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Da análise da percepção dos indivíduos em relação à vitimização, denota-se a existência de um discurso em torno da vítima e da vitimização. Em parte sustentado por conclusões de determinadas tipologias de vitimização com cobertura mediática e que facilmente são apreendidas constituindo generalizações em relação à vítima e à vitimização em geral. Tais construções chegam mesmo a ultrapassar as constatações resultantes de experiências individuais e a condicionar decisões face à vitimização.

Para Cusson148 todos os indivíduos estão sujeitos a episódios de vitimização. O que varia são as formas como lidam com esses episódios. Prova-o o facto de em cada duas vítimas em média apenas uma denuncia a vitimização. As que optam por fazê-lo seguem uma lógica de procurarem em primeiro lugar a reparação do bem lesado, em segundo lugar, por uma questão de protecção para que não voltem a ser vítimas por parte daquele agressor, em terceiro lugar para que seja feita justiça, e por último por uma questão de defesa social, subjacente a um dever cívico de protecção da sociedade. Conforme se constata, qualquer que seja a opção está profundamente marcada pelas inúmeras representações detidas pela vítima.

A revisitação do estudo Cartografia dos Medos149 ao nível dos dados estatísticos então apurados, permitiu-nos, no presente, a elaboração de um quadro teórico explicativo de alguns dos comportamentos das vítimas, bastante diferente do apresentado por Cusson.

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Conferir, sobre este assunto, ROBERT, op. cit., pp. 161-201. O autor vai mais longe ao defender que a ausência de proximidade entre vítima e predador, nos crimes contra o património, além de dificultar a denúncia, dificulta a acção pública de responsabilização e facilita a própria prática do delito.

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LOURENÇO, Nelson; LISBOA, Manuel, Dez anos de Crime em Portugal, Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 1998, p. 23.

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CUSSON, op. cit., p. 178.

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Por vezes as vítimas usam estratégias de meio termo e usam subterfúgios tanto no sentido da adaptação ou não adaptação às situações.

Entendemos que no campo das representações a relação afecto-convivencial constitui-se como o mais importante mecanismo de percepção individual da vitimização, com implicações directas nos níveis de ansiedade e na decisão de denúncia bem como na exigência de condenação do agressor por parte da vítima150. A relação da vítima com o agressor condiciona profundamente a valorização da agressão, por parte do médico, do polícia, do representante do Ministério Público e do próprio juiz.

A proximidade entre vítima e agressor tende a condicionar não só a motivação da denúncia, a resolução e acompanhamento de todo o episódio, bem como as formas de aceitação e legitimação. Não será por acaso que a proximidade e mesmo uma suposta posse do agressor em relação à vítima seja tantas vezes invocada para justificar o acto151.

Nos crimes em que existe uma relação afectiva entre vítima e agressor, o ciúme apresenta-se como outro dos factores que surge associado à propensão para a prática da violência. O ciúme apresenta-se mesmo como um factor bicéfalo na medida em que pode servir de motivação e ao mesmo tempo pode servir de legitimação e tolerância da própria agressão.

Nos crimes praticados contra as pessoas, são raros os casos em que não existe uma relação afecto-convivencial entre vítima e agressor, cenário diametralmente oposto ao verificado ao nível da prática de crimes contra o património.

A existência, ou não, entre vítima e agressor da relação afecto-convivencial conduz a uma de duas reacções: o efeito de afirmação da vitimização; o efeito de

anulação da vitimização.

O efeito de afirmação da vitimização resulta da decepção causada pelo agressor à vítima, produzida por um comportamento censurável, mais ou menos inesperado. A não tolerância do comportamento leva à sua denúncia e à exigência da sua condenação. A

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É conhecida em vários autores, entre os quais FERREIRA, Francisco Amado, Justiça Restaurativa,

Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 25, no âmbito da vitimização, a referência à vertente psico-afectiva. Entendemos a vertente psico-afectiva mais de carácter singular enquanto na, por nós definida, vertente

afecto-convivencial centramo-nos na relação afectiva entre os intervenientes num determinado episódio.

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A nossa experiência enquanto observador participante ao longo dos cerca de doze anos em que exercemos a actividade de agente policial (PSP) com funções operacionais, inúmeras vezes solicitado para a resolução de conflitos marcados pela violência, serve-nos de demonstração o facto de os agressores tenderem a justificar determinadas agressões por «serem detentores de uma certa posse sobre a vítima» com expressões do tipo: “é o meu filho”; “é a minha mulher”. A força do pronome possessivo apresenta-se deste modo como uma forma de auto-legitimação.

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desistência, pela vítima, da exigência de condenação do agressor pode resultar do receio de represálias por parte do agressor152, mas, em nosso entender, resulta sobretudo da crença na não possibilidade de reincidência. Quanto mais elevada a probabilidade de reincidência, maior é a percepção da utilidade da denúncia e maior é a motivação para que a vítima exija a condenação do agressor.

A não existência de uma relação afecto-convivencial entre vítima e agressor desencadeia na vítima uma forte vontade de denúncia e de exigência de condenação numa vertente mais altruísta. O argumento não é a auto-protecção, por representar como baixa a probabilidade de repetir a agressão, devido ao distanciamento existente entre ambos, mas o outro e em última análise a sociedade, em geral, devido à elevada probabilidade de fazer outras vítimas de forma aleatória como foi o seu caso.

A ocorrência de uma agressão com ausência de uma relação afecto-convivencial entre vítima e agressor desencadeia reacções comunitárias fortes levando mesmo a quadros de histerismo social153.

O efeito de anulação da vitimização materializa-se na decisão de não denúncia da agressão. A vítima, como forma de minimizar a dissonância cognitiva154, esforça-se por desvalorizar o episódio de violência. É frequente desenvolver sentimentos de auto- culpabilização pela agressão, desvalorizando desta forma a conduta do agressor.

A decisão de não denúncia além de passar pela desvalorização da agressão pode também ser enformada por: descrença no sistema; receio de exposição; existência de

um hipotético quadro de represálias por parte do agressor ou por parte de terceiros relacionados com o agressor. Vejamos cada um destes factores.

1) A descrença no sistema de justiça, em particular por via da representação do excesso de burocracia, contrariamente à vontade da vítima, apresenta-se como um

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FERREIRA, Francisco, op. cit., p. 69.

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Uma demonstração deste quadro foi um caso ocorrido em Ponta Delgada, em 2004, em que um indivíduo agrediu de forma violenta dois comerciantes com o intuito de os roubar, tendo circulado uma versão bastante diferente dos factos. Supostamente um indivíduo portador de anomalia psíquica teria fugido da Casa de Saúde de S. Miguel e deambulava pelas ruas a agredir pessoas, tendo assassinado uma delas. A situação levou ao encerramento das escolas, estabelecimentos comerciais e até a Presidente da Câmara, Berta Cabral, questionou o então comandante da PSP local sobre a veracidade dos factos. A Polícia foi forçada a fazer um comunicado à população através dos órgãos de comunicação para repor a normalidade.

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A conhecida teoria da dissonância cognitiva, de Leon Festinger (1957), assenta no pressuposto de que as situações incongruentes desencadeiam no indivíduo ansiedade, mal-estar e como forma de anulação o sujeito tende a desenvolver esforços para alterar o que dá causa à tal ansiedade. Todavia pode também esforçar-se por desvalorizar os indícios de contradição, procurar justificações como forma de minimização e pode ainda tentar eliminar os factores contraditórios entre si.

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importante factor que contribui para o aumento da criminalidade155 por via do aumento das taxas de reincidência dos comportamentos dos potenciais agressores.

A representação de que as denúncias efectuadas por pessoas oriundas de estratos sociais mais elevados obtêm mais sucesso ao nível do tratamento policial do que as efectuadas por pessoas de estratos sociais mais baixos, pode também influenciar a motivação da denúncia156.

Sabendo o agressor que a vítima possui baixa propensão para a denúncia, tal cenário pode contribuir para que o agressor não abandone tais práticas, podendo mesmo agravá-las. Aqui a minimização da intervenção judicial, substituída pela Justiça Restaurativa, com uma crescente intervenção da vítima na resolução do conflito, apresenta-se como uma alternativa.

2) O receio de exposição por parte da vítima, obtido através de vitimizações anteriores, ou obtido através do conhecimento de casos de pessoas que lhe são próximas, ou mesmo obtidos através dos órgãos de comunicação social, pode pesar decisivamente na vontade de não denúncia e como tal remeter-se ao silêncio.

No entanto, o receio de exposição não deve ser visto como um factor isolado. Pelo contrário, ganha particular relevo quando articulado com outros factores como a gravidade da agressão.

Tal como o agressor faz a avaliação racional para praticar o acto, medindo as vantagens e inconvenientes157, a vítima é forçada a fazer a avaliação racional entre a tolerância, a gravidade da situação, a vantagem da denúncia e a consequente necessidade de exposição.

Embora se saiba que quanto mais grave o crime, maior a probabilidade de denúncia158, sendo a violação sexual considerada socialmente um crime grave e muito censurado, metade das vítimas opta por não denunciar159.

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DIAS; ANDRADE, op. cit., p. 393.

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Um elemento policial, inquirido sobre a diferenciação no tratamento policial em função das características da vítima, falou-nos de uma postura resultante de um acto inconsciente. Exemplificou com o caso de um cidadão negligente ao nível dos cuidados de higiene, o que causa uma repulsa natural ao nível do atendimento policial, contrariamente ao verificado com um cidadão de bom aspecto e devidamente ataviado. A denúncia de um furto, efectuada por um Presidente de Câmara, não desencadeará uma motivação no elemento policial encarregue de desvendar o crime diferente daquela que desencadeia a denúncia de um cidadão comum?

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Perspectiva dos economistas ultraliberais, entre os quais Gary Becker, em ÉTIENNE et al, op. cit., p. 72

158

CUSSON, op. cit., p. 176.

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Cremos que, no caso da violência sexual, é sobretudo o problema da exposição que contribui para a não denúncia160. O peso da exposição, resultante da decisão de denúncia, parece-nos, assim, possuir pelo menos tanto peso quanto o sofrimento resultante da agressão.

3) Finalmente, a existência de um hipotético quadro de represálias por parte do agressor ou por parte de terceiros relacionados com o agressor é um factor a ter em conta devido à frequente proximidade entre vítima e agressor.

As realidades descritas, bem do conhecimento dos técnicos que diariamente lidam com o fenómeno da violência e as relações complexas entre vítimas e agressores têm, na realidade, um peso considerável na decisão ou não de denúncia.

No tocante à representação social da vitimização numa associação intrínseca temos a ainda a questão do sofrimento enquanto consequência do acto apesar de frequentemente associado a outros episódios como a morte, a perda de emprego, os desastres naturais e as doenças graves para a vida. Comum a todo o tipo de sofrimento é identificável três fases de vivência: a fase pré-episódica; a fase episódica e a fase pós episódica que pode chegar a perdurar toda a vida.