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A vítima dentro do ordenamento jurídico europeu e mesmo mundial, é responsável pela alimentação de 90% dos sistemas de justiça, através do acto da denúncia161. A consciência cívica criada em torno da vítima nos últimos 50 anos, apesar da possibilidade de reparos, fez com que uma grande parte dos Estados a nível mundial tenha consagrado nas suas constituições direitos para as vítimas de crime162.

Pelo menos as representações sociais em torno das debilidades e dificuldades das vítimas parecem ser do conhecimento dos poderes decisores em Portugal. Prova-o o facto de ter sido aprovada uma proposta de lei apresentada na Assembleia da República

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A antiga provedora da Casa Pia, Catalina Pestana, em entrevista ao jornal Sol, a 05/10/2007, declarou

que, tendo conhecimento da exposição a que são sujeitas as vítimas, se tivesse um neto que fosse vítima, aconselhava-o a não denunciar.

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DIAS; ANDRADE, op. cit., p. 138.

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Disponível a 24 de Novembro de 2010, em http://translate.google.pt/translate?hl=pt- PT&langpair=en%7Cpt&u=http://www.victimlaw.info/victimlaw/pages/victimsRight.jsp

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Portuguesa163, que entre outras medidas, previa a teleassistência a vítimas de violência doméstica e a vigilância electrónica para agressores precisamente para combater as possíveis represálias sobre a vítima.

Apesar da emergência de uma nova consciência para com a vítima, fruto dos princípios do humanismo consagrados através da Declaração Universal dos Direitos do Homem164, marcados pela exclusividade dos Estados na utilização da violência, através dos respectivos aparelhos repressivos165, as vítimas, além de serem alvo dos comportamentos criminais, têm sido desprezadas e eternamente esquecidas pelos sistemas de justiça,como veremos de seguida.

Perante a crescente regulação da vida social através de ordenamentos jurídicos, a compreensão da forma como as sociedades se organizam, bem como são geridas as relações interpessoais torna obrigatória a análise dos contornos jurídicos: “É

inquestionável o valor que o estudo da vítima possui hoje para a Ciência total do Direito penal. A vítima passou por três fases principais na história da civilização ocidental. No início, fase conhecida como idade de ouro, a vítima era muito valorizada, valorava-se muito a pacificação dos conflitos e a vítima era muito respeitada. Depois, com a responsabilização do Estado pelo conflito social, houve a chamada neutralização da vítima. O Estado, assumindo o monopólio da aplicação da pretensão punitiva, diminuiu a importância da vítima no conflito. Ela sempre era tratada como uma testemunha de segundo escalão, pois, aparentemente, ela possuía interesse direto na condenação dos acusados. E, por último, da década de cinquenta para cá, adentramos na fase do redescobrimento da vítima, onde a sua importância é sob um ângulo mais humano por parte do Estado (CALHAU, 2006, p. 36).”166

Consciente desta realidade, a Comunidade Europeia, a 15 de Março de 2001, através da Decisão-Quadro do Conselho, relativa ao estatuto da vítima em processo penal, pretendeu inverter uma tradição. Impôs obrigações aos Estados-Membros e potenciou abordagens científicas no sentido de serem

163 Disponível em 10 de Maio de 2009, em http://www.portugal.gov.pt/Portal/PT/Governos/Governos_Constitucionais/GC17/Ministerios/PCM/MP/Co municacao/Intervencoes/20090212_PCM_MP_Int_SEPCM_Violencia_Domestica.htm 164

Princípios esses acolhidos pela Constituição da República Portuguesa, conforme previsto no artigo 16.º.

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No caso português, a exclusividade do uso da violência está subjacente ao princípio da legalidade, permitindo aos cidadão o recurso à força (violência) através do conceito de legítima defesa prevista no artigo 32.º do Código Penal Português e no artigo 337.º do Código Civil Português, bem como através do conceito de Acção Directa previsto no artigo 336.º do Código Civil Português.

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Disponível a 23 de Novembro de 2010, em

http://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/6931/Vitimologia_e_Direito_Penal_Brasileiro_Assistencia_a_ Vitima

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encontradas novas propostas de intervenção167. Como forma também de conferir visibilidade à problemática da vitimização, uma das decisões foi declarar o dia 22 de Fevereiro, o Dia Europeu das Vítimas de Crime.

Para além da consciência cívica em torno da vítima significativamente vertida para o Direito há ainda um percurso longo a trilhar, desde logo, para a conquista de confiança daquela a ponto de a motivar a denunciar os actos de que foi alvo.

Para além das inúmeras justificações que as vítimas possam apresentar, desde logo, para a não denúncia do acto, não será de escamotear, pelo menos ao nível das representações sociais, a imagem que a vítima detém da protecção jurídica que lhe é disponibilizada pelo sistema de justiça. Na óptica de Van Dijk e Mayhew168 (1993), são seis as motivações da vítima em não denunciar os factos, quatro das quais directamente ligadas ao sistema judiciário e pela seguinte ordem de importância: o delito não era suficientemente grave; a polícia não poderia fazer nada; resolveu ela própria o problema; a polícia não teria feito nada; era inoportuno chamar a polícia; outras autoridades que não a polícia foram informadas.

Quando uma vítima decide denunciar uma agressão está obrigada a um conjunto de formalismos. Nos casos de violência física e/ou psicológica a vítima terá de contar o episódio no mínimo entre 7 a 10 vezes. Diz-nos a experiência que começa por se dirigir a uma esquadra de polícia onde se encontra normalmente um elemento policial à porta (sentinela) que a inquire sobre a motivação da sua presença no local. Após a vítima contar o episódio, o agente encaminha-a para o denominado graduado de serviço que passa para os autos o episódio de vitimização entretanto repetido. Independentemente de possuir um ferimento ou não é remetida para o hospital a fim de ser vista por um médico e para elaboração de um relatório. Chegada ao hospital a vítima tem de contar à recepcionista o motivo da necessidade de consulta para permitir a elaboração da ficha clínica. Remetida para o gabinete de triagem, é forçada a descrever novamente o episódio de vitimização e em função da gravidade da lesão lá acaba por ser vista por um médico, muitas vezes só depois de passar pela sala de espera, onde já teve que descrever a sua vitimização a duas ou três pessoas conhecidas que também, na sala de esperam, aguardam

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Apesar da existência da Resolução 40/34, de 29 de Novembro de 1985, da Assembleia-Geral das Nações Unidas, Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder, e respectiva aplicação através da Resolução de 1989/57 do Conselho Económico e Social, só a 15

de Março de 2001, a nível europeu, foi dado um passo decisivo, no sentido da uniformização do apoio e protecção à vítima entre os Estados-Membros da União Europeia através da uma Decisão-Quadro do Conselho. (Conferir Anexo-1)

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uma consulta médica. Além deste martírio a vítima terá de reviver a vitimização pelo menos mais duas vezes: uma durante a fase de inquérito pelo Ministério Público e outra durante a sessão de julgamento. Isto para não falar dos casos em que a vítima, em função da sua situação económica, tem de pedir auxílio a uma instituição particular de solidariedade social no sentido de obter apoio para se autonomizar do agressor.

Após decisão de denúncia, período de grande ansiedade para a vítima pela incerteza de condenação do agressor bem como da possibilidade de ser reparada pela lesão ou dano causado, é remetida para o formalismo da lei. Justifica-se, por isso, uma análise, ainda que sumária, do enquadramento jurídico, sendo de salientar, numa interpretação extensiva da lei, um notório esforço de protecção da vítima, ainda que, em termos práticos fique aquém do desejado como veremos.

Para além da Decisão-Quadro do Conselho de 15 de Março de 2001, que Portugal acolheu169, reside no Código de Processo Penal Português um conjunto de artigos, numerados do 71.º ao 82.º A, que prevêem a possibilidade de a vítima ser reparada pelos danos causados pelo agressor e respectivos procedimentos. De salientar que, conforme artigo 82.º A, apenas em situações especiais as vítimas podem ser reparadas sem que o tenham solicitado.

Começa por ser determinado no artigo 71.º que o pedido de indemnização civil de uma vítima da prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei, o que de certa forma é compreensível para se evitar uma multiplicação de processos e de procedimentos.

Sendo a excepção o pedido de indemnização em processos separados, o legislador esforçou-se por prever todo um conjunto de situações, no artigo seguinte, em que tal poderia acontecer. Em síntese pode dizer-se que o legislador procurou acautelar que em situações específicas relacionadas com a administração da justiça a vítima não pudesse ser prejudicada no acesso ao direito de indemnização. Assim se verifica logo no n.º1 alínea a) do artigo 72.º em que é fixada a possibilidade de recurso ao tribunal civil quando no processo penal não tiver sido produzida uma acusação dentro de oito meses a seguir à notícia do crime ou caso o processo tenha estado parado igual período. Também no caso do processo penal ter sido arquivado ou suspenso provisoriamente ou se o procedimento se tiver extinguido antes do julgamento há a possibilidade da vítima

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recorrer ao processo civil. Entre diversas alíneas que fixam a possibilidade de recurso ao processo civil, dentro da denominada filosofia de protecção da vítima no acesso ao direito à indemnização há a destacar a alínea i) em que o legislador fixou a possibilidade de acesso ao processo civil no caso da vítima não tiver sido informada da possibilidade de deduzir o pedido civil no processo penal através de notificação.

Quis também fixar o legislador que o pedido de indemnização das vítimas possa ser contra pessoas com responsabilidade meramente civil e estas possam intervir voluntariamente no processo penal o que constitui uma garantia notável visto que por norma num processo civil as partes (vítima e agressor) não podem intervir directamente no processo.

Compete à vítima requerer o pedido de indemnização, definindo-se como tal “a

pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime (…)”170

. A intervenção da vítima no processo restringe-se à apresentação de prova pelo dano que lhe foi causado sendo-lhe reservada uma posição processual idêntica à reservada ao arguido (agressor).

Durante a investigação, as polícias ou os magistrados, ao terem conhecimento de que existem vítimas, têm o dever de as informar que podem pedir uma indemnização e, caso as vítimas não tenham sido informadas até ao encerramento da investigação, podem fazê-lo por iniciativa própria, tratando-se de mais uma norma bastante garantística para a vítima.

A vítima pode fazer-se representar por advogado, chegando mesmo a ser obrigatória nos casos definidos em lei. Nos casos em que não é exigida a constituição de um advogado, duma forma simplificada e sem formalismos para além do respeito pelos prazos, pode a vítima requerer que lhe seja atribuída uma indemnização civil.

Durante o julgamento as vítimas são obrigadas a comparecer em julgamento apenas quando tiverem de prestar declarações a que não se podem recusar, embora em qualquer altura do processo possam desistir de prosseguir com o mesmo171, renunciar à indemnização ou requerer que o objecto da prestação indemnizatória seja convertido em diferente atribuição patrimonial, desde que prevista na lei.

Em nome da protecção da vítima foi ainda previsto que, caso a vítima não tenha feito pedido de indemnização, por motivo diverso, o tribunal, em caso de condenação do

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Artigo 74.º do Código de Processo Penal Português.

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Dados referentes a 1990 indicavam que 41% do total da vítimas desistiam dos processos em cursos em ALMEIDA, Maria Rosa Crucho de, «As relações entre vítimas e sistema de justiça criminal em Portugal»,

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agressor, atendendo às necessidades de protecção da vítima, pode atribuir um valor para reparação dos prejuízos sofridos172.

A maior inovação jurídica em Portugal, ao nível da protecção das vítimas, foi direccionado para a protecção de mulheres vítimas de violência e verificou-se com a aprovação da Lei nº 61/91 de 13 de Agosto173. Foi já nesse diploma, através do artigo 14.º, prevista a possibilidade do Estado adiantar as indemnizações devidas às mulheres vítimas de crimes de violência em conformidade com a Resolução n.º 31/77, e as Recomendações n.ºs 2/80 e 15/84 do Conselho da Europa.

Com a Lei nº 129/99 de 20 de Agosto denotou-se mais um avanço até se chegar ao actual diploma, Lei n.º 104/2009 de 14 de Setembro, em vigor desde 1 de Janeiro de 2010, em que a protecção se tornou bastante mais abrangente cobrindo as vítimas de crimes com danos graves para a saúde física e/ou psicológica.

No regime actual para que o Estado possa indemnizar as vítimas de crimes violentos e de violência doméstica, foram fixadas como condição três pressupostos: que as vítimas de crimes violentos tenham sofrido uma incapacidade permanente, uma incapacidade temporária e absoluta para o trabalho de pelo menos 30 dias ou a morte; que não tenha havido reparação do dano de que foi alvo ou que o episódio tenha provocado uma perturbação significativa ao nível da qualidade de vida da vítima; e em caso de morte, do requerente.

Mesmo nos casos em que não foi possível apurar a identidade do agressor o direito ao adiantamento da indemnização pelo Estado mantém-se podendo o valor máximo atingir as 340 unidades de conta, ou seja 34 680,00 euros visto que cada unidade de contra em 2010 estava fixada em 102,00 euros.

Apesar dos avanços registados, ao nível das vítimas que sofreram actos de vitimização mais graves, não nos podemos esquecer que estas representam apenas uma pequena parte das vítimas de crime e uma ínfima parte das vítimas em geral. As vítimas de crime continuam a ser vistas e tratadas como meras testemunhaspara fornecimento de prova para condenação do agressor, sujeitando-se por vezes aoutras formas de violência,

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Conforme Artigo 82.º-A do Código de Processo Penal Português.

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nomeadamente da violência institucional174 ao nível do trato e da obrigação sistemática de revisitação e reprodução verbal e por vezes corporal do trauma sofrido.

Se ao nível das vitimizações de violência grave foram criadas algumas garantias quanto à possibilidade das vítimas receberem as indemnizações atribuídas pelos tribunais quer o agressor tenha ou não capacidade económica para as pagar, nas vitimizações de criminalidade não classificada de grave, apesar de com frequência serem atribuídas indemnizações às vítimas, elas nunca as chegam a receber devido à insuficiência económica do agressor. Esta é, claramente, uma das maiores debilidades do sistema jurídico ao nível da protecção dos direitos das vítimas175.

À luz dos valores, preconceitos e estereótipos em torno da vítima e do episódio de vitimização, cada indivíduo faz uma interpretação, da história, da vítima à luz dos seus próprios valores e crenças. Noutra vertente, o apoio institucional está profundamente marcado por três características com efeitos devastadores nas vítimas. A morosidade dos processos176, a “visitação indesejada”177 e a falta de informação178. Este debate remete- nos para a questão da denominada persistência do sofrimento na vítima, assunto muito pouco estudado179, o qual constitui para nós também preocupação neste estudo.

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A vitimização institucional consiste na negação ilegítima de direitos, contrariando vontades individuais legítimas, sendo exercida por grupos, entidades ou organismos dominantes, sobre os dominados e constituiu um dos novos tipos de vitimização em emergência ao nível do interesse cientifico.

Um dos melhores exemplos que se pode referir sobre a violência institucional foi o caso das famílias das vítimas da tragédia de Entre-os-Rios, fruto do processo judicial que moveram para apuramento de responsabilidades pela queda da Ponte e por a Justiça não ter conseguido encontrar culpados, acabaram notificadas para o pagamento de 500.000 euros de custas judiciais, conforme foi noticiado pelos diferentes órgãos de comunicação social a 15 de Abril de 2009. Depois da forte cobertura mediática do caso e devido à intervenção do Presidente da República acabaram por não pagar, mas mesmo assim não deixou de ser exercida uma forma de vitimização através da perturbação que certamente causou aos visados.

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Compreendendo-se que seja incomportável para o Estado português assumir o adiantamento de todas as indemnizações atribuídas às vítimas e não pagas por insuficiência económica dos agressores, faz sentido que seja flexibilizada a forma de pagamento das indemnizações nomeadamente através da prestação de trabalho a favor da vítima. Em nosso entender faz também sentido a possibilidade de concessão de liberdade condicional e suspensão de penas a agressores com o propósito de trabalharem e obterem rendimentos para pagamento das indemnizações devidas às vítimas.

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Sobre a morosidade da justiça portuguesa conferir: SANTOS, Boaventura de Sousa (dir.), Portugal: Um

retrato Singular, Porto, 1993. / BARRETO, António (dir.), A situação social em Portugal 1960-1995,

Lisboa, ICS/UNL, 1996; SÁ, Jorge Vasconcelos, Portugal a Voa baixinho: um país à procura da

convergência real, Lisboa, Verbo, 1999; BARRETO, António (dir.), Justiça em Crise? Crises da Justiça,

Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2000; TAVARES, L., MATEUS, A., CABRAL, Francisco (dir.),

Reformar Portugal, Oficina do Livro, Lisboa, 2002, entre muitos outros.

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BJÖRN, op. cit., p. 4.

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Ferreira Antunes em GONÇALVES; MACHADO, (2002, Vol. I), op. cit., pp. 50-51.

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CAPÍTULO II