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AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA VITIMIZAÇÃO CONSTRUÍDAS PELOS ESTUDOS

2.2. REPRESENTAÇÕES E PERCEPÇÕES DA VITIMIZAÇÃO – COMO CAPTÁ-LAS?

2.2.1. AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA VITIMIZAÇÃO CONSTRUÍDAS PELOS ESTUDOS

Sem ignorar as necessidades de rigor conceptual, tendo em vista o estabelecimento de uma cadeia de relações que influenciam as representações sociais e as percepções da vitimização, foi ao nível das práticas criminais e das tipologias apresentadas pelo Código Penal Português, em que se prevê a existência de pelo menos uma vítima, que nos centrámos.

Os estudos extensivos sobre vitimização tiveram origem nos Estados Unidos da América durante a presidência de Johnson, em 1966, data em que foi realizado o primeiro denominado inquérito de vitimização138. Mais tarde estendidos a muitos outros países, entre os quais Portugal, passaram a ser os instrumentos metodológicos mais utilizados para se estudar as experiências, vivências, representações bem como as motivações da denúncia ou ocultação dos comportamentos criminais de que as vítimas foram alvo.

Consistindo num processo de questionamento para se apurar através das vítimas um conjunto de indicadores e variáveis associados à problemática, permitem inclusivamente, quando cruzados com as estatísticas oficiais da criminalidade

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BJÖRN, Lagerbäck, Vítimas de Crime e suas Reacções, APAV, Porto, 1995, p. 6.

138

DIAS; ANDRADE, op. cit., p. 138. O primeiro inquérito de vitimização teve uma amostra de 10.000

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denunciada, apurar as taxas de ocultação criminal, ou seja, as cifras negras ou números sombra, como os designou Howard Jones139.

Os inquéritos de vitimização estão longe de se poder considerar metodologias perfeitas devido ao elevado número de entraves com que têm de lidar. Assim, para além da expressiva máquina logística e consequentes custos económicos para a sua concretização140, não permitem recolher informação sobre a totalidade dos crimes. Além de estarem dependentes do grau de fiabilidade da memória dos inquiridos, há crimes em que os seus autores, devido aos interesses, valores e representações da vítima, bem como dos próprios, dificilmente desejam pronunciar-se sobre eles. Falamos, por exemplo, dos crimes de homicídio, de violência sexual, ou de criminalidade económico-financeira.

As dificuldades que as pessoas normalmente apresentam sobre falar acerca de episódios de vitimização, prendem-se com a revisitação. O facto de a violência ser um fenómeno transversal, nas mais diferentes culturas e grupos étnicos, a falta de confiança do inquirido em relação ao inquiridos, a proximidade e o conhecimento prévio da problemática em estudo, as dificuldades de compreensão, a economia de pensamento e de interesse, constituem-se como entraves a qualquer estudo do género e que as opções metodológicas têm de considerar.

Outro dos problemas dos inquéritos de vitimização resulta do facto de os dados apurados terem um valor relativo, visto que os inquiridos respondem normalmente em função dos conceitos, pré-conceitos e das representações detidas sobre cada um dos crimes, representações essas que nem sempre correspondem ao rigor e normativos jurídicos e aos objectos conceptuais construídos pelos investigadores.

Se nos crimes de cariz universal, como matar, existe correspondência ao nível da representação social e jurídica, crimes há cuja precisão jurídica está muito longe da representação social. Temos como exemplo os crimes de furto e de roubo; de sequestro e de rapto; de violação e de abuso sexual; de injúria, de calúnia e de difamação em que

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JONES, op. cit., p. 6. Os números sombra correspondem ao número de delitos praticados, mas, devido aos interesses, representações e valores das vítimas não chegam ao conhecimento das autoridades. Para a definição de uma política criminal a implementar são de extrema importância.

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Para que os inquéritos de vitimização tenham representatividade da vitimização real são necessárias amostras de grande dimensão. O primeiro inquérito nacional realizado nos Estados Unidos, em 1973, teve uma amostra de 120.000 pessoas. Para o inquérito de vitimização português, de 2009, com dimensão nacional, foi definida uma amostra de 8 000 pessoas.

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existe uma enorme desconformidade entre a representação social e a representação jurídica.141

Um dos dados que os inquéritos de vitimização têm demonstrado é que existe uma grande desconformidade entre a representação da realidade criminal através dos dados estatísticos policiais142 e a representação da realidade obtida através das respostas das pessoas ouvidas nos inquéritos de vitimização.

As estatísticas policiais dizem-nos que, há mais de duas décadas, o agrupamento de vítimas de crimes contra o património constitui o maior dos agrupamentos de denúncias às forças policiais ultrapassando os 50% do total denunciado143, enquanto as denúncias de crimes contra as pessoas não atingem os 30% do total. A nível internacional, o cenário é idêntico: “uma em cada quatro pessoas foi vítima de, pelo

menos, uma predação, enquanto a proporção é de uma em cada vinte para as agressões.”144.

Curiosamente os inquéritos de vitimização descrevem-nos um cenário completamente diferente, o que está relacionado com as dificuldades divergentes que as vítimas têm em denunciar os diferentes crimes. Por exemplo, no inquérito realizado em S. Miguel145, concluiu-se que 57% dos inquiridos tinham sentido facilidade em denunciar os crimes contra o património enquanto nos crimes contra as pessoas apenas 42% das vítimas afirmaram não terem sentido dificuldades.

O cenário descrito é revelador da existência de mais um paradoxo aparente. Sendo os crimes denunciados contra as pessoas, na realidade, mais frequentes que os crimes contra o património, nos primeiros existe a particularidade de ser frequente a vítima conhecer o agressor, enquanto nos segundos, os crimes contra o património, na esmagadora maioria, a vítima desconhece o agressor ou predador conforme o designa

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No estudo Cartografia dos Medos, realizado, em 2003, na ilha de S. Miguel, com uma amostra de 1.590 pessoas de um universo de 130.142 residentes (Censo de 2001), apurámos que a maioria dos inquiridos não sabia distinguir furto de roubo e tinha mesmo grande dificuldade em distinguir crimes praticados contra as pessoas de crimes praticados contra o património, sendo, por exemplo, frequente considerarem os crimes de furto ou de roubo crimes praticados contra as pessoas.

142

No caso português, vertidos anualmente para os Relatórios de Segurança Interna.

143

Conferir quadro comparativo com dados desde 1997, no Relatório Anual de Segurança Interna de 2006, p. 48. O peso da criminalidade praticada contra o património manteve-se como o maior dos agrupamentos criminais entre todos os crimes denunciados às forças policiais, em Portugal, em todos os relatórios anuais de segurança interna, até 2009.

144

ROBERT, op. cit., p. 90.

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Philipe Robert146. A motivação para a denúncia varia em sentido inverso à proximidade existente entre vítima e agressor. Para Lourenço e Lisboa a motivação da denúncia prende-se essencialmente com a gravidade atribuída ao acto, o sentimento de cumprimento de um dever cívico, a vontade de reaver o objecto furtado e a necessidade de obter ajuda.147