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1 HISTÓRICO DAS INSTITUIÇÕES POLICIAIS MILITARES

1.3 POLICIAMENTO NA PÓS-MODERNIDADE

Como se viu, a Modernidade trouxe um novo conceito para o policiamento e para a polícia e a Pós-Modernidade o modificou, adaptando-o a uma nova realidade, isto é, a um contexto social diferente, caracterizado por um cenário de reestruturação social. Johnston (2002) destaca algumas das mais significativas mudanças: a globalização e os seus processos, que operam em escala mundial, acentuando a dicotomia entre os aspectos local e global;

mudanças econômicas como o aumento das taxas de desemprego e do trabalho feminino, e o aparecimento de novas formas de produção, destacando-se o pós-fordismo e os seus princípios de flexibilidade e descentralização; mudanças no sistema de divisão de classes, pois além da ainda dominante estratificação por classe, surgem outras formas como a divisão por etnia ou por nacionalidade, e, por conseguinte, as agências policiais passam a ter que lidar com os chamados grupos socialmente vulneráveis; e mudanças políticas, resultando em mudança de responsabilidade para entidades supranacionais, redistribuição do poder estatal e privatização de empresas estatais. Todas essas transformações atingem a segurança pública e tornam indispensável repensar o papel da polícia nesse novo contexto social.

Nesse cenário, como aspecto recente, Garland (2008) credita ao século XX o chamado novo paradigma do crime ou novo dilema criminológico. Para este autor, apenas a partir de então, os órgãos policiais passaram a reconhecer o seu papel limitado em prevenir a criminalidade. Eles passaram a compartilhar as responsabilidades com as diversas instituições da sociedade, fazendo surgir novas estratégias de policiamento, como as estratégias preventivas associadas ao policiamento comunitário. Bayley e Skolnick (2002) entendem que a polícia abandonou aquele profissionalismo distante, orientado pela técnica, que predominava no começo dos anos 60, para adotar um trabalho mais voltado para a comunidade e para a prevenção do crime.

Soma-se a esse panorama, uma cultura da sociedade em que se busca a paz e o fim de todas as formas de violência entre as pessoas e entre o Estado e as pessoas (esse é um processo que vem ocorrendo desde a Modernidade). Dessa maneira, Keegan (2006) é bem enfático ao afirmar que, assim como ocorreu com a abolição da escravidão, a transformação cultural está fazendo com que a guerra, ao menos a guerra no mundo desenvolvido, siga uma trajetória semelhante. Reflexo disso são os dados explicitados por Lutterbeck (2013), que demonstram uma redução contínua nos efetivos das Forças Armadas europeias e um aumento nas forças de segurança, sejam estas militares ou não.

Surge então uma questão pertinente ao se tratar do papel social da instituição policial: “em que termos, uma sociedade dedicada à paz pode institucionalizar o exercício da força?”. Bittner (2003) responde a esse questionamento já em 1970, argumentando que há duas soluções plausíveis. A primeira possibilidade é definir como “inimigos” os alvos da força legítima e como “guerra” o aumento da força coerciva contra eles. Daí falar-se em combate ao crime ou guerra às drogas. Além disso, espera-se que aqueles que empreendem essa guerra estejam possuídos pelas virtudes militares do valor, da obediência e do espírito de solidariedade. A segunda possibilidade seria conceber os alvos da força como objetivos

práticos e sua realização como um assunto de expediente prático, portanto, próprio do ideal de racionalização moderna. Nesse caso, o profissionalismo está presente durante todo o processo. O trabalho é concebido como de responsabilidade pública, cujo exercício é atribuído individualmente aos incumbidos de sua prática, que são pessoalmente responsáveis pelas decisões e ações.

Nesse conflito na determinação do papel policial, verifica-se que nas polícias militares brasileiras, nota-se que prevalece a primeira alternativa, uma vez que a organização é cercada de elementos que indicam a permanência de uma Doutrina de Segurança Nacional12 e um alinhamento aos preceitos militares acima daqueles preceitos considerados próprios de uma polícia profissionalizada.

Assim, tomando-se como exemplo a Polícia Militar da Paraíba (PMPB), os policiais militares que se formam no Curso de Formação pela via de ingresso ordinário, são formados para exercer primeiramente as funções tipicamente operacionais e pertencem ao “Quadro de Oficiais Combatentes” (QOC) ou ao “Quadro de Praças Combatentes” (QPC). Logo, a designação institucional já aponta que o profissional é uma pessoa formada para o combate, isto é, para uma ideia de que o serviço se constitui em uma luta. Para se almejar uma mudança institucional efetiva, com uma profissionalização plena e adequada, deve-se, pois, atentar para tais aspectos e os efeitos que estes podem acarretar ao serviço.

Afinal, tanto se fala em profissionalização do sistema de segurança pública, mas o Brasil mantém uma estrutura militarizada deste sistema, o qual tem o seu formato amparado constitucionalmente. Nesse sentido, Bittner (2003) advoga que a aderência ao modelo quase- militar pelas polícias é uma pretensão bastante autodestrutiva cujo único efeito é criar obstáculos para a consolidação de um sistema profissional de policiamento. Nesse contexto, a própria Lei ou o princípio da legalidade, norteador das práticas policiais, passa a ser visto como um obstáculo que, ao impor limites ao Estado, notadamente aos policiais, acaba por impedir que a polícia cumpra a sua função de manter a ordem social para que esta não se desagregue (BITTNER, 2003; GOLDSTEIN, 2003; ONU, 1997). Nesse prisma, Goldstein (2003, p. 28-29) acentua que:

Com a ausência de um esforço para criar uma série de valores no policiamento, o que acaba por prevalecer são os valores da subcultura policial. (...) É mais do que urgente compreender-se que a preservação e a propagação dos valores democráticos devem ser o ethos do trabalho policial profissionalizado e que a polícia deve ser instada a criar um sistema de policiamento em que tais valores sejam a meta prioritária.

Portanto, o papel e as funções da polícia são conceitos inexatos, que divergem de acordo com os diversos teóricos que se arriscam em delimitá-lo. Destaque-se ainda que a Pós- Modernidade trouxe novos elementos que evidenciaram a necessidade de se repensar o conceito de polícia, ultrapassando a ideia de polícia moderna de Bayley (2002) bem como exigindo a superação ou, ao menos, a revisão dos conceitos trazidos por teóricos como Bittner (2003, p. 138), segundo o qual “o papel da polícia é entendido melhor como um mecanismo de distribuição de força coerciva não negociável empregada de acordo com os preceitos de uma compreensão intuitiva das exigências da situação”. Alternativa plausível para a definição de Bittner seria a assimilação da proposta de Shearing (2003, p. 428) para o qual o policiamento se refere “à preservação da paz, isto é, à manutenção de uma forma de fazer as coisas em que as pessoas e as propriedades estão livres de interferências não justificadas, de modo que as pessoas possam fazer as suas tarefas com segurança”. Nesse diapasão, Johnston (2002, p. 246-247) assevera que:

Qualquer definição de policiamento tem de ser funcional, ao invés de uma definição baseada nas atividades de um grupo particular de funcionários. As tentativas existentes de criar tal definição funcional originaram debates prolongados sobre se essa função pode ser definida em termos de policiamento repressivo, de serviço social, ou de manutenção da ordem. Além disso, tem havido muitas discussões sobre se o exercício de tais funções poderia ser constituído de modo máximo/proativo ou mínimo/reativo. Até certo ponto, esses debates realmente complexos, tornam-se ainda mais complicados pelas suas tendências em fundir a descrição (o que a polícia faz) e a prescrição (o que a polícia deveria fazer).

Nessa discussão, os conceitos se complementam e demonstram a complexidade em se definir o papel dessa instituição tão presente na contemporaneidade. Contudo, como foi apresentado ao longo desse capítulo, os autores costumam desqualificar a militarização do policiamento, entendendo-a como um desafio a ser superado em busca de uma polícia democrática e cidadã. Ainda assim, também há autores que discordam desse posicionamento e até defendem a existência de polícias militares (ou gendarmeries). Para aprofundar-se no tema, no próximo capítulo, busca-se caracterizar a instituição policial militar a partir de seus mais variados aspectos, desde os basilares princípios da hierarquia e da disciplina até alguns aspectos organizacionais como o ethos militar, a formação militar e a cultura organizacional.