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Nos dicionários de língua portuguesa, criança é definida como aquele menino ou menina que se encontra no período da infância. A infância, por sua vez, é conceituada como o período do nascimento até a adolescência. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) compartilha dessa ideia, ao afirmar, no seu segundo artigo: “Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos [...]” (BRASIL, 1990, p. 1).

No senso comum, observamos uma tendência em pensar que a criança é um ser com determinada faixa etária, dependente financeiramente, que tem como atividade principal frequentar a escola e faz parte de uma família, a qual possui sua guarda e provê sua alimentação e proteção. Porém, basta olhar as crianças pedindo esmolas em semáforos, as crianças em instituição de guarda e os pequenos “artistas/trabalhadores” para observar que essa definição não se mantém, não pode ser generalizada, pois não se aplica a todas as crianças.

Para Heywood (2004, p. 21), “[...] a criança é um constructo social que se transforma com o passar do tempo e, não menos importante, varia entre grupos sociais e étnicos dentro de qualquer sociedade.” Isso significa que não existe uma única concepção de infância, mas sim infâncias, que se desenvolvem em diferentes contextos históricos, sociais, culturais e econômicos.

Esse pressuposto é adotado por estudiosos da Sociologia da Infância e é utilizado ao longo deste trabalho. De acordo com Sarmento (2007, p. 10), “[a] infância é uma categoria social, do tipo geracional, e um grupo social de sujeitos activos, que interpretam e agem no mundo.”. Em outras palavras, as crianças fazem parte de uma categoria social distinta, com características biológicas e psicológicas diferenciadas dos adultos, dos adolescentes e dos idosos. Elas estão inseridas em um tempo histórico, com particularidades culturais, sociais e econômicas, apesar de não serem sujeitos passivos: influenciam e são influenciadas por esse contexto.

Essa concepção se distingue das outras, visto que considera a criança um ser competente, capaz de transformar o contexto em que vive, um ator social, um produtor de cultura. Na acepção de Borba (2007, p. 35),

[...] a sociologia da infância propõe uma virada paradigmática, ou seja, revelar a criança na sua positividade, como ser ativo, situado no tempo e no espaço, nem cópia nem o oposto do adulto, mas sujeito participante, ator e autor na sua relação consigo mesmo, com os outros e com o mundo.

A infância também não é uma idade de transição, embora não se neguem as especificidades da sua faixa etária. Conforme Delgado e Muller (2005), os adultos, assim como as crianças, são seres que estão constantemente em formação, nunca se encontram totalmente acabados e independentes, de sorte que é preciso romper com a visão da criança como um ser incompleto.

A criança difere do adulto, mas não é inferior a ele, nem mesmo incompleta ou imperfeita, como se acreditou por muito tempo. Para Carvalho e Muller (2010), os termos

diferença e desigualdade não são sinônimos; enquanto o primeiro designa a singularidade do

sujeito, o segundo se utiliza da diferença para estabelecer uma relação de poder, obediência. Nessa perspectiva, as diferenças entre adultos e crianças são notáveis e inegáveis, contudo, a desigualdade entre os mesmos é inaceitável.

As crianças estão situadas em um contexto histórico-cultural, ou seja, são influenciadas pelo local onde vivem, pelas pessoas com quem convivem, pela cultura e pela época presente. Todavia, esse contexto não as define, porque elas têm o poder de influenciá-lo e de alterá-lo. De acordo com Corsaro (2009, p. 31), “[...] crianças e suas infâncias são afetadas pelas sociedades e culturas dos quais são membros.”. As crianças “[...] não imitam simplesmente modelos adultos [...], mas antes elaboram e enriquecem continuamente os modelos adultos para atender seus próprios interesses.” (CORSARO, 2009, p. 34).

Para o historiador francês Áries (1981), o sentimento de infância foi construído historicamente pela modernidade, não é natural, tornou-se evidente a partir do Iluminismo e foi propiciado pelas transformações socioeconômicas da época: sociedade rural para sociedade urbana, meio de produção agrícola para industrial, mudança na estrutura familiar, institucionalização do ensino, etc. Segundo esse autor, na Idade Média, as crianças eram vistas como adultos em miniatura, não constituíam uma categoria social distinta, participavam desde muito cedo de todas as atividades adultas, como trabalho, jogos e relações sexuais.

Diversos historiadores criticaram essa tese, tanto em questões teóricas quanto metodológicas. Para Heywood (2004), é exagerado apontar que não havia um sentimento de infância na Idade Média e que houve uma descoberta na modernidade, bem como é excessivo assegurar que, na contemporaneidade, houve o desaparecimento da infância. Conforme o autor, o conceito de infância sempre existiu, em todas as sociedades e, provavelmente, sempre vai existir, porém “[...] elas terão ideias contrastantes sobre questões fundamentais relacionadas à duração da infância, a qualidade que diferenciam os adultos das crianças e à importância vinculadas às suas diferenças” (HEYWOOD, 2004, p. 22).

Uma das críticas ao estudo de Áries, destacado por Sarmento (2007), é o fato de em seu trabalho ter desconsiderado que sua metodologia privilegiou o estudo das classes mais altas da sociedade, o que inviabiliza a generalização feita por ele.

Mesmo com as críticas, é inegável a importância dessa teoria, ao longo da história ocidental, haja vista que, no senso comum, as pessoas tomam a constituição da infância como algo natural e universal. Como assinala Sarmento (2007, p.3), “[...] de alguma maneira, não apenas a História da infância mas os estudos sobre a infância, em geral, têm sofrido, a partir dela, uma mudança de rumo significativa.”

Sarmento (2007) apresenta uma síntese da idealização da imagem da criança, ao longo da história ocidental. O autor selecionou cinco imagens a partir da ênfase que tiveram, no decorrer da história, as quais não são exclusivamente da área da Sociologia. As imagens da criança pré-sociológica são: a criança má, fruto do pecado original, que precisa ser domesticada; a criança inocente, boa por natureza e corrompida pela sociedade, teve como principal teórico Rousseau; a criança imanente, também conhecida pela metáfora da tábula rasa ou papel em branco, que pode ser moldada, teve como principal filósofo Locke; a criança naturalmente desenvolvida, que passa por estágios universais do desenvolvimento humano, sobretudo presente nos estudos de Piaget; por fim, a criança inconsciente, cujo desenvolvimento do comportamento humano está vinculado aos conflitos conscientes e

inconscientes pelos quais passamos na infância. Notamos que algumas dessas imagens coexistem, na atualidade.

Em todas as imagens, percebemos uma concepção negativa de infância e ressaltamos a incompletude da criança, por ser estudada a partir do que ela pode “vir a ser” não a partir da sua capacidade no momento presente. Sarmento (2007, p. 10) enfatiza as capacidades das crianças:

[...] a infância não é a idade da não-fala: todas as crianças, desde bebês, têm múltiplas linguagens (gestuais, corporais, plásticas e verbais) por que se expressam. A infância não é a idade da não-razão: para além da racionalidade técnico-instrumental, hegemônica na sociedade industrial, outras racionalidades se constroem, designadamente nas interacções entre crianças, com a incorporação de afectos, da fantasia e da vinculação ao real. A infância não é a idade do não trabalho: todas as crianças trabalham, nas múltiplas tarefas que preenchem os seus quotidianos, na escola, no espaço doméstico e, para muitas, também nos campos, oficinas ou na rua. A infância não vive a idade da não-infância: está aí, presente nas múltiplas dimensões que a vida das crianças (na sua heterogeneidade) continuamente preenche.

Ao estudar a Sociologia da Infância, Corsaro (2011, p. 18) assinala: “As crianças foram marginalizadas na sociologia devido a sua posição subordinada nas sociedades e às concepções teóricas de infância e de socialização.” Para esse autor, do ponto de vista sociológico, a criança é concebida como um ser separado da sociedade, o qual precisa ser guiado para se adaptar e internalizar as regras da sociedade, de maneira que se torne um ser útil e funcional.

Com isso, o autor sugere a construção de uma nova sociologia da infância, que leve em conta a participação coletiva das crianças na sociedade, de maneira que se consiga enxergá-las interferindo na sociedade e sendo influenciada por ela.

Corsaro (2011) propõe a noção de reprodução interpretativa, relativa a uma mudança total na maneira de conceber a infância:

O termo interpretativo abrange os aspectos inovadores e criativos da participação infantil da sociedade. Na verdade, [...] as crianças criam e participam de suas próprias e exclusivas culturas de pares quando selecionam ou se apropriam criativamente de informações do mundo adulto para lidar com suas próprias e exclusivas preocupações. O termo reprodução inclui a ideia de que as crianças não se limitam a internalizar a sociedade e a cultura, mas contribuem ativamente para a produção e mudanças culturais. O termo também sugere que crianças estão, por sua própria participação na sociedade, restritas pela estrutura social existente e pela reprodução social. Ou seja, a criança e sua infância são afetadas pelas culturas que integram. Essas sociedades e culturas foram, por sua vez, moldadas e afetadas por processos de mudanças históricas. (CORSARO, 2011, p. 31-32).

Essa noção concebe dois elementos essenciais a linguagem, meio pelo qual nos comunicamos, e a participação nas rotinas culturais, que traz a segurança aos atores sociais e a certeza de pertencer a um grupo. Por meio desses dois elementos, as crianças participam de duas culturas, a dos adultos e a das crianças, integrando-as.

Em nome da segurança infantil, observamos a diminuição do tempo e do espaço para a criança brincar livremente e interagir, especialmente entre as crianças da classe média, cujos responsáveis geralmente trabalham e inserem as crianças em longas jornadas de cursos extras. Para Corsaro (2011), mesmo com a excessiva institucionalização da infância, iniciada na modernidade e aprofundada na contemporaneidade, as crianças permanecem com suas especificidades e produzem ajustes secundários11, ou seja, as crianças se adaptam, de maneira que sintam que retomaram o controle da situação.

Em outras palavras, Delgado e Muller (2008, p. 289) asseveram que as crianças “[...] são capazes de burlar algumas regras e normas dos adultos e de criar entre elas verdadeiros sistemas culturais e de apreensão dos significados do mundo que ainda necessitamos estudar e compreender.”

No mesmo sentido da capacidade infantil, porém em situações completamente diferentes, Sarmento (2003) advoga que as crianças expostas à devastadora desigualdade social, guerra, escravidão, prostituição, fome, encontram meios de se manter crianças, pela imaginação, criando um mundo paralelo, onde possam suportar a dor da triste realidade.

A Sociologia da Infância vem contradizer as teorias da negatividade infantil, trazendo uma nova concepção de criança, uma visão positiva, destacando que a criança é ativa e produz cultura, através da sua especificidade geracional e etária.

Considera-se a infância como uma categoria ontologicamente distinta das outras etapas do percurso social dos agentes, afastando definitivamente uma imagem das crianças como desprovidas de qualquer valor próprio que não fosse o de meros objectos de socialização. Esta postura permite caracterizar não apenas a infância mas também a sociedade onde esta se encontra inserida como construções mutuamente interdependentes. (SARAMAGO, 2001, p. 90).

Concluímos que “[...] a infância é tanto um período em que as crianças vivem suas vidas quanto uma categoria ou parte da sociedade, [...] embora a criança seja um período temporário para a criança, é uma categoria estrutural permanente na sociedade” (CORSARO, 2011, p. 41-42). Nessa perspectiva, evidenciamos a necessidade de se aprofundar nos estudos

sobre as crianças, todavia, agora com a participação infantil, afinal, ninguém conhece melhor suas necessidades e preocupações que elas mesmas.