caminhos ladeados por episódios de violência. A história de Portugal enquanto Nação com quase nove séculos de existência não é excepção. Estamos repletos “ de histórias de aventura/

de batalhas de Ourique/ Reis mouros esmagados/ de heroísmos vários/ feitos de bravura/ de mundos viajados/ poemas inflamados/ a Grei, Prestes João/ o mapa cor de rosa/ a virgem aparecida/ el-rei D. Sebastião/ um Império Mundial/ caramba!”352.

A violência em sentido amplo, à escala mundial, apresenta-se como elemento constitutivo da realidade humana, repleta de múltiplas componentes. Fruto das inúmeras abordagens, tem sido compartimentada dando origem a uma multiplicidade de enfoques. A saber: a violência infantil; a violência conjugal; a violência familiar; a violência doméstica; a violência sexual; a violência no namoro; a violência contra idosos; a violência escolar; a violência laboral; a violência policial; a violência prisional; a violência instrumental; a violência institucional e um sem fim de muitos outros enfoques.

Para além dos complexos contributos conceptuais em torno da violência e fazendo ela parte integrante da realidade humana, torna-se essencial identificar os factores que nos dias de hoje nos ajudam a compreender as motivações para a sua prática apesar dos esforços para a evitar. Da personalidade do agressor, passando pelo percurso de vida até ao contexto sociocultural, “As explicações que se afastam de uma temática do assunto

passam ao lado do sentido do fenómeno, por mais distorcido que este seja, e ignoram as pessoas que são concreta ou simbolicamente maltratadas. As políticas que aqui se inspiram não podem conduzir senão ao insucesso. Indiferentes aos processos subjectivos de passagem ao acto e às suas sucessivas etapas, elas não influenciam os mecanismos que transformam em actores violentos sujeitos impossíveis, interditados, infelizes ou desqualificados.”353. Para além do discurso «da moda» de culpabilização do sistema,

convém ter presente que tanto as formas de violência como as motivações não podem ser

352

Excerto do poema intitulado Tão Longe Daqui, da autoria de Pedro Barroso disponível no CD,

Antologia 1982-1990, Movieplay, Lisboa, 2005.

353

Texto de Michel Wieviorka ao Le Monde des Débats, n.º 7, Outubro de 1999, p. 13, em KARLI, Pierre, As Raízes da Violência, Instituto Piaget, Lisboa, 2008, p. 10.

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vistas como o resultado único de uma acção directa. Por outro lado a violência com que coexistimos não pode ser compartimentada no tempo, nem no espaço.

É um facto que o Homem sempre recorreu à prática da violência ora para se afirmar, ora para se impor, através da apropriação material e/ou da negação do outro. Sempre persistiu a crença na prática da violência para obter vantagem, glória ou resolver problemas. Inúmeras foram as glorificações e o prazer pelas vitórias conseguidas através da violência. Por isso há mesmo quem fale num natural instinto de agressão354. A este propósito Hegel chegou mesmo a afirmar que “A vida só pode ser reorganizada pela

força e pelo constrangimento.”355.

A territorialidade e a espiritualidade foram, em nosso entender, ao longo da história da humanidade, as principais invocações para a prática da violência materializada através da agressividade. Se atendermos às noções de territorialidade e de espiritualidade somos confrontados com o facto de serem duas esferas distintas: a espiritualidade claramente resultante de um domínio da racionalidade enquanto a territorialidade é natural e dispensa a racionalidade. Antes e depois da existência do Homem outras espécies animais diversas se degladiaram pela posse do território controlando os instintos agressivos perante a submissão da vítima.

A descoberta da espiritualidade ficou-se a dever ao exercício reflexivo do homem com o intuito de compreender o que estava para além da lógica da matéria enquanto a territorialidade e o sentimento de pertença ao espaço ao ponto de lutar pela sua posse e domínio foram instintivos para assegurar a sobrevivência através do acesso aos alimentos disponíveis nesse espaço bem como para assegurar a continuidade da espécie através das fêmeas também disponíveis nesse mesmo espaço.

5.1.1. A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE VIOLÊNCIA

Se recuarmos até à origem da palavra violência, ficamos a saber que deriva do étimo latino violentia. Por sua vez o adjectivo violentia tem na sua base o substantivo vis que significa força o que em termos conceptuais marcou profundamente até aos nossos

354

Konrad Lorenz (1966) em MOREIRA, Adriano, Teoria das Relações Internacionais, Almedina, Coimbra, 1999, p. 248.

355

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dias a percepção da violência. Ao longo da história, a primeira conotação com o uso da violência reporta-se à subjugação do outro através da força física.

Ainda hoje persiste a concepção de que a violência existe como tal quando há derramamento de sangue, apesar da atenção crescente desde o século XIX ao sofrimento conectado com a denominada violência psicológica.

Como vimos no capítulo I, referente ao enquadramento epistemo-conceptual da vitimização, diversos investigadores, entre os quais J. Archer (1999), têm procurado demonstrar a diferença entre agressão e violência. Perrone (2000) entende a violência como “uma força de destruição de si próprio e do outro” ao passo que a agressividade é uma “força de construção e de definição do indivíduo” 356. Para além das discussões académicas, entendemos que violência e agressão estão intimamente ligadas. Será possível conceber-se uma agressão sem violência? Será possível existir violência sem que alguém seja alvo de uma qualquer agressão?

Do nosso ponto de vista é possível existir agressividade sem haver agressão, como é possível existir agressividade sem a prática da violência. Na linha de Hacker357, também acreditamos não ser possível existir agressão sem a prática de violência, nem violência sem que exista uma agressão, seja ela física ou psicológica, verbal ou sexual. Recorde-se o acento tónico por nós colocado na distinção entre violência e não violência a derivar da

ilegitimidade ou da legitimidade do exercício do acto, o que Rillaer não foi capaz de

efectuar ao defender a possibilidade de existir violência sem agressão358.

As representações sociais em torno da violência e de agressão são de natural reprovação enquanto a agressividade é colocada num plano distinto enfatizando duas vertentes opostas: a agressividade desejada e a agressividade rejeitada.

A violência, mesmo quando exercida de forma legitimada pelo Estado através do seu aparelho repressivo, materializado nas forças policiais, tende a obter uma natural reprovação em particular quando presenciada359.

356

Em KARLI, op. cit., p. 14.

357

Em, RILLAER, J. V., L’Agressivité Humaine, Ed. Pierre Mardaga, Liége, 1988, p. 24.

358

Idem, p. 24

359

Recordamos a nossa experiência enquanto Agente da Polícia da Segurança Pública em que por diversas vezes fizemos uso da força contra um agressor, em particular a pedido da vítima ou de terceiros e de acordo com o princípio da legalidade, obtivemos alguns comentários reprovadores. O agressor passou a vítima e o Polícia que foi em auxílio da vítima passou a ser o agressor contra o qual são normalmente desferidos comentários do tipo: «não havia necessidade»; «também não era preciso bater»; entre outros. Existe uma tendência natural para as pessoas se colocarem do lado da vítima, mesmo quando momentos antes tinha sido agressor.

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A agressividade desejada é a que se espera existir num atleta desportivo de

eleição. É uma agressividade exercida sempre sob o efeito condicionador da norma. O típico combate de boxe é o melhor dos exemplos em que a assistência espera encarecidamente existir agressividade de ambas as partes. Mike Tyson, considerado como um dos maiores pugilistas de todos os tempos pelas demonstrações de agressividade desejada nos rings, naquele que ficou conhecido como o combate do século a 28 de Junho de 1997, ao morder a orelha do adversário, Evander Holyfiel, violou a norma e materializou a agressividade rejeitada tendo sido desclassificado e banido da competição por um ano. Apesar de ter voltado a combater, a sua carreira entrou em declínio e o público não mais encontrou nele a atracção de outros tempos.

Em termos científicos, a percepção da motivação da prática da violência iniciou- se com o pensamento de Gall sistematizado por Cesare Lombroso, na segunda metade do século XIX, com a teoria do criminoso-nato em que características morfológicas do crânio e fisionómicas explicavam a propensão para a prática da violência numa perspectiva darwinista subjacente à evolução das espécies360.

Seguiu-se o contributo da biologia e a partir de 1965 começou-se a falar em

“cromossoma do crime” e na teoria dos “supermachos” geneticamente programados

para a violência361. Com o passar dos anos, as perspectivas deterministas de explicação da prática da violência foram pouco a pouco dando lugar a perspectivas interactivas entre o indivíduo e o ambiente social e com resultados probabilísticos.

Da herança da Sociologia da Desviância, passando pelo Interaccionismo, pela Criminologia Crítica, Criminologia Radical, Construtivismo, entre outras correntes teóricas, passámos a aceitar que o crime não é um acto natural. É, por isso, uma construção social. O mesmo, em nosso entender, não pode ser referido em relação ao acto de vitimização. Embora possam existir vitimizações específicas que resultam de construções sociais, o acto de vitimização da presa pelo predador é um acto natural puro quer seja para assegurar a sobrevivência quer seja o resultado da competição que numa perspectiva darwinista garantiu a evolução das espécies.

Foram crimes com contornos de difícil explicação e compreensão humana, como o de Pierre Rivière, ocorrido a 3 de Julho de 1835, em Faucterie, França, até nós trazido

360

WOLFGANG, M. E., Cesare Lombroso 1835-1909, in Pioneers in Criminology (ed. H. Mannheim), Stevens, 1960, p. 128.

361

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por Michel Foucault362, o caso Daniel Mac Naughten, em Inglaterra, em 1843, ou o caso Garayo, ocorrido em Espanha, em finais do Século XIX363, que obrigaram a repensar a influência da mente, ao nível do comportamento humano e social.

Sendo o crime uma construção social e a vitimização um acto natural, a violência, na sua essência, terá de ser considerada um acto natural apesar de ter dado origem a um sem fim de construções e representações sociais que mais não fizeram que a legitimar ao longo da história como um acto natural.

Por exemplo, em Portugal, há cerca de cem anos, o homem que por motivações passionais assassinasse a mulher por lhe ter sido infiel tinha como punição a obrigatoriedade de ter de mudar de comarca. Sendo a fidelidade das relações conjugais uma construção social, no caso, servia para legitimar a prática da violência do homem sobre a mulher por a considerar um acto natural.

Novas pesquisas científicas em torno do funcionamento do cérebro deram origem a novas teorias explicativas do comportamento tornando-se conhecidas como as perspectivas biopsicológicas, biopsicossociológicas e bioneurológicas.

Com especial destaque, a neurobiologia, que tem contado com o contributo do português António Damásio, radicado nos Estados Unidos da América, tem-se distinguido na busca da especificidade do mecanismo neural subjacente às emoções.364 Mas em que medida se podem compreender as emoções e os sentimentos, em particular a agressividade, através do funcionamento do cérebro? Foram inúmeras as questões levantadas com o caso Phineas Gage ocorrido no Verão de 1848365.

As dúvidas persistem apesar de algumas pistas. Por exemplo, hoje sabemos que a serotonina, enquanto neurotransmissor com correlações inversas à impulsividade e à agressividade, é um potencial regulador. A sua diminuição pode explicar um aumento da agressividade, ao passo que o aumento da serotonina pode conduzir ao aumento de comportamentos maníacos366. No entanto, conclui Damásio, “a regulação da nossa vida

adulta, requer muito mais do que esses dispositivos automáticos, dado que o nosso

362

FOUCAULT, Michel, (org.), Eu Pierre Rivière, que degolei a minha Mãe, a minha Irmã e o meu

Irmão..., Terramar, Lisboa, 1997.

363

ANTUNES, Maria João, Medida de Segurança de Internamento e Facto de Inimputável em Razão de

Anomalia Psíquica, Coimbra Editora, n.º 3, Coimbra, 2002, p. 59.

364

DAMÁSIO, op. cit., (2000), p. 154.

365

Idem, pp. 23-36.

366