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Capítulo I – Educação de Infância e multideficiência – da diversidade à interação entre pares

1.1. A criança com NEE – a multideficiência grave

Quando um educador de infância se depara com uma criança com multideficiência no seu grupo deverá saber que:

As crianças com multideficiência não estão limitadas naquilo que podem aprender. Estão limitadas, sim, por aquilo que lhes ensinamos. (Barbara McLetchie, s.d., cit. Nunes, 2005, p. 69)

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Segundo Simeonsson (1994) e Bairrão et al (1998) as crianças com multideficiência enquadram-se “no grupo de alunos com Necessidades Educativas Especiais designados com problemas de Baixa Frequência e Alta Intensidade” (Nunes, 2003, p. 5). E, de acordo com Nunes (2008, p. 9), “os alunos com multideficiência apresentam combinações de acentuadas limitações, que põem em grave risco o seu desenvolvimento, levando-os a experimentar graves dificuldades no processo de aprendizagem e na participação nos diferentes contextos em que estão inseridos”. Contreras e Valencia (1997, p. 378) afirmam que para que haja multideficiência6 “tem de haver simultaneamente na mesma pessoa

duas ou mais deficiências (psíquicas, físicas e sensoriais); estas deficiências não têm de ter relação de dependência entre si”. Desta forma, torna-se fundamental que haja uma maior disponibilidade de recursos e meios para que se possam dar as respostas educativas necessárias e adequadas a este grupo educativo. Neste sentido, nos próximos subpontos iremos aprofundar as características e necessidades das crianças com multideficiência, assim como as estratégias que se poderão usar em contexto educativo para otimizar as suas aprendizagens.

1.1.1. Características e necessidades das crianças com multideficiência

As suas graves limitações enquadram-se acentuadamente no domínio cognitivo, estando também associadas a limitações de outros domínios, nomeadamente motor e/ou sensorial (visão ou audição), de saúde física, comunicação, fala e linguagem e emocional (Nunes, 2003; Amaral, et al., 2004). Sendo assim, “a conjugação destas limitações faz com que constituam um grupo muito heterogéneo” (Nunes, 2005, p. 62) o que implica o constante apoio especializado por parte dos indivíduos que fazem parte do seu ambiente envolvente. A imagem 23 ilustra esquematicamente algumas das características que foram referidas anteriormente.

Imagem 23 – Caraterísticas das crianças com multideficiência.

Fonte: Nunes (2005, cit. Nunes, 2008, p.10)

Analisando a figura 23 torna-se possível verificar que existem algumas possibilidades de combinações que podem surgir nas crianças/jovens com multideficiência, formando-se assim vários subgrupos. De acordo com Nunes (2005), estes podem ser constituídos por indivíduos com acentuadas limitações: cognitivas e surdez severa ou profunda; cognitivas e graves limitações neuromotoras, decorrentes por exemplo de paralisia cerebral; cognitivas e baixa visão ou cegueira;

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cognitivas, graves limitações neuromotoras e baixa visão ou cegueira; cognitivas, graves limitações neuromotoras e surdez severa ou profunda.

A conjunção das múltiplas limitações bem como a gravidade das mesmas, aliadas à idade, aos interesses e às experiências vivenciadas “são fatores que determinam as capacidades e necessidades das crianças com multideficiência e o modo como funcionam nos contextos onde se encontram” (Nunes, 2003, p. 6). Ora, isto condiciona o desenvolvimento e aprendizagem das crianças levando- as a enfrentar múltiplos desafios no seu dia-a-dia a vários níveis.

No que diz respeito às limitações físicas, segundo Orelove e Sobsey (2000, cit. Nunes, 2012), é frequente este grupo de crianças apresentar restrições nos movimentos, deformidades no esqueleto, problemas visuais ou auditivos, epilepsia ou convulsões, problemas no controlo respiratório e outros problemas de saúde. Os autores referidos anteriormente reforçam que “as restrições do movimento são uma das características mais comuns nesta população, dado a paralisia cerebral7 ser a causa

orgânica mais frequente da multideficiência” (ibidem, p.7). Assim, “o ser capaz de se movimentar para conseguir interagir com as pessoas e os objectos, constitui, também, frequentemente uma tarefa árdua” (ibidem, p. 63).

O facto deste grupo de crianças ter acentuadas limitações em vários domínios cria uma barreira no acesso à linguagem oral como forma primordial de comunicação o que torna este processo mais complexo (Ladeira & Amaral, 1999). Por isso, quando falamos em multideficiência muitas vezes é utilizada a terminologia de formas de comunicação simbólica para a comunicação verbal e formas de comunicação não simbólica para a comunicação não-verbal (Stillman & Siegel-Causey, 1989, cit. Nunes, 2003).

Os dados resultantes do Observatório do Departamento de Educação Básica (DEB), no ano letivo 2001/2002, dão-nos indícios disso referindo que 74% dos sujeitos envolvidos no estudo não usavam a linguagem oral como principal forma de expressão, sendo que em detrimento disso usavam outras formas de comunicação (Nunes, 2002). Assim, 81% das crianças e jovens com multideficiência apresentavam dificuldades no domínio da comunicação (ibidem), sendo que, “as formas de comunicação não-simbólicas eram utilizadas por um maior número de sujeitos do que as formas de comunicação simbólica” (ibidem, p. 55), como se pode observar na tabela que se apresenta de seguida.

7 A paralisia cerebral é uma patologia provocada por lesões no cérebro e caracteriza-se pela diminuição da

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Tabela 1 – Formas de comunicação mais usadas simultaneamente na expressão e comunicação pelas crianças e jovens com multideficiência.

Fonte: Nunes (2003)

No que concerne às formas de comunicação não simbólica, as expressões faciais e as vocalizações foram indicadas como as formas de comunicação mais utilizadas e compreendidas por uma maior percentagem de indivíduos, registando-se entre os 47% e os 49%. O contacto visual e os movimentos corporais foram citados como sendo as formas de comunicação usadas e compreendidos por cerca de 27% a 30% dos casos. Em relação ao uso e compreensão dos gestos naturais ou convencionais foram referidos em 17% dos casos. O uso de objetos reais foi a forma de comunicação não simbólica menos citada sendo que foi referenciada como sendo usada em 9% das situações.

Em relação ao uso e compreensão das formas de comunicação simbólica, os dados do relatório que referi anteriormente indicam que a fala corresponde a uma percentagem de 27%. Pelo que, “é referido que em termos expressivos esta cinge-se, na maioria dos casos, a palavras soltas ou a frases simples. (…) os que usam apenas a fala como forma de compreensão e expressão são um número muito reduzido” (Nunes, 2002). O uso de imagens, fotografias e desenhos apresenta uma percentagem igual à anterior, 27%. No entanto, ao agruparmos as imagens, fotografias, desenhos e símbolos gráficos (utilização de alguma representação gráfica) este passa a representar a forma de comunicação que é mais utilizada e compreendida, com uma percentagem de 33%, sendo assim superior à fala (ibidem).

Todavia, “na base da comunicação está, assim, uma necessidade de troca de informação. Em crianças com deficiências graves esta necessidade está muitas vezes diminuída pela falta de experiências significativas” (Ladeira & Amaral, 1999, p. 19), uma vez que a criança não tem parceiros disponíveis que possam com frequência “comunicar”. Por outro lado, para os sujeitos que interagem com estas crianças as formas de comunicação menos convencionais são mais difíceis de reconhecer, o que cria entraves para a elaboração de respostas adequadas e eficazes, limitando o desenvolvimento das crianças e comprometendo o acesso à aprendizagem (Nunes, 2006).

Categoria Formas de comunicação %

Fo rm as d e co m u n icaç ão n ão s im b ó lica Fo rm as d e co m u n icaç ão si m b ó lica Vocalizações 47%

Gestos naturais ou convencionais 17% Movimentos corporais 27% Contacto visual 30% Expressões faciais 49% Objetos reais 9% Tocar 19% Fala 27% Língua gestual 3% Gestos complexos 3% Símbolos gráficos – PIC e SPC 6% Fotografia, desenhos, imagens 27% Objetos simbólicos 7%

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De acordo com Nunes (2003, p. 2), “como a comunicação não aparece de uma forma espontânea nas crianças com multideficiência, esta é uma das competências que elas têm de aprender, que é preciso ensinar-lhes”. Para que os parceiros de comunicação destas crianças possam ajudá-las a desenvolver essas competências comunicativas é essencial que conheçam essas formas de comunicação (Stillman e Siegel-Causey, 1989, cit. Jones, 2002).

Stillman e Siegel-Causey (1989, cit. Nunes, 2003) foram dois autores que se debruçaram sobre este assunto, classificando os comportamentos que o ser humano utiliza para estar em interação com os outros em «formas de comunicação não simbólica» e «formas de comunicação simbólica». Pelo que estes autores referem, “para comunicar com a criança multideficiente é necessário reconhecer os comportamentos não simbólicos e usá-los sistematicamente para facilitar as capacidades de compreensão da criança” (Nunes, 2003, p. 23).

De forma a que os profissinais conseguissem identificar de uma maneira mais fácil os comportamentos evidenciados pelas crianças multideficientes, Stillman e Siegel-Causey (1989 cit. Nunes, 2003) elaboraram uma lista que descreve os comportamentos comunicativos não simbólicos contendo referências “sobre o estado emocional e o nível de alerta das crianças” (Nunes, 2003, p. 23).

Segundo Jones (2002) e Nunes (2003), a listagem contempla comportamentos como: movimentos generalizados e alterações no tônus muscular; gestos convencionais; vocalizações; expressões faciais; afastamento; pausar; tocar; manipular; assumir posições ou deslocar-se a locais; agindo sobre objetos e usar objetos para interagir com os outros; assumir posições e ir a lugares; gestos convencionais; comportamentos agressivos ou de autoagressão; as vocalizações; as expressões faciais; o toque; a orientação e as ações sobre os objetos. A imagem 24 apresenta a descrição de alguns comportamentos que foram mencionados anteriormente.

Imagem 24 – Descrição de algumas formas de comunicação não-simbólica e a sua função.

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Ao conhecer estas formas de comunicação e a sua função, o adulto pode responder à criança de forma mais assertiva ajudando-a progressivamente a desenvolver as competências comunicativas e cognitivas criando-lhe mais oportunidades de aprendizagem (Jones, 2002).

Em suma, o trabalho com indivíduos portadores de multideficiência deve focar-se no processo comunicativo, com vista a ajudá-los a interagir com o mundo que o rodeia e a partilhar informação, para que possa assumir um maior controlo sobre o mesmo, a aceder à aprendizagem e, assim, a melhorar a sua qualidade de vida (Nunes, 2003).

1.1.2. Estratégias de aprendizagem

O ambiente envolvente de uma criança com multideficiência deve ser rico em estímulos sensoriais que ativem os seus sentidos na plenitude, para que possam interpretar a informação que recebem (Nunes, 2001; Nunes, 2008) e desta forma desenvolverem competências que lhes permitam ser mais independentes e que os conduzam a aprendizagens significativas e duradouras.

De acordo com Nunes (2001), ao nível da estimulação visual, o sujeito que está a interagir com a criança deve encorajá-la a “alcançar, tocar, manipular e reconhecer o objecto ou indicar uma preferência, dentro do contexto de brincadeira, mais do que tê-la a olhar para ele” (p. 67). Por isso, deve deixar que a criança olhe para os objetos e os tente alcançar sozinha, sendo que esses objetos devem ativar “os sentidos vestibular, auditivo, olfactivo, táctil e gustativo da criança” (ibidem). Os tipos de respostas dados pelas crianças podem ser muito subtis, tais como “ligeiros movimentos corporais, mudanças nos padrões de respiração, o esboçar de um sorriso…” (Nunes 2001, p. 69). No que diz respeito aos sons, estes devem ser cruzados com a informação visual para que não se tornem confusos (Nunes, 2008). As crianças com estas características devem ter a possibilidade de perceber que podem produzir sons e que um som acontece por ser impulsionado por algo (Nunes, 2001). Para além disso, também é importante que aprendam “a localizar sons e a usar pistas sonoras […] para a orientação e deslocação com segurança” (Nunes, 2008, p. 53).

O uso do tato por estas crianças é extremamente importante na medida em que possibilita a perceção do que se passa à sua volta (Nunes, 2008), principalmente se a criança tiver graves dificuldades visuais. Como tal, a criança “precisa de ser ensinada a usar as mãos como ferramentas e a encontrar prazer na exploração manual dos objectos, o que requer muita experimentação” (Nunes, 2001, p. 72). O facto de a criança desenvolver a noção de objeto permanente também é muito importante e permite-lhe progressivamente “compreender que o som do seu brinquedo favorito é um indicador da sua existência no espaço, aprendendo gradualmente a alcançar esse objecto” (ibidem).

De acordo com Nunes (2008, p. 51), “o contacto físico com os materiais existentes nos ambientes cria oportunidades para os alunos desenvolverem conceitos, pois aprendem através da acção”. Desta forma, existem estratégias para que o sujeito que interage com a criança possa utilizar determinados objetos para a criança explorar, nomeadamente a estratégia mão sob mão e mão sobre mão (Chen,

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1999, cit. Nunes, 2001). Através da estratégia mão sob mão (o educador coloca a sua mão sob a mão da criança para orientar-lhe o movimento e em conjunto explorarem o objeto (Nunes, 2001) “dá-se- lhe oportunidade de interagir com os objectos de acordo com o seu nível de conforto, para além de ser ela controlar a situação” (ibidem, p.75). Com a estratégia mão sobre mão (o educador coloca a sua mão sobre a mão da criança para orientar o seu movimento e controlando a situação) a criança tem pouco controlo da situação, pelo que deve ser reduzida progressivamente para que a criança fique mais autónoma (Nunes, 2001).

Também o cheiro fornece informações sensoriais importantes. Associando determinados cheiros a locais de referência, as crianças podem ter consciência dos ambientes em que encontram o que as ajuda a compreende-los (Nunes, 2008).