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2. O Estado enquanto Empregador de Última Instância

2.3. A criação direta de postos de trabalho: o Empregador de Última Instância

Programs must be consistent with the nature of the beast

Hyman P. Minsky Na interpretação de Minsky, a forma de organização da economia estadunidense do pós-guerra até o final da década de 1970 se mostrava incapaz de atingir, muito menos de sustentar, uma condição de pleno emprego, tampouco de estabelecer uma tendência de estreitamento das remunerações relativas do trabalho. Em seu entendimento, se o padrão de determinação da demanda agregada imposto pelos setores líderes da economia conduz a mudanças regressivas na distribuição de renda e nos níveis de emprego e de pobreza, a saída é alterar o padrão de influência de tais setores sobre a economia. Por isso, na contramão da legislação de Johnson, Minsky defende um programa direto de criação de empregos, para os quais se contratem ofertantes de mão de obra na situação mesma em que se encontrem, independentemente de qualificação e treinamento: o Estado assumindo a posição de Empregador de Última Instância. Seu mérito é justamente conduzir à situação em que haja mais postos de trabalho que trabalhadores, pela geração de postos de trabalho a todos indivíduos dispostos a trabalhar, em período integral ou parcial. Torna-se responsabilidade do Estado prover oportunidades de emprego nos setores, nas atividades e nos períodos de tempo em que a iniciativa privada for hesitante e insuficiente. (MINSKY, 1968, p. 39; 1975a, p. 149- 50).

Minsky reconhece que as interpretações iniciais da Teoria Geral de J. M. Keynes conduziram ao entendimento genérico, “keynesiano”, de que a contenção do desemprego via gasto público deveria se dar por meio de obras públicas financiadas pela emissão de dívidas, o que, além de garantir postos de trabalho e renda, ainda deixaria como legado bens de capital públicos, sob a forma de infraestrutura. A alternativa proposta pelo autor substitui o destino dos gastos públicos da criação de recursos para uma “multitude de transferências de

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pagamentos”; da formação de estoques de riqueza para o estabelecimento de fluxos de renda. (MINSKY, 1986, p. 334-5). Em oposição à estratégia de, por meio de políticas públicas, estimular o investimento privado e o crescimento econômico, Minsky fornece uma estratégia alternativa: uma política econômica deliberada de geração irrestrita de empregos públicos. Tal posicionamento do Estado - coadunado com outras formas de atuação, como tributação progressiva, programas de transferência de renda e a oferta de serviços públicos - além de impactar diretamente sobre o nível de emprego e garantir um posto de trabalho para todo indivíduo que deseja auferir renda, contribuiria também para a redução da desigualdade de renda de forma geral e do peso das receitas de capital na renda total, bem como da probabilidade de ocorrência de processos inflacionários e de fragilização financeira – objetivos fundamentais a uma estratégia efetiva de aproximação ao pleno emprego com interesse na estabilidade macroeconômica. (MINSKY, 1973, p. 92-4).

O autor parte do entendimento, pois, de que a remuneração do trabalho é apenas parte da renda total, composta também pelos rendimentos de propriedade – lucro e juro – e pelos ganhos de capital acima dos aumentos no nível de preços. Tais componentes adicionais enviesam a distribuição do crescimento da renda em favor às classes mais abastadas, detentoras de ativos, e prova disso é expressa nas estatísticas sobre a pobreza, segundo as quais grande porcentagem das populações pobres se encontra empregada em tempo integral durante todo o ano. No que tange à redução da pobreza e a equalização da renda, portanto, o aspecto que interessa a Minsky é a renda do trabalho, precisamente a única disponível à população trabalhadora. Para, portanto, “(...) que sua renda se aproxime da renda média, é necessário primeiro que se melhore sua posição em relação às demais remunerações do trabalho”. (MINSKY, 1969, p. 59-60).

O instrumento preconizado por Minsky, pois, é “a criação de uma demanda infinitamente elástica por trabalho, sob um salário mínimo que não depende das expectativas de curto ou de longo prazo dos empresários.” (MINSKY, 1986, p. 343, tradução nossa). Trata-se, sob outro ponto de vista, de uma oferta infinitamente elástica de postos de trabalho, direcionada a um amplo espectro de funções e localizações geográficas, com a ressalva de não deprimir a oferta de trabalho nas demais ocupações e nem a demanda sobre os bens e serviços fornecidos pelo setor privado, o que acabaria por criar pressões de alta nos salários e nos preços. (MINSKY, 1986, p. 345).

Para o autor, deve tratar-se necessariamente de um esforço público porque o Estado é o único agente capaz de divorciar a demanda de emprego – e a oferta de um posto de

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trabalho – da expectativa de lucratividade com a produção. Da mesma forma, a produção resultante do aumento no nível de emprego também será pública, e, ainda que não se trate de produtos vendáveis no mercado, estará direcionada ao bem-estar das comunidades. (MINSKY, 1986, p. 343). “Os empregos disponíveis deverão ser serviços intensivos em trabalho que conduzem a benefícios públicos diretamente visíveis, como cidades mais limpas e seguras e parques e instalações recreacionais em maior número e sob melhor manutenção.” (MINSKY, 1973, p. 99, tradução nossa). Ademais, como se trata de uma geração permanente de empregos, cuja oferta operará como variável de ajuste ao longo das flutuações, as tarefas a serem desempenhadas pela mão de obra adicional deverão ser constantemente revistas e redesenhadas conforme as necessidades das comunidades e o nível de atividade do setor privado. (MINSKY, 1986, p. 343).

Esta alternativa de posicionamento estratégico, segundo o autor, configura também um reordenamento de prioridades:

(...) the services provided by public employment will be distributed at least on a fair share basis and, more than likely, on a progressive basis. The areas, neighborhoods and population groups with the highest unemployment would naturally receive a larger portion of the useful output produced by such employment. (MINSKY, 1973, p. 100).

A estratégia de oferta pública de empregos tem como objetivo, ao contrário das promessas de crescimento e posterior distribuição dos incrementos à riqueza do estímulo ao investimento privado, um melhor uso presente das capacidades correntes disponíveis, bem como uma distribuição mais equitativa dos rendimentos totais da produção corrente: “Não é necessário comprometer a justiça e a qualidade em função de uma necessidade derrogatória de indução do investimento”. (MINSKY, 1973, p. 101, tradução nossa).

O atributo de uma fonte de empregos e de renda deste gênero, nesse sentido, é duplo. Em primeiro lugar, desde que a totalidade da estrutura orçamentária do Estado seja precisamente do tamanho que lhe permita “(...) assegurar que oscilações no investimento privado conduzam a oscilações compensatórias suficientes no déficit público de forma a estabilizar os lucros” (MINSKY, 1986, p. 330, tradução nossa), a atuação do Estado não será por si só inflacionária. Além disso, o quantum de postos de trabalho a ser oferecido pelo setor público será inversamente proporcional ao nível de atividade e ao estado de expectativas no setor privado e, por isso, atuará justamente como variável de ajuste, cujo reflexo, por sua vez, é a posição das contas públicas.

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Se o nível de emprego do setor privado diminuir, em função da queda da demanda efetiva, ou ainda, segundo as interpretações neoclássicas, em função da alta de salários resultante de pressões trabalhistas, a oferta de trabalhadores para os postos de trabalho ilimitados disponibilizados pelo Estado irá aumentar e o déficit público irá subir. Flutuações no nível de atividade, portanto, impactarão não sobre o nível de emprego global, mas sobre a quantidade de postos de trabalho a serem ofertados em última instância e, portanto, sobre o déficit público. O aumento automático do gasto público, por sua vez, atuará como mecanismo contracíclico, servindo de estímulo à demanda para o setor privado. Por outro lado, diante da recuperação da atividade econômica e ao longo dos períodos de alta das flutuações, com o aumento do emprego privado e a consequente queda do emprego público, o déficit público poderá tender a zero ou até mesmo tornar-se um superávit, a ponto de refrear a dinâmica de determinação dos lucros e a própria tendência ao boom. Com o sistema de empregos de última instância em operação, uma queda na demanda agregada não será combatida via estímulo ao investimento, incentivos fiscais e aumento da oferta de moeda. Por isso, seu potencial inflacionário, na interpretação do autor, é muito menor que o das estratégias correntes, e o ajustamento fiscal automático em função da magnitude dos déficits ou superávits pode atuar como um eficiente estabilizador contracíclico da atividade econômica e da distribuição de renda. (MINSKY, 1986, p. 325;348-9; 1973, p. 99).

Em segundo lugar, uma vez definidas as regras pelas quais serão oferecidos postos de trabalho, será também determinado um salário mínimo efetivo, garantido por uma alternativa real e perene de trabalho, tornando desnecessária a obrigação da cobertura de um patamar mínimo de salário no setor privado. (MINSKY, 1973, p. 99). Ao determinar o salário pelo qual está disposto a empregar todos os trabalhadores disponíveis, o Estado acabará por determinar também um piso salarial para o setor privado, via competição – a qual pode se dar tanto em termos de salários propriamente ditos quanto da oferta de benefícios ou diferenciais de condições de trabalho, ou qualquer combinação entre os três elementos. Um salário mínimo assim definido teria uma importante função estabilizadora, servindo de âncora para os demais preços. (MINSKY, 1986, p. 349).

Além disso, a institucionalização de um salário mínimo a partir de um posto de trabalho real, não apenas por força de lei, evitaria até mesmo os impactos adversos sobre o nível de emprego diagnosticados pelas interpretações neoclássicas em função da determinação legal de um salário mínimo independentemente do nível de produtividade.

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Work should be made available to all who want to work at the national minimum wage. This would be a wage support law, analogous to the price supports for agricultural products. It would replace the minimum wage law; for, if work is

available to all at the minimum wage, no labor will be available to private employers at a wage lower than this minimum. That is, the problem of coverage of

occupations would disappear. (MINSKY, 1965, p. 21, grifo nosso).

Neste sistema, a magnitude relativa do salário pago pelo Estado determinará a proporção de distribuição da força de trabalho entre o setor público e o setor privado. Dada a rigidez relativa do salário pago pelo Estado, os ganhos nominais relativos dos salários do setor privado dependerão do nível de atividade econômica e das condições de competição no mercado. (MINSKY, 1968, p. 39; 1969, p. 78).

A consequência última desta forma de organização será que a substituição da expectativa de que estímulos à demanda em setores tecnologicamente avançados e de maior remuneração escorram - trickle down - em direção aos elos inferiores da cadeia de renda. Em seu lugar, o Empregador de Última Instância instaurará condições para que a demanda dos trabalhadores de remuneração baixa erupcione (bubble up), alimentando a demanda de trabalho dos setores mais avançados e de salários maiores. Para Minsky, em um sistema em que se espera que os salários nominais cresçam anualmente, os empregos de última instância poderão incluir tal cláusula de reajuste – o pode vir a ser uma ferramenta útil. Posto que a renda nominal de trabalhadores de salários altos no setor privado cresce segundo alguma referência ao crescimento da taxa de produtividade, se o índice de reajuste da remuneração dos empregos de última instância puder ser maior que o dos empregos privados de remuneração média e acima-da-média, a variação entre os salários relativos os encaminhará para um estreitamento. Dessa forma, caso se mantenham tais diferenciais entre os reajustes, torna-se possível alcançar, ao longo do tempo, uma proporção alvo entre salário mínimo e

salário médio. (MINSKY, 1968, p. 39-40).

Como parâmetro para o sucesso de programas públicos de geração de empregos, Minsky recupera a importância de determinadas agências do New Deal de F. D. Roosevelt e as toma como modelos para sua própria proposta: o WPA, Works Progress Administration, o NYA, National Youth Administration, e o CCC, Civilian Conservation Corps. Na década de 1930, tais programas foram tomados como transitórios, emergenciais, frente aos altos níveis de desemprego durante a Grande Depressão nos Estados Unidos, não constituindo uma efetiva atuação do Estado enquanto Empregador de Última Instância. Mas, ainda assim, consistiam em uma abordagem sobre o desemprego intensiva em trabalho, que realizava projetos de

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emprego sob medida em relação às capacidades da mão de obra disponível – contratando trabalhadores na condição em que se encontravam. (MINSKY, 1965, p. 20-1).

Por estes mesmos motivos Minsky os revê como possibilidades permanentes, à luz de seus diagnósticos de crônica insuficiência de postos de trabalho e da instabilidade inerente às presentes formas de organização das relações econômicas. (MINSKY, 1986, p. 345). Apenas o Estado, pois, detém esta capacidade e pode se dispor, sem prejuízos, a empregar mão de obra na forma em que se encontra, bem como a criar postos de trabalho de acordo apenas com as capacidades disponíveis e as necessidades postas, independentemente da expectativa de retornos pecuniários. O mecanismo institucional que Minsky advoga para a implementação de uma iniciativa do gênero é a mesma dos programas do New Deal: agências

open-ended de casamento entre demanda e oferta de emprego, cujo objetivo é precisamente o

estabelecimento do maior número possível de postos de trabalho. Na proposta de Minsky, o exercício das funções acordadas garantiria o salário mínimo estabelecido ao trabalhador, independentemente de programas de capacitação, visto que a própria execução das tarefas já seria por si só geradora de experiência de trabalho. Ademais, os empregados de última instância participariam ativamente da produção nacional, executando um trabalho remunerado e contribuindo com a oferta de bens e serviços à comunidade. (MINSKY, 1975a, p. 150-2).

It is envisioned that WPA, NYA, and CCC when fully developed will, together with normal government activity and private employment, provide income through jobs for all who are willing and able to work. These permanent programs will provide outputs – public services, environmental improvements, etc. that a transfer-payment government does not yield, as well as the creation and improvement of human resources. In our urban centers, where there are concentration of unemployed and welfare recipients, the improvement of the public environment should be marked. WPA, CCC and NYA will succeed precisely because

they are job programs that perform useful tasks and yield visible outputs.

(MINSKY, 1986, p. 347, ênfase nossa).

O CCC, Civilian Conservation Corps, na década de 1930, era incumbido da manutenção e melhoria dos parques nacionais e florestas, proporcionando aos jovens interessados tanto uma fonte de renda quanto uma oportunidade de aprendizado on the job, independente de treinamento prévio. Na proposta de Minsky, seria direcionado a jovens no final da idade escolar e funcionaria como espaço de transição da escola para o emprego. (MINSKY, 1986, p. 345-6).

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O NYA, National Youth Administration, por sua vez, servia como fonte de renda para jovens ainda em idade escolar, no ensino médio ou superior, permitindo-lhes, inclusive em termos pecuniários, concluir sua formação. Além disso, provia experiência de trabalho e treinamento learning-by-doing, preparando para o mercado de trabalho. Na versão de Minsky:

It should provide work-study employment for high school, college and university students. These jobs would simultaneously aid colleges and universities by paying for necessary work in and around the institutions. (MINSKY, 1986, p. 346).

A WPA, Works Progress Administration, por fim, maior e mais ambiciosa agência dos programas do New Deal, seria o elemento central também da proposta de Minsky: a instituição pública a prover a oferta infinitamente elástica de postos de trabalho e em substituição a determinados programas de bem-estar e categorias de programas de seguridade, como o seguro-desemprego. Ela proveria empregos também em tempo parcial, de forma a abranger também tanto beneficiários de outros programas de seguridade quanto famílias com dependentes (MINSKY, 1986, p. 347).

O programa proposto pelo autor não tem a pretensão de prometer afluência ou planos de carreira: seu objetivo é garantir uma renda mínima socialmente aceita e determinado patamar de independência financeira por intermédio da inclusão no mercado de trabalho. Além disso, é substituto para as duas políticas que, na leitura de Minsky, são problemáticas: transferências de renda, incondicionais ou não, que introduzem distorções aos mercados, bem como pressões inflacionárias e tensões sociais; e estímulos “keynesianos” ao investimento, de caráter trickle down, geradores de custos sociais universais, via tributação, mas que beneficiam de modo direto apenas as classes já abastadas – a precisa contramão do que defende o autor. (MINSKY, 1975a, p. 153).

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