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Não só as acções, mas também os conceitos e as explicações tendem a ser situados no tempo e no espaço. Acto essencial para se compreender aspectos básicos da vida

107Artigo 10.º (Código Penal)

Comissão por acção e por omissão

1 — Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei. 2 — A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado.

3 — No caso previsto no número anterior, a pena pode ser especialmente atenuada. (Redacção da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro)

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social em geral. Se a necessidade de situar no tempo e no espaço um determinado objecto de estudo não nos exige grandes dissertações, o mesmo não podemos afirmar em relação ao conceito de representações sociais a que já por diversas vezes aludimos. Mas o que se pode entender por representações sociais?

As representações sociais são um conceito central na presente investigação na medida em que toda a análise empírica em torno da problemática da vitimização radica nelas mesmas. Noção profusamente explorada pela Psicologia Social, foi concebida por Moscovici (1961). Posteriormente, as representações sociais constituíram-se como uma temática amplamente dissecada pelos cientistas sociais com o intuito da compreensão dos fenómenos colectivos, o que se deve ao facto de as representações sociais serem estruturas de conhecimento partilhadas pelos grupos sociais, dos mais simples aos mais complexos.

Enquanto para Jodelet as representações sociais são “uma modalidade de

conhecimento socialmente elaborada e partilhada, com um objectivo prático e contribuindo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social”108, para

João Ferreira de Almeida: “ falar de valores e representações é referir um conjunto

multifacetado de dimensões ideológicas, de traços simbólico-culturais, que funciona como fundo comum e heterogéneo de recursos socialmente disponíveis.”109. Assim, as

práticas, as atitudes e os comportamentos têm sempre subjacente uma subjectividade interpretativa bem como uma relatividade na valoração. Quando se pensa ou se opina, necessariamente, entra-se nas dimensões simbólicas do social, apesar de se poder situar num patamar mais de cariz individual ou de cariz colectivo.

Para além da evidência de que os indivíduos são seres pensantes é frequente admitir-se que existem pensamentos que identificam os grupos ou mesmo a sociedade. Tal consciência remete-nos para o “questionamento das teorias que ignoram o contexto

social no qual os indivíduos pensam e o peso desse contexto na construção do pensamento.”110

, conforme defendeu Billig.

108

JODELET, D., «Les représentations sociales: Un domaine en expansion.» Em JODELET, D., (Ed.),

Les Représentations Sociales, PUF, Paris, 1989, p. 36.

109

ALMEIDA, João Ferreira de, Portugal – Os próximos 20 anos – Valores e Representações Sociais, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1990, p. 1.

110

BILLIG et al., em VALA, Jorge, «Representações Sociais e Psicologia Social do Conhecimento

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Moscovici111 centrou-se nos processos através dos quais os indivíduos, em contexto social, constroem teorias, conceitos e explicações em torno dos fenómenos sociais. Para tal construção contribuem, para além das teorias científicas, traços culturais, vivências e ideologias.

Nas últimas décadas, assistiu-se a uma acentuada transformação da construção das próprias representações sociais bem como dos próprios códigos comunicacionais. Outrora, com maior capacidade de perdurar no tempo, fruto da lenta transmissão das ideias face a face e em círculos restritos de amigos e familiares, com a hegemonia da globalização potenciada pelo poder dos meios de comunicação social à escala planetária, assistiu-se a uma maior volatilidade da informação e, como tal,a uma maior influência quanto à compreensão dos fenómenos bem como sobre a evolução do próprio fenómeno.

Visto que “as representações são factores produtores de realidade, com

repercussão na forma como interpretamos o que nos acontece e acontece à nossa volta, bem como sobre as respostas que encontramos para fazer face ao que julgamos ter acontecido” 112, decidimos identificar as representações sociais em torno da vitimização

em Portugal. Fizemo-lo com a intenção de compreender a construção social da realidade e respectivas influências na acção. Acreditamos que, compreendendo tais dinâmicas sociais, poderemos, entre outras possibilidades, medir a probabilidade de ocorrência dessa mesma acção e respectivas consequências.

As representações sociais são ideias e imagens comuns entre os indivíduos que constituem uma comunidade. Sendo da esfera individual o aceitar ou não uma ideia ou imagem, a aceitação e consequente partilha tem o poder de produzir a coesão social na óptica de Durkheim (1898) ou os denominados laços sociais de Travis Hirschi (1969). Como se percebe, as representações sociais possuem uma consistência ambivalente. Condicionam fortemente a acção do indivíduo, mas por seu turno as escolhas e opções dos indivíduos condicionam a construção da ideia ou imagem colectiva enquanto representação social.

Apesar de muitas das vezes serem designadas depreciativamente como ideias de senso comum, as representações sociais congregam poderes não descuráveis pela análise sociológica. Recorde-se que as representações sociais chegam mesmo a competir com o formalismo jurídico das leis. Conferem legitimidade à acção mesmo antes da existência

111

MOSCOVICI, S., A Representação Social da Psicanálise, Zarpar, Rio de Janeiro, 1976, p. 54.

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do efeito coactivo da norma jurídica. O próprio legislador, na elaboração do articulado que mais tarde lhe vai dar nome de lei, sob pena de não lhe ser reconhecida legitimidade, é nas representações sociais que fundamenta as suas decisões, isto já para não falarmos no direito consuetudinário.113

Todos nos lembramos dalei de redução dos níveis de álcool no sangue durante a condução, de 0,50 gramas por litro de sangue para 0,30, no então governo liderado pelo engenheiro António Guterres. Tendo chegado a vigorar, a lei foi suspensa pouco tempo depois. Estava-se perante uma desconformidade da norma com a representação social do consumo de álcool e o exercício de condução, apesar de cientificamente estar demonstrado que 0,3 gramas de álcool por cada litro de sangue era suficiente para afectar os reflexos e as indesejáveis consequências.

As representações sociais podem ser compreendidas como o resultado de um conhecimento prático das experiências das pessoas ou de um conhecimento doutrinário ou ideológico o qual é normalmente apontado como um conhecimento da realidade. Todavia, são sempre perspectivas em torno do conhecimento do sujeito em relação ao objecto. Abric foi ainda mais longe ao considerar que as representações sociais são o “produto do confronto da actividade mental de um sujeito e das relações complexas que

mantém com o objecto”.114

É possível falar-se em três interpretações das representações sociais: a interpretação naturalista115, a interpretação individualista116 e a interpretação etnocentrista117.

Numa perspectiva naturalista, as representações sociais são inerentes a factores naturais como o género, a idade, a cor da pele, entre outras inatas e que nascem com os indivíduos. Numa perspectiva deste tipo, é possível utilizar-se um destes factores e transformá-lo num valor de explicação absoluto para um dado fenómeno. O naturalismo

113

Consiste no Direito resultante dos usos e costumes embora não exista sob a forma escrita.

114

Em VALA, op. cit., p. 461.

115

Segundo o DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO LUSO-BRASILEIRO, II, Lello Universal, Porto, 1988, p. 322, “o naturalismo não representa na história da filosofia uma doutrina bem definida.”.

116

Na nossa óptica, foi com Raymond Boubon que ganhou maior expressão tendo-se consagrado no estudo dos processos de transformação social com Efeitos Perversos e Ordem Social, 1977, dando origem ao

Individualismo Metodológico.

117

Conferir ampla abordagem ao etnocentrismo em LARAIA, Roque de Barros, Cultura, um Conceito Antropológico, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, s/d.

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consiste no “carácter do que é natural. […] O naturalismo ocupa[-se] sobretudo da

causa dos seres e nega a existência duma causa fora da natureza.”118.

A perspectiva individualista dita que as representações sociais têm a sua origem nas ideologias sejam elas políticas, económicas ou sociais. Acérrima defensora das capacidades individuais dos indivíduos, associadas à componente económica, foi no final do século XVIII, inícios do século XIX, que começou a ganhar expressão: “R. Boudon

considera que o indivíduo não actua num vazio social, encontrando-se inserido num contexto social mais ou menos restritivo. Ele distingue dois sistemas de interacções: os sistemas funcionais, nos quais os actores estão ligados por papéis sociais, e os sistemas de interdependência, nos quais os agentes actuam em função dos seus únicos interesses.”119.

Numa perspectiva etnocentrista, as representações sociais nascem espontaneamente em contacto com os valores culturais num contexto social. Tem por base o olhar sobre o outro: “tendência para olhar outras culturas com os olhos da

cultura a que se pertence, deturpando-as.”120.

Por vezes, as representações sociais também derivam do conhecimento científico e possuem a particularidade de a ciência as poder usar na produção de novo conhecimento científico, dado que constituem parte substancial da sociedade e fundamentam as acções sociais dos indivíduos: “As representações sociais […] são

saberes engendrados e partilhados com funcionalidades práticas diversas na interpretação e no controlo da realidade. Elas constituem referências explicativas, comunicacionais e operatórias. Elas nomeiam e classificam, produzem imagens que condensam significados, atribuem sentido, ajudam, nas suas adversidades estruturadas, a reproduzir identidades sociais e culturais. Nas representações englobam-se preferências sistemáticas a que se chama valores, os quais fornecem, a quem os adopta, elementos orientadores do comportamento.”121.

Tal como representa a figura, as representações sociais têm origem difusa numa autêntica simbiose. Possuem a propriedade de conseguirem responder a necessidades concretas do indivíduo e, ao mesmo tempo, podem transformar-se e complexificar-se de

118

DICIONÁRIO ENCICLOPÉDICO LUSO-BRASILEIRO, II, Lello Universal, Porto, 1988, p. 322.

119

ÉTIENNE et al, op. cit., p. 32.

120

GIDDENS, op. cit., p. 879.

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modo dialéctico entre conhecimento científico e conhecimento prático. “Cada

representação sobre um objecto é evocada por oposição a uma outra representação.”122

Figura n.º 2 Simbiose das representações sociais. (Representação do autor)

Torna-se tarefa quase impossível determinar onde se inicia a representação social até porque existe a possibilidade de existirem representações sociais que têm origem noutras representações sociais que por sua vez derivaram de um ou mais conhecimentos científicos e de um ou mais conhecimentos práticos.

Apesar da aparente desconexão, Varela defendeu a ideia da orquestra de jazz123 para traduzir o princípio base das representações sociais. Existe um tema e, na sociedade, por analogia aos músicos da orquestra, existem vários intérpretes desse mesmo tema. A cada momento os intérpretes têm a possibilidade de serem criativos, improvisando sobre o tema em jogo. A preocupação tem de ser constante para estarem em sintonia e harmonia com os demais sob pena de fugirem ao tema e criarem dificuldades na percepção da representação. Logo, os indivíduos contribuem para a construção da representação social, mas não podem deixar de ter presente as representações sociais dos demais indivíduos sobre o mesmo objecto.

Entendemos que analisar as representações sociais permite a reconstrução da estrutura da representação detida pelos indivíduos sobre um objecto. Ao mesmo tempo permite identificar os elementos constituintes desse mesmo objecto bem como as relações

122

VALA, op. cit., p. 477.

123

VARELA, F. (1984), «The creative circle: sketches on the natural history of circularity», em P.

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intrínsecas, apesar de ser sempre globalizante e incorporar uma multiplicidade de vertentes.

No estudo Cartografia dos Medos124, com o objectivo de identificar as associações individuais constituintes das representações em torno do medo, perguntámos aos 1 590 inquiridos, de que tinham medo? O resultado foi identificar um total de 180 medos agrupados em dois tipos: os medos objectivos e os medos inconscientes. Da análise das respostas, identificámos uma multiplicidade de dimensões de significação que constituía a representação social do medo.

Figura n.º 3 Medos mais referenciados pela população de S. Miguel-Açores (Representação do autor)

Partindo das respostas obtidas, concluiu-se que existia uma forte influência das representações sociais em torno da questão securitária sobre o medo em sentido amplo. Apesar de o medo dos assaltos ter sido o mais referenciado (18%), sendo algo objectivo com hipótese de poder acontecer a qualquer um dos inquiridos, apresentava um grau de probabilidade residual. Já o medo dos acidentes de viação sendo também um medo objectivo preocupava apenas 4% dos inquiridos enquanto o grau de probabilidade de vitimar cada um dos inquiridos era três a quatro vezes superior ao de ser alvo de um assalto.

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A exemplificação apresentada é reveladora das inúmeras relações que se estabelecem entre os elementos que constituem uma representação social, bem como do facto de a existência de representações sociais em redor de uma problemática poder condicionar as percepções dos indivíduos. Assim são evidentes as diferenças entre as representações sociais sobre um dado objecto e as práticas em torno desse mesmo objecto.

Outro dos fenómenos associado às representações sociais diz respeito à frequente existência de generalizações. As ideias, conceitos e experiências generalizados, ainda que de forma parcelar, acabam por conferir robustez e legitimidade às representações, na medida em que a demonstrabilidade de um ou outro elemento, de um ou outro resultado, acaba por estar sempre presente no todo unitário que constitui uma qualquer representação social.

Moscovici classificou as representações sociais em três grupos: as representações sociais hegemónicas ou colectivas que se alimentam da comunicação massificada, são uniformes e indiscutíveis, as emancipadas que resultam da cooperação entre membros de um determinado grupo onde existe troca de significados e por fim as polémicas que resultam da confrontação de ideias, de percepções diferentes sobre um mesmo objecto.125

Não possuímos uma visão tão estanque e uniforme das representações sociais. Acreditamos na existência de uma permeabilidade de influências na sua formação. Por exemplo, será possível falar-se em representações sociais polémicas ou emancipadas livres de qualquer influência da repetição massificada de ideias? E dentro de cada um dos grupos em confronto não existirá cooperação e ideias consensuais? Entendemos que sim.

As representações sociais, em sentido amplo e em termos metafóricos, são um mosaico intemporal, sistematicamente restaurado, onde coexistem peças com diferentes idades, resultantes de metodologias de produção diferenciadas. Neste contexto, “a teoria

das representações sociais retoma de Heider a ideia de que os indivíduos pensam, e de Ichheiser a ideia de que o pensamento dos indivíduos deve ser compreendido num contexto que é social e no quadro de uma funcionalidade que é também social.”126

Independentemente das origens, as peças do mosaico articulam-se entre si e as imagens que transmitem para serem perceptíveis têm de ser consensuais. Possuem um

125

MOSCOVICI, S., «Notes towards a description of social representations», European Journal of Social

Psychology, 18, 211-250, 1988.

126

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sentido individual que deriva do todo e no todo são essas mesmas peças que lhe conferem sentido.

Apesar de tudo quanto foi referido, chegados aqui, somos forçados a recuar à questão colocada no início deste ponto que intitulámos de representações sociais. Mas, o que são afinal as representações sociais? Não é fácil defini-las visto que encerram uma grande multiplicidade de sentidos.

Em síntese, as representações sociais são uma forma de conhecimento de senso comum, objecto de análise científica. São objecto de conhecimento científico dado que incorporam boa parte da realidade social, em si próprias, e, além disso, ao condicionarem e motivarem as acções dos agentes/actores, condicionam toda a realidade social. Dessa forma, as representações sociais são objecto privilegiado das ciências sociais.

Para Moscovici127 as representações sociais são sobretudo um processo no qual a percepção do objecto e o conceito desse mesmo objecto são dependentes. “Uma

representação traduz a posição, os valores de um indivíduo ou grupo na medida em que cada objecto é transformado em algo de familiar de modo específico por cada grupo.”128

Por isso, a definição de representação social tem necessariamente de dar conta das interacções entre essa mesma percepção e esse mesmo conceito.

Na óptica de Moscovici129, as representações sociais são simultaneamente processos e conteúdos. Os conteúdos formam-se através de três dimensões: a informação; o campo de representação; e a atitude. A informação está relacionada com os conhecimentos sobre um determinado objecto, detidos por um grupo social. O campo de representação refere-se à imagem da representação. Por fim, a atitude prende-se com o posicionamento do grupo face ao objecto, podendo ser favorável ou desfavorável. Todavia, os conteúdos das representações sociais são afectados pela dispersão da informação, pela focalização dos indivíduos e pela pressão para a inferência.

Os processos nas representações sociais são de dois tipos: a objectivação e a ancoragem. A objectivação é o processo que transforma o conceito em imagem que segundo Jodelet 130 pode operar-se através da construção selectiva (retenção de elementos distintos do objecto), da esquematização estruturante (simplificação da estruturação de

127

Em, DIOGO, Ana, Famílias e Escolaridade: Representações Parentais da Escolarização, Classe Social e Dinâmica Familiar, Ed. Colibri, Lisboa, 1998, pp. 40-47.

128

DIOGO, Ana, op. cit., p. 41.

129

Idem, p. 42.

130

JODELET, D., «Les représentations sociales: Un domaine en expansion.» Em JODELET, D., (Ed.), Les

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um conceito num esquema figurativo) ou da naturalização (os conceitos abstractos transformam-se em realidades de senso comum). A ancoragem consiste no processo que completa a objectivação, sendo composta por dois mecanismos: a inserção de um novo objecto tornando-o inteligível; e o sistema de interpretação e classificação de pessoas e situações131.

Assim sendo, as representações sociais: produzem conhecimento sobre a realidade social; orientam e justificam as acções e interacções; e servem de diferenciação e identidade social132.

Neste âmbito, acreditamos que estudar as representações sociais em torno da vitimização nos permite identificar como se produz o conhecimento sobre a vitimização bem como os modos de agir e interagir com ela tornando-a interpretável. Por outro lado acreditamos que o conhecimento do fenómeno da vitimização e respectivas consequências permite-nos a antecipação e, sendo desejável, evitá-la. Entendemos, ainda, que o conhecimento das representações sociais da vitimização através da diferenciação e identidade da realidade social objectiva pode contribuir para o reforço da coesão social e por via dela para um maior controlo do fenómeno.

2.2. REPRESENTAÇÕES E PERCEPÇÕES DA VITIMIZAÇÃO – COMO