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1. O desemprego e a pobreza na Crítica da Economia Política

1.3. M Kalecki e os aspectos políticos do pleno emprego

But obstinate ignorance is usually a manifestation of underlying political motives.

M. Kalecki Conforme Braga, (1985, p. 115), em “Os aspectos políticos do pleno emprego” (KALECKI, 1943), Kalecki

revela a percepção de que o próprio “ciclo”, de fato, desde os anos 30, era claramente caracterizado como um problema de regulação definível no âmbito da relação entre Estado e classes sociais. A crise da década de 30 destruía não só a ficção da regulação pelo equilíbrio como a da regulação cíclica automática.

Segundo Kalecki, (1943, p. 347), um dos meios para se alcançar o pleno emprego preservando-se a lógica de funcionamento do sistema capitalista é um programa de gastos públicos. O mecanismo, de forma geral, é o estímulo à demanda efetiva, de modo que o aumento do consumo de bens e serviços conduza, direta e indiretamente, ao aumento do nível de emprego até seu limite. As formas com que podem se dar estes gastos e seus estímulos à demanda efetiva, por sua vez, podem se manifestar de diferentes maneiras, com diferentes impactos no que diz respeito ao alcance de seu próprio objetivo final.

O autor identifica, sinteticamente, três formas de se atingir o pleno emprego: déficits públicos, seja na forma de investimento, seja como subsídios ao consumo, financiados via empréstimos; estímulos ao investimento privado; e a redistribuição de renda das camadas

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de remuneração mais alta para as de remuneração mais baixa, por meio de diferentes formas de tributação. (KALECKI, 1944, p. 357).

Para o autor, tanto investimento público como subsídios ao consumo, além da própria forma de financiamento desde dispêndio adicional, seja a realização de empréstimos, seja a cobrança de impostos, são capazes de, por meio da geração de renda, estimular a demanda efetiva e, dessa forma, conduzir a um nível maior de emprego. À objeção segundo a qual déficits públicos ou endividamento estatal acabariam causando inflação, Kalecki responde que o estímulo público à demanda gera simplesmente um aumento da demanda, como se fosse de origem autônoma. Dada a existência de oferta e capacidade produtiva suficiente, não há porque surtir alta de preços. Somente no caso de a demanda efetiva continuar a se elevar após o pleno emprego dos recursos os preços se elevarão, até, vale lembrar, que se reequilibrem oferta e demanda. Ao governo empenhado em conduzir a economia ao pleno emprego e sustenta-lo, cabe controlar o nível de estímulo à demanda efetiva para que não se ultrapasse o nível de oferta de recursos e de fatores. (KALECKI, 1943, p. 348).

Os nexos causais e as determinações econômicas do alcance do pleno emprego, contudo, não são o objeto principal de preocupação do autor. Em textos subsequentes ao de 1943, Kalecki explora de forma sistemática os processos macroeconômicos relativos ao alcance do pleno emprego por meio dos mecanismos referidos (cf. KALECKI, 1944); as questões monetárias abrangendo uma economia de pleno emprego (cf. KALECKI, 1946a); e o tema do pleno emprego sob a ótica dos fluxos comerciais internacionais, suprimindo-se o pressuposto de economias fechadas (cf. KALECKI, 1946b). Seu principal objeto de análise, tema de fundo para estas demais abordagens, são as dificuldades políticas que envolvem o alcance do pleno emprego.

Um maior nível de renda e de emprego, por mais que beneficie os trabalhadores, beneficia ainda mais os empresários, porque significa também um aumento dos lucros agregados. Ademais, desde que não contemplem aumentos nos impostos, políticas de gasto público como estímulo à renda e ao emprego não acarretam usurpação dos lucros. Mas, ainda assim, a classe empresarial é consistentemente opositora a qualquer experimentação por parte dos governos, ainda mais no que diz respeito aos gastos públicos e ao nível de emprego.

The entrepreneurs in the slump are longing for a boom; why do they not gladly accept the synthetic boom which the government is able to offer them? It is this difficult and fascinating question with which we intend to deal (…). (KALECKI, 1943, p. 349).

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Para o autor, são três as razões pelas quais os líderes industriais se opõem ao alcance do pleno emprego por meio de políticas públicas: a aversão à interferência governamental no problema do emprego em si; a aversão às direções que assumem os gastos públicos, seja o investimento público, seja o subsídio ao consumo; e a aversão às transformações sociais e políticas que emergem com a manutenção de um nível de pleno emprego. (KALECKI, 1943, p. 350).

Em primeiro lugar, a relutância dos “capitães da indústria” em tolerar intervenções governamentais diz respeito, essencialmente, à delicadeza do estado de confiança empresarial. É o nível de confiança dos empresários face o futuro que, por conduzir suas próprias decisões, acaba por determinar, ao fim da cadeia causal, os níveis de renda e emprego, por intermédio do investimento. Este fato, para Kalecki, por si só concede poder de influência ao empresariado sobre o governo: qualquer fenômeno que possa abalar o frágil estado de confiança dos empresários deve ser veementemente evitado. Uma vez que o governo descubra que pode gerar empregos por meio de seu orçamento, contudo, esta ferramenta de controle do empresariado por sobre o governo deixa de existir. Por isso o déficit público é visto pela classe empresarial como perigoso: “a função social da doutrina das ‘finanças sadias’ é tornar o nível de emprego dependente do estado de confiança”, ou seja, dependente apenas dos desígnios dos capitalistas e, dessa forma, livre da interferência do Estado. (KALECKI, 1943, p. 350).

O segundo componente da ojeriza dos líderes empresariais ao gasto público tange ao destino destes gastos. Por um lado, o investimento público, em sua interpretação, é passível de competir com a iniciativa privada, por exemplo, nos serviços médicos, educacionais, na manutenção de rodovias, exemplos apontados pelo próprio autor. Dessa forma, no entendimento dos “capitães da indústria”, o Estado representa uma ameaça à lucratividade dos setores em que atua, de modo que qualquer ganho em renda e emprego que a atuação estatal gere será contrabalançada, via crowding out, pelo declínio do investimento privado. Além disso, visto que o escopo do investimento público é demasiado estreito, é possível que surjam movimentos de estatização de setores estratégicos, com fins a garantir maior espaço de atuação ao Estado no que diz respeito ao gasto público para a geração de empregos. Por outro lado, mecanismos de subsídio ao consumo, como abonos ou estímulos aos produtores, são confrontados pelo argumento moral “com o suor de teu rosto comerás teu pão”, com força, segundo o autor, ainda maior que a oposição ao investimento público. (KALECKI, 1943, p. 350-1).

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Por fim, Kalecki considera que, mesmo supondo superadas as barreiras delineadas acima para o alcance do pleno emprego, a manutenção do pleno emprego também suscitaria dificuldades políticas, em função das mudanças – e das tensões - sociais que o fim do desemprego traria consigo. Dada, em termos práticos, a garantia de emprego em função da atuação do Estado, a ameaça de demissão deixa de servir enquanto mecanismo disciplinador da submissão do Trabalho ao Capital, e as posições relativas entre os proprietários e administradores e os trabalhadores seriam subvertidas. Além disso, Kalecki antevia, a autoafirmação e a consciência de classe dos trabalhadores aumentariam, aumentando também, em quantidade e em intensidade, as greves por aumento de salários e melhores condições de trabalho.

Apesar de, portanto, sob um regime de pleno emprego, a massa de lucros potencial atingir seu patamar máximo, dada o nível máximo de demanda efetiva no que diz respeito à oferta de mão de obra, ou ainda apenas um nível médio superior ao nível médio sob um regime de laissez-faire; e de o maior poder de barganha dos trabalhadores na determinação dos salários provavelmente conduzir não à queda nos lucros, mas à alta dos preços, segundo Kalecki, a disciplina nas fábricas e a estabilidade interessam mais ao líderes empresariais que o próprio lucro. O desemprego, pois, é parte integral do funcionamento normal do sistema capitalista. (KALECKI, 1943, p. 351).

No que diz respeito ao combate aos períodos de baixa das flutuações, contudo, Kalecki afirma haver uma maior aceitabilidade, por parte dos empresários, em relação à atuação estatal – desde que ela se restrinja aos momentos de baixa, enquanto estímulos à recuperação. A forma que se adequa aos desígnios dos empresários, pois, é o estímulo público ao investimento privado – seja por meio da redução das taxas de juros, do corte de impostos ou do subsídio direto ao investimento. Independentemente da forma assumida, trata-se, segundo o autor, do mecanismo mais atrativo, visto preservar o papel fundamental do empresário no jogo econômico, mantendo-o, inclusive, como meio pelo qual os recursos do Estado deságuam sobre a sociedade. (KALECKI, 1943, p. 353).

Para o autor, contudo, o estímulo ao investimento privado não é mecanismo eficaz no próprio combate ao desemprego. A redução da taxa de juros ou dos impostos, ou ambos, efetivamente contribui para suavizar a intensidade e a duração do período de baixa, mas não garante que o nível de emprego atinja seu nível máximo – o que depende essencialmente das decisões de gasto dos empresários. Por outro lado, caso as medidas adotadas durante a baixa não sejam revertidas quando da recuperação, o período de alta pode até ser mais duradouro,

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mas não se evitarão as tendências de reversão das flutuações, de forma que se exigirá, em um momento ou outro, uma redução adicional, dessa vez a patamares ainda mais baixos. Taxas de juros e impostos, contudo, não podem ser abaixados a valores negativos, de forma que uma

política contínua nestes moldes esbarra em limites temporais2. (KALECKI, 1943, p. 354).

Para Kalecki, portanto, a atribuição de um governo cujo objetivo é a preservação do pleno emprego deve ser o estabelecimento de um programa de gastos e de investimento adequado precisamente às necessidades de investimento, definidas socialmente. O autor não defende a utilização total dos recursos disponíveis em investimentos desnecessários ou até mesmo indesejados, e que, face um volume de investimento necessário insuficiente para que se alcance o pleno emprego, o restante dos gastos públicos deve direcionar-se ao subsídio ao consumo.

Opponents of such government spending say that the government will then have nothing to show for their money. The reply is that the counterpart of this spending will be the higher standard of living of the masses. Is not this the purpose of all economic activity? (KALECKI, 1943, p. 356).

Segundo o autor, para que o sistema capitalista possa ser levado ao limite de suas potencialidades, se faz fundamental o desenvolvimento de novas instituições políticas e sociais. Ajustar-se ao pleno emprego significará que a forma de organização estará efetivamente alinhada às demandas de seus próprios membros. Mas este é um componente essencialmente político, para o qual os determinantes econômicos importam menos. (KALECKI, 1943, p. 356).

São os pontos de vista delineados por estes autores que constituíram referência para o esforço empreendido neste trabalho e que serão, portanto, o pano de fundo para a apresentação e a discussão das propostas de Empregador de Última Instância, de H. P. Minsky, e da redução da jornada de trabalho de G. Aznar. As propostas, contudo, foram abordadas não de forma neutra, posta a impossibilidade de neutralidade, mas de modo desinteressado - ainda que somente em um primeiro momento. Significa isto que, para a apresentação, descrição e exposição dos nexos causais de cada proposta, foram tomados seus conteúdos e seus formatos per se, isto é, pelas formas pelas quais foram desenvolvidas e tornadas a público por seus próprios autores, revisitadas da maneira a mais distanciada possível, ainda que reordenadas, reconfiguradas e até mesmo reescritas pelo esforço deste

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As limitações do estímulo ao investimento privado em relação ao objetivo de pleno emprego são exploradas com maior rigor em KALECKI, 1945.

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trabalho, conforme a subjetividade, o senso crítico e o crivo do autor. É somente em momento posterior que a subjetividade do autor será tomada explicitamente, momento no qual, sobre os ombros de J. M. Keynes, K. Marx e M. Kalecki, espera-se satisfatoriamente avaliar os dois projetos enquanto propostas de reorganização do mercado de trabalho e de transformação das bases de reprodução da sociedade capitalista.

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