• Nenhum resultado encontrado

Como parte da análise dos resultados da crise dos 1970 que levaram ao padrão de acumulação neoliberal, é importante observar também as determinações geopolíticas que envolveram esse processo. O que nós queremos apontar aqui é que, sem dúvida, a hegemonia norte-americana entra em questão, na forma como ela vai se dar e nas tendências à sua debilitação, como um fator de bastante relevância para a reflexão do capital internacional no pós-1970, bem como para a compreensão da fase neoliberal.

A situação da hegemonia norte-americana não pode ser pensada por fora da análise do significado do acordo de Yalta, realizada dois meses antes da fundação da

Organização das Nações Unidas, que reuniu Roosevelt, Churchill e Stálin e moldou bastante do que seria a configuração da hegemonia americana durante a Guerra Fria. Isso porque ela se dava, de um lado, pela massiva destruição e pela fragilidade que vivenciava o continente Europeu, principal palco da Guerra, mas também pela fragilização do Japão, alvo de duas bombas nucleares; somado a isso, o “acordo” entre as economias capitalistas vencedoras e a União Soviética selava a pax armada entre a política americana e a burocracia de Stálin no sentido de manter a situação afastada de levantes revolucionários e de eventos que fugissem ao controle dos Estados Unidos e não questionassem o domínio da URSS sobre o “bloco socialista”, que nesse sentido buscariam com o Plano Marshall e a política de emergência dos Tigres Asiáticos ir fortalecendo os países sob hegemonia do capital americano e, nesse sentido, criando condições mais favoráveis no interior da Guerra Fria.

Immanuel Wallerstein analisa o pacto do seguinte modo, colocando como um marco não apenas os acordos formas, mas os acordos tácitos:

Os pactos formais da conferência de Yalta foram menos importantes do que os acordos informais e tácitos nela estabelecidos. Só podemos avalia-los observando o comportamento dos Estados Unidos e da União Soviética nos anos seguintes. Quando a guerra terminou na Europa, no dia 8 de maio de 1945, as tropas soviéticas e as ocidentais (isto é, americanas, britânicas e francesas) estavam localizadas em pontos particulares – essencialmente, ao longo de uma linha norte-sul, no centro da Europa, que se tornou conhecida como Linha Oder-Neisse. À Parte alguns ajustes menores, foi onde ficaram. Em retrospectiva, Yalta foi um acordo entre ambos os lados no sentido de que poderiam permanecer onde estavam e nenhum lado usaria a força para expulsar o outro. Este pacto tático aplicava-se também à Ásia, como demonstra a ocupação do Japão Pelos Estados Unidos e a divisão da Coréia. Politicamente, Yalta foi um acordo de status quo, segundo o qual a União Soviética controlaria cerca de 1/3 do mundo e os Estados Unidos o restante (WALLERSTEIN, 2004, p. 23)

Buscando, a partir do “mundo de Yalta”, transferir a disputa entre revolução e contrarrevolução para a disputa entre “Estados” e agindo de modo a aumentar seu poder em suas zonas de influência, o imperialismo norte-americano desenvolveu sua hegemonia nas mais diferentes partes do globo. Do extremo Oriente ao extremo Ocidente, o imperialismo foi marcado por uma mistura de complexo industrial-militar

desenvolvido, com a manutenção de bases militares e intervenções diretas em diversos países do globo, mas também, num âmbito mais superestrutural, por alianças políticas importantes (como a OTAN), pela divisão do mundo em Zonas de Influência, em acordo com a burocracia soviética (Yalta) e, sobretudo, pela disseminação do “americanismo”, envolvendo o mundo ideologicamente em distintos âmbitos do modo de vida.

Se tomamos a definição da crise dos 1970 no sentido de crise de superprodução, determinada, em seus traços gerais, pela queda nas taxas de lucro, conforme apontamos nos tópicos anteriores, então devemos observar que é uma crise no “sociometabolismo” do capital em seu conjunto e, portanto, da potência hegemônica durante essa fase no capital internacional (e também nas demais potências). Nesse sentido, não consideramos exagerado dizer que seria um erro analítico buscar separar (não na exposição, mas na concepção da investigação) a economia da situação política internacional, embora nem sempre os efeitos são de fácil percepção à primeira vista.

O que queremos dizer com isso é que a crise dos 1970 marca um questionamento da hegemonia norte-americana, ou o início de um declínio postergado pelos anos neoliberais, e que é importante remarcar a estreia desse questionamento na medida em que ele se expressa em três fatores de três esferas distintas. Em primeiro lugar, pelo componente geopolítico, referente à campanha dos EUA na Guerra do Vietnã, com uma ofensiva imperialista extraordinária, mas que não conseguiu subjugar os vietnamitas e acabou por se tornar um símbolo tanto da resistência antiguerra quanto da debilidade hegemônica norte-americana. Segundo, do ponto de vista da luta de classes, o evento que se deu paralelamente à ofensiva

do Tet, um dos marcos da guerra ocorrido em 1968, emergido na França do

movimento estudantil e operário naquilo que ficou conhecido como Maio de 1968 e acabou por se constituir em outra determinação decisiva do fim da “estabilidade de Yalta”. Por fim, conforme desenvolvemos mais detidamente nas seções anteriores, a quebra do padrão Bretton Woods de 1971, a entrada do sistema de câmbios flutuantes e a crise de superprodução de 197346. Assim, entre o final dos 1960 e o início dos

46 De uma forma ou de outra, os autores como Immanuel Wallerstein ou Giovanni Arrigui, que tratam

1970, atinge-se o “ponto culminante” da hegemonia norte-americana, entrando em um período de falência gradual, que é revertido parcialmente com a fase neoliberal, mas não chega a mudar o curso de debilitação dessa hegemonia.

Uma avaliação equivocada, que ao nosso ver diz muito sobre essa debilidade quando se dissocia o elemento econômico do político, esteve em um autor que apontamos como um dos principais intérpretes da crise dos 1970 e utilizamos para a definição do caráter da crise, que foi Ernest Mandel. Pouco antes do estourar da crise, em 1969, em sua Introdução à teoria econômica marxista, produto de um curso ocorrido em 196347, Mandel utiliza o termo “neocapitalismo” para definir o momento que estava vivenciando. Entre os fatores que o autor elenca para definir o “neocapitalismo”, partia-se do contexto de Guerra Fria, com um enorme complexo militar que buscava incessantemente se revolucionar e produzia, efetivamente, alguns avanços tecnológicos. Nesse contexto, a economia se mantinha em dinâmica, com um desenvolvimento parcial das forças produtivas e tecnológicas. Agrega-se a isso o fato de que com as revoluções anticoloniais, não tendo formado em países um Estado operário, abria-se um campo de exploração do capital relativamente fértil, com novos mercados; por fim, com peso dos monopólios e trusts na economia, os aspectos ainda mais acirrados de programação-planificação capitalista que se colocavam, aprofundando o que já havíamos visto no começo do século XX, contando com a estatização que vai ocorrendo nos sindicatos para ir garantindo acordos com as direções sindicais de anos, por vezes, para garantir suas margens de lucro. Em suma, Mandel diz que nessa fase o Estado aparece cada vez mais como o garantidor dos lucros empresarias e financeiros. Dessa forma, o capital parecia ter entrado num período de relativo equilíbrio, instável dado o contexto da Guerra Fria. Em outras

os mesmos elementos (WALLERSTEIN, 2004, p. 25; ARRIGUI, 2008). No caso de Wallerstein, este destaca mais o elemento do Vietnã e de Maio de 1968, dando menos ênfase à crise dos 1970 na referência colocada (embora trate disso em outras passagens) e apontando a queda do muro de Berlim como novo elemento de comprovação dessa crise, com o que não concordamos, pois se trata justamente do momento em que o imperialismo norte-americano ganhou certo fôlego com a restauração capitalista nos ditos países socialistas.

47 Na introdução do livro, da edição “afrontamento”, de 1975, pode-se ler que “Apresentada sob a forma

de curso, esta Iniciação que sintetiza a aplicação do ponto de vista marxista à análise dos problemas capitalismo, foi exposta em 1963 num fim de semana de formação organizado em Paris pelo Partido Socialista Unificado” (MANDEL, 1963).

palavras, são alguns dos fatores que fizeram Mandel na primeira metade da década de 1960 enxergar um “neocapitalismo” nascente.

O próprio Mandel expressava, já naquele momento, que não via uma superação das crises ou “uma supressão das contradições” pelos mecanismos do neocapitalismo; para ele, reduz-se a um quadro de “longo prazo” a amplitude e a gravidade dessas contradições48. Queremos dizer com isso que, no período de que tratamos, mesmo economistas do calibre de Mandel sofreram os efeitos do período da “Era de Ouro” ao enxergar a situação econômica como uma estabilidade mais estrutural do que de fato era. Isso se dá porque os mecanismos de superprodução, conforme o mesmo Mandel enxergaria mais tarde, continuavam operando a todo o vapor e seriam um componente fundamental do questionamento da hegemonia do capital financeiro tal como havia se dado no pós-Guerra, por um lado, de da hegemonia norte-americana em particular, por outro, questionada pelos mecanismos econômicos (a crise de 1973), políticos (Maio de 1968, o Outono Quente italiano, a Primavera de Praga ou a Revolução Portuguesa) e geopolíticos (o fracasso na Guerra do Vietnã).

Já em 1972, portanto, um tanto mais próximo da crise, Mandel escreve aquela que ficaria conhecida como sua principal obra, O capitalismo tardio. No texto, expunha traços decisivos do fim do boom do pós-guerra e uma nova dinâmica da acumulação capitalista, com a qual ia se desfazendo o mundo do welfare state, imbricando as crises econômicas com as crises políticas relacionadas ao papel intensivo da atuação estatal no pós-guerra, encontrando limites nos superlucros advindos das inovações produtivas e tecnológicas dos anos 1950, percebendo as debilidades dos mecanismos econômicos anticíclicos como a “inflação permanente” – que não pode manter eternamente os lucros extraordinários, entre outros elementos.

48 “estes traços distintos do neo-capitalismo operam não para suprimir as contradições do capitalismo

— as crises rebentam como dantes, o capitalismo não encontrou meio de assegurar um crescimento ininterrupto, mais ou menos harmonioso — mas para as reduzir (ao menos temporariamente, no quadro dum período a longo prazo de crescimento acelerado e a preço duma inflação permanente) a sua amplidão e gravidade” (MANDEL, 1975, p. 61)

A relação entre os distintos elementos econômicos levou Mandel a cunhar a expressão “capitalismo tardio”, que serviu para que ele se referisse a esse processo de transformações no capitalismo internacional, expondo os distintos elementos que colocavam fim ao período de boom do pós-guerra e ajudasse a dar elementos para pensar o novo período que ganhava a arena internacional com a crise dos 1970. No entanto, em sua introdução a O capitalismo tardio, Mandel se preocupa em contrariar aqueles que possam utilizar dessas reflexões para compreender que estava surgindo uma nova época49 do capitalismo internacional, que na verdade serve também (isso nos parece fundamental perceber), embora não declaradamente, como uma revisão de sua teoria do neocapitalismo.

Nesse sentido, em contraposição ao neocapitalismo, para ele, a faceta mais clara do capitalismo tardio era a de complexificar as tendências expostas pela análise marxista do começo do século em que se consagrou a visão de que a predominância do capital financeiro marcaria definitivamente a “face” do capitalismo contemporâneo. Assim escreve Mandel:

Em primeiro lugar, o termo “capitalismo tardio” não sugere absolutamente que o capitalismo tenha mudado em essência, tornando ultrapassadas as descobertas analíticas de O Capital, de Marx, e de O Imperialismo, de Lênin. Assim como Lênin só conseguiu desenvolver sua descrição do imperialismo apoiando-se em O Capital, como confirmação das leis gerais, formuladas por Marx, que governam todo o decorrer do modo de produção capitalista, da mesma maneira, atualmente, só podemos intentar uma análise marxista do capitalismo tardio com base no estudo de Lênin de O Imperialismo. A era do capitalismo tardio não é uma nova época do desenvolvimento capitalista; constitui unicamente um desenvolvimento ulterior da época imperialista, de capitalismo monopolista. Por implicação, as características da era do imperialismo enunciadas por Lênin permanecem, assim, plenamente válidas para o capitalismo tardio (MANDEL, 1982, p. 5).

Ainda que Mandel aponte não ver uma nova “época”, uma nova fase no sentido global de operação do sistema – o que realmente parecia ficar mais evidente quando ele utilizou a expressão “neocapitalismo” na análise econômica, a ênfase nas

49 Por “época” do capitalismo nos referimos aqui a uma transformação profunda de dimensões que

possam requalificar a caracterização do capitalismo e sua dinâmica em seu conjunto (tomado como sistema internacional), e não apenas alguns de seus aspectos. Nesse sentido, para a caracterização clássica de virada de “época” no capitalismo nos referimos ao processo ocorrido na virada do século XX, com predominância do capital financeiro e formação de um “mundo de monopólios”.

características econômicas do capitalismo em detrimento dos aspectos geopolíticos (ou da competição interestatal) talvez evidenciem uma das importantes brechas de seu pensamento nesse momento e que acabam, pelas lacunas e ênfases no livro, possibilitando interpretações que confluem para o desenvolvimento de outras visões economicistas do período. Para entender essa brecha no seu pensamento, recorremos a Bach, em sua análise de fim dos anos 1990 sobre o pensamento de Enerst Mandel:

Se é verdade que [Mandel] reconhece como fator de fundamental importância para dar início ao que nós definimos como crise de acumulação capitalista a quebra da ordem monetária de Breton Woods, ressalta disso especialmente seu aspecto econômico, subvalorizando as consequências políticas e por isso não define como característica essencial do fim do boom o princípio de crise da hegemonia norte-americana e o renascimento das disputas interimperialistas no marco do fortalecimento aos quais haviam chegado os imperialismos competidores, Alemanha e Japão (BACH, 1998).

Daqui se depreende uma questão metodológica que nos parece fundamental: a análise das transformações do capitalismo (como a que devemos fazer para pensar o mundo pós-2008) não podem ser separadas da análise dos conflitos entre Estados e da situação da correlação de forças entre as classes em nível nacional e internacional. A debilidade apontada na análise de Mandel fatalmente se desenvolve em visões com traços economicistas ou objetivistas da realidade na obra em questão, o que é relevante para se pensar quando se toma as transformações do sistema em seu conjunto. A despeito do fortalecimento dos EUA como potência no pós-guerra, havia a URSS, outro grande ator internacional, e a importância disso é notar que o stalinismo era dominante nos partidos comunistas em esfera global, o que impactava o movimento operário de um lado, e o jogo geopolítico.

Tendo isso em vista, o que queremos pontuar é que a reflexão sobre a hegemonia norte-americana (e as contradições que esta herdou da crise dos 1970) deve ser parte fundamental da análise dos desdobramentos da crise. E seria impossível falar em hegemonia de uma potência como os Estados Unidos e a estabilidade da fase neoliberal do capitalismo sem se observar as consequências

concretas para o mundo da crise da União Soviética (que levará a uma crise da esquerda internacional e uma ofensiva burguesa sem paralelos contra a classe trabalhadora) e a derrota do último ascenso dos anos 1970 e começo dos 1980. Essa combinação, entre a economia, geopolítica e os conflitos capital vs. trabalho em nível internacional consideramos um fundamento advindo da experiência da crise dos 1970, fundamental para entender não apenas essa crise, mas também porque nos ajuda a tirar lições “metodológicas” para se pensar o mundo pós-2008.