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2 A IDENTIDADE POLICIAL MILITAR

2.3 A CULTURA ORGANIZACIONAL

2.3.3 A cultura conservadora e autoritária

Como ficou evidenciado ao se abordar as questões da formação militar, da estrutura dominante masculina e da prevalência do chamado ethos guerreiro no âmbito da Polícia Militar, nota-se, pois, que há em seu ambiente organizacional uma conduta fundamentalmente conservadora, que repele as mudanças que venham a modificar as suas estruturas ou os seus métodos de trabalho.

Para se compreender melhor o que é ser conservador, utilizam-se aqui os pensamentos do filósofo político Michael Oakeshott (1987). Segundo o autor, a conduta conservadora corresponde à disposição em pensar e comportar-se de determinada forma. Sendo assim, trata- se de certas atitudes em relação à mudança e à inovação, que são vistas como uma ameaça à identidade, sendo a pessoa de caráter conservador considerada firmemente disposta a preservar a sua identidade. Em suas palavras:

Ser conservador, portanto, é preferir o conhecido ao desconhecido, o que foi experimentado ao que não o foi, o fato ao mistério, o real ao possível, o limitado ao ilimitado, o próximo ao distante, o suficiente ao superabundante, o conveniente ao perfeito, o riso de hoje à felicidade utópica (OAKESHOTT, 1987, p. 22).

Para o autor, a conduta conservadora, porém, não significa ser avesso às mudanças, mas perceber que nem toda inovação equivale a um melhoramento, principalmente reconhecendo que a inovação acarreta certas perdas e um possível ganho. A disposição de ser conservador é, portanto, calorosa e positiva em relação ao gozo, e correspondentemente crítica e fria em relação à mudança e à inovação.

Por essa perspectiva, vê-se que a Polícia Militar possui, de fato, uma cultura conservadora. Há, portanto, uma dificuldade quanto às tentativas de renovação nas estratégias de serviço. Foi assim com a adoção das práticas de polícia comunitária (CRUZ, 2013) e também com a discussão de temas relativos às modificações na estrutura da segurança pública, a exemplo da unificação das polícias militar e civil, o estabelecimento do ciclo completo de polícia e a desmilitarização das polícias militares (BALESTRERI, 1998).

Essa postura institucional, entretanto, começa a encontrar resistências por parte dos seus integrantes. Essa atmosfera foi revelada pelo relatório da Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) intitulado “o que pensam os profissionais de segurança pública no Brasil” (BRASIL, 2009a). Nesse documento, observa-se que, embora não sejam uníssonos quanto ao modelo ideal de estrutura das polícias, esses profissionais defendem uma mudança no atual aparelhamento dos órgãos de segurança pública.

No campo dos estudos e pesquisas no interior das instituições policiais, Bittner (2003) afirma que a polícia é extremamente desconfiada, de modo que impede, dificulta ou pelo menos vê com indiferença qualquer pesquisa ou observação crítica em sua instituição. Não somente no meio policial, mas no meio militar também se verifica essa tendência conservadora institucional (CASTRO, 2004; LEIRNER, 1997). Portanto, acaba sendo natural a prevalecente expressão conservadora nas polícias militares.

Muniz (2000) e Nummer (2014), entre outros, são exemplos de pesquisadoras que relatam as dificuldades que enfrentaram para poder adentrar ao ambiente policial militar, devido ao fato de serem pesquisadoras de uma instituição externa e civil, logo, “paisanas”. Elas contam o quanto desconfiada é a instituição para com as pessoas externas de modo que buscavam estabelecer distâncias para ratificar as diferenças atribuídas à condição de civil em contraposição à de militar. Por esse viés, Nummer (2014) assevera que as resistências e o controle da PM em relação à pesquisa e à presença de civis em quartel sob sua

responsabilidade estão vinculadas a uma espécie de virtude da profissão, que diz respeito a uma vigilância, associada a uma identidade e ao sentimento de pertencimento à corporação.

Além disso, passando-se a um contexto mais amplo, Rolim (2007) aduz que os caminhos de inovações na segurança pública seguem impossibilitados de se desenvolverem devido à forte resistência impregnada não somente na cultura policial, mas na própria cultura da sociedade. A primeira não facilita a introdução de espaços e considera as discussões acadêmicas dissociadas dos desafios práticos do serviço operacional enquanto a segunda idealiza medidas conservadoras e consente para a perpetuação de políticas públicas que mantêm as condições para a ampliação do crime e da violência no Brasil. Ainda segundo o autor, mudanças nas estruturas de policiamento, nos procedimentos e rotinas policiais são, via de regra, mal recebidas pelas instituições e vistas como ameaças a um equilíbrio que se pretende manter.

Logo, embora muitas políticas públicas estejam sendo discutidas para romper com o status quo ineficiente do sistema de segurança pública, um dos pontos em que se tem buscado causar uma mudança significativa é na cultura policial. Esta assimila as resistências a partir do momento de formação de modo a reproduzir os discursos humanizadores dos Direitos Humanos e das estratégias de Polícia Comunitária no aspecto formal, mas informalmente continua-se com a ideia difundida de que “direitos humanos são privilégios de bandidos” (CALDEIRA, 1991) e de que a aplicação da lei, por muitas vezes, configura-se como uma barreira à execução do trabalho policial (ONU, 1997). Com efeito, é como se a formação voltada para a polícia cidadã fosse um engodo para a sociedade acreditar que a polícia se adequou às atuais demandas, exigências do modelo democrático.

Nesse sentido, em pesquisa realizada por Neves (2002) durante um curso sobre Direitos Humanos ofertado a policiais civis e militares pela Comissão de Direitos Humanos da Universidade Federal de Sergipe, entre abril de 1999 e maio de 2001, constatou-se que há uma tendência a se usar os Direitos Humanos como discurso vazio, isto é, um discurso feito apenas para uso público, que não afeta a prática do emissor. Dessa forma, os policiais aparentam concordar com os princípios em torno da ideia de Direitos Humanos, mas nos momentos de aplicá-los, ocorrem fortes resistências justificadas em grande parte pela pretensa incompatibilidade das leis do país com a realidade vivenciada pelos policiais nas ruas.

Então, resulta como consequência o fomento a um modelo reativo de policiamento e a uma visão dos policiais militares de que há um desequilíbrio entre o conhecimento adquirido para o desempenho do trabalho policial nos bancos das academias e a realidade na qual se realiza o trabalho cotidiano da polícia. É o que se concebe como dissonância entre a teoria e a

prática. Ou seja, os policiais recebem um treinamento teórico acerca das ações corretas a serem adotadas em face de determinadas situações, mas, confrontados com essas mesmas situações, acabam compelidos a agir de maneira diversa devido às práticas provenientes da transmissão do currículo oculto e da ética policial militar.

Sendo assim, embora havendo uma ampla corrente que deseja e busca mudanças, a cultura conservadora é uma característica ainda fortemente vigente nas instituições policiais militares e em seus mais diversos aspectos. Ela vai desde a prioridade dada à formação militar em detrimento da formação policial, passa pela rejeição à realização de pesquisas e à inovação, permanência dos moldes de realização dos serviços operacionais e burocráticos, a dominação masculina e o ethos guerreiro, entre tantos outros fatores que dificultam o estabelecimento de uma postura crítica e reflexiva voltada para o estabelecimento de uma polícia cidadã. Portanto, o conservadorismo tende a manter uma cultura autoritária e dificultar a instauração de uma cultura democrática no âmbito organizacional.

Para dar continuidade, no próximo capítulo, demonstra-se a formação do atual sistema brasileiro de segurança pública e o caminho percorrido ao longo de sua história, destacando- se como se configurou a militarização da polícia. Enfatiza-se, pois, o período ditatorial e as remanescências de tal fase na atual conjuntura, compreendendo o desenvolvimento de uma atmosfera de busca por uma segurança pública defensora de Direitos Humanos. Portanto, busca-se inserir uma cultura democrática no âmbito das polícias militares, englobando nesse contexto desde a educação em Direitos Humanos até as políticas de segurança pública, como o plano nacional de segurança pública, o PRONASCI, a Matriz Curricular Nacional, dentre outras.

3 AS POLÍCIAS MILITARES NA INSTITUCIONALIDADE JURÍDICO-POLÍTICA