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4 ANÁLISE CRÍTICA DAS FALAS SOBRE O MILITARISMO

4.3 MULHERES NA POLÍCIA MILITAR: PRECONCEITO, DESVALORIZAÇÃO

Como a estrutura militar é caracterizada por uma ampla dominação masculina, discutir a participação feminina com os entrevistados se mostrou uma tarefa necessária para se compreender aspectos próprios da identidade policial militar. Antes de explicitar as falas dos policiais militares, foi preciso coletar dados institucionais sobre a participação das mulheres policiais militares, que são chamadas por “fems” no interior da organização. Nesse cenário, para evidenciar a atualidade e a pertinência do que foi apresentado, partiu-se aqui para o locus sob o qual se debruça a presente pesquisa, isto é, a Polícia Militar da Paraíba (PMPB). Para tanto, analisaram-se aqui algumas questões referentes ao ingresso das policiais militares femininas, ao quantitativo presente e ao desempenho de suas funções.

Por esse eixo, a primeira problemática a ser examinada é concernente ao ingresso delas na PMPB. Como já explicado, há duas vias de acesso: ou ingressam para se formarem como oficial no CFO ou como praça no CFSd. Para iluminar bem esse cenário, primeiramente, faz-se necessário analisar o quantitativo e a proporção de vagas disponível para cada uma das formas de ingresso nos últimos concursos públicos que foram realizados. Para o CFSd, curso que se destina a formar os praças, que são aqueles que atuarão mais na linha de execução do policiamento, o último edital foi publicado em 2014 e nele foi destinada uma quantidade de 520 vagas, sendo especificadas necessariamente 494 para o sexo masculino e 26 para o feminino, o que corresponde a 5% das vagas. No último edital do CFO, por sua vez, publicado em 2015, foram destinadas 30 vagas, sendo 05 para o sexo feminino, estabelecendo uma proporção de 16,7%, logo mais de três vezes maior que a das praças.

O segundo ponto a ser abordado é relativo ao número total de policiais femininas no âmbito da PMPB e à natureza do serviço que elas desempenham. Para analisar tal temática, é preciso atentar para os dados que foram coletados junto à Instituição. Neles, são demonstrados o quantitativo geral de policiais militares da ativa30 e os respectivos quantitativos de acordo com o sexo e de acordo com a posição hierárquica na instituição, ou seja, se oficial, aspirante- a-oficial, cadete ou praça.

PMS GERAL PMS MASCULINOS PMS FEMININAS

EFETIVO EFETIVO PORCENTAGEM EFETIVO PORCENTAGEM

OFICIAIS 809 654 80,85% 155 19,15%

ASPIRANTES 34 29 85,30% 5 14,70%

CADETES 62 50 80,65% 12 19,35%

PRAÇAS 8191 7643 93,31% 548 6,69%

TOTAL 9096 8376 92,09% 720 7,91%

Tabela 1. Distribuição do efetivo da PMPB de acordo com a posição hierárquica e com o sexo31.

Pela análise da tabela, verifica-se que em todas as situações expostas, o número de mulheres na PMPB é bastante reduzido em relação ao efetivo masculino. Porém, destaca-se o fato de que o número proporcional de oficiais femininas é quase três vezes maior que o

30 Atividade ou Inatividade se refere a situação institucional do policial militar. O Estatuto dos Policiais Militares

da Paraíba (PARAÍBA, 1977), define que: os Policiais Militares se encontram em uma das seguintes situações: a) Na Ativa: I - Os policiais militares de carreira; II - Os incluídos na Polícia Militar, voluntariamente durante os prazos a que se obrigaram a servir; III - Os componentes da reserva remunerada, quando convocados; e IV - Os alunos de órgãos de formação de policiais militares da ativa.

b) Na Inatividade: I - Na reserva remunerada, quando pertencem à reserva da Corporação e percebem remuneração do Estado, porém, sujeitos ainda, à prestação de serviço na ativa, mediante convocações; II - Reformados, quando, tendo passado por uma das situações anteriores, estão dispensados, definitivamente, da prestação de serviço na ativa, mas continuam a perceber remuneração o Estado.

número de praças femininas. Nesse contexto, deve-se salientar que o atual currículo do CFO da PMPB expressa claramente que o oficial é formado para adquirir determinadas competências, consistindo de maneira geral em competências pessoais e administrativas, tais como comandar pelotões, assessorar comando, coordenar policiamento, gerenciar recursos humanos e logísticos, planejar ações, dentre outras (COSTA; FRANÇA, 2016). Sendo assim, percebe-se que o número maior de mulheres policiais militares no quadro de oficiais pode ser explicado pelo prisma de se enxergar as mulheres como adequadas para um tipo de serviço específico na Polícia Militar, mais voltado para competências gerenciais. Tal inferência implica na associação entre o ingresso de mulheres no aparelho policial militar e o seu emprego em funções burocráticas administrativas e ou direcionadas para as suas capacidades estratégicas, o que corrobora com as pesquisas de Calazans (2004) e Nummer (2014).

Além disso, a partir de informações do mesmo banco de dados, foi possível ainda constatar que, do número total de policiais “fems” praças, isto é, 548, apenas 152 constam no sistema no desempenho da função de policiamento. Por esses moldes, considerando que todas estas estejam de fato desempenhando uma função operacional, ainda assim, estatisticamente seria o equivalente a aproximadamente 27,74% das praças “fems” da PMPB e cerca de 1,85% do número total de praças. Quando comparado ao sexo masculino, observa-se que eles correspondem a um número de 5747 homens atuando na função de policiamento, o que equivale a 75,2% do total de praças masculinos e 70,16% do total de praças. Portanto, para cada policial praça feminina no serviço operacional da PMPB, tem-se aproximadamente 37 homens executando essa mesma função.

Finalmente, interessante notar ainda que, ao se conjugar as informações obtidas tanto dos editais quanto do quantitativo de policiais militares na Ativa, as proporções de policiais militares femininas nos dois quadros principais, isto é, praças e oficiais, são semelhantes, indicando uma falta de perspectiva de mudança ou pelo menos um desinteresse institucional em ampliar a participação feminina nos quadros da PMPB. Portanto, mais uma vez, trata-se de uma política de manutenção do status quo próprio de uma organização tradicionalista, o que também é revelado em tantos outros estudos que evidenciam a dificuldade em implantar outras mudanças nos organismos policiais nos planos nacional e internacional (BAYLEY & SKOLNICK, 2002; GOLDSTEIN, 2003; MONJARDET, 2003; MUNIZ, 2000; ROLIM, 2007). Por conseguinte, o que os dados apresentados vêm a comprovar é a continuidade da dominação masculina no âmbito das polícias militares, dessa vez tornada manifesta nos documentos analisados.

Por esse caminho, as falas dos policiais militares entrevistados vêm para fortalecer todos esses dados apresentados demonstrando-os a partir de suas percepções no que tange à opinião deles quanto à participação feminina bem como relatos de experiências que envolvem o preconceito com as mulheres policiais militares. Primeiramente, como explicitado por Calazans (2014), os policiais também percebem que essa menor participação das mulheres no policiamento não se associa somente ao fato de ser uma instituição militar, mas por ser uma instituição policial. Por esse eixo:

Eu vejo sim, algum preconceito em relação às mulheres e inclusive do próprio Estado. Tanto que o número de mulheres hoje é bem reduzido em relação aos homens. Vários comentários que a gente ouve é que a mulher não faz o nosso serviço no 100%, uma vez que muitas vezes o nosso serviço depende de força muscular e nesse lado a mulher tem um pouco de desvantagem (P1-03).

Nossa corporação, por ter uma formação extremamente machista, as mulheres são prejudicadas nesse sentido. Mas eu não vejo que se vincule ao militarismo. Eu vejo mais que seja um problema em relação à história da corporação, por inicialmente serem apenas homens, e como um problema que não se restringe à polícia militar ou por ser uma instituição militar (P1-09).

A fala apresentada acima também reforça o ponto de vista de Nummer (2014) segundo o qual as mulheres são vistas como outsiders e os homens como os estabelecidos. Por essa ótica, os dados institucionais também reforçam essa perspectiva no âmbito da PMPB, uma vez que as primeiras mulheres na Corporação, que já possui 184 anos de existência, apenas ingressaram no ano de 198732. No contexto geral, os policiais militares que foram entrevistados destacaram a importância de se ter mulheres no serviço operacional, especialmente devido à dinâmica do serviço e ao aumento do número de mulheres envolvidas com a criminalidade. Eles relataram também que percebem o quanto ainda é diminuta a participação das policiais na rua. Nesse sentido:

Eu vejo a participação feminina cada vez mais necessária, porque a dinamicidade da sociedade hoje requer a participação feminina. Nós ainda temos um quadro de participação feminina muito pequena na instituição. Acho que deveria ter, no mínimo, uma mulher por guarnição. Porque às vezes a gente se depara com situações nas ruas em que os infratores são mulheres e no caso de uma busca pessoal, por exemplo, embora o CPP (Código de Processo Penal) não proíba, mas às vezes a gente acaba deixando de fazer uma apreciação mais detalhada pela ausência de uma mulher na guarnição (P1-04).

O efetivo feminino já é reduzido e deste efetivo reduzido, são pouquíssimas as que trabalham na rua. (...) Há um clamor muito grande feminino por direitos iguais,

mas infelizmente quando chega na hora dos deveres iguais, isso não é notado. Essa questão de ir pra rua, ir pra frente de batalha, são pouquíssimas que vão e na maioria das vezes vão voluntariamente (P1-07).

De certa forma, acaba sendo também culpa de algumas mulheres, porque, por exemplo, existem muitas mulheres que têm o desejo de entrar na polícia, mas quando elas entram, elas mesmas não querem trabalhar na rua e já procuram uma atividade administrativa. Enfim, elas não procuram se adequar àquela atividade fim de rua. Muitas vezes, elas mesmas se utilizam do fato de serem mulheres pra não realizar determinada situação (O1-04).

Interessante observar que os dois últimos policiais acima atribuem parcela da culpa às próprias mulheres pela sua ausência na rua, pois, na visão deles, trata-se de falta de interesse delas em trabalhar na atividade de policiamento, buscando então se manter nas tarefas administrativas. Afinal, um questionamento pertinente é se as mulheres se afastam da atividade de policiamento por motivos e interesses pessoais ou por não lhes ser ofertado o referido serviço de policiamento na rua, pois elas não seriam vistas como eficientes ou até mesmo adequadas para a função de policiamento. Conforme Nummer (2014) aborda, no ambiente policial militar, as próprias mulheres incorporam, legitimam e naturalizam a dominação masculina. Por esse viés, na PMPB, pode-se argumentar que ambas as hipóteses ao questionamento estão parcialmente corretas, pois elas se complementariam. Nesse cenário, as mulheres são vistas pelos homens como dispensáveis do serviço operacional, uma vez que não teria as qualidades requeridas para o desempenho das referidas funções. Por consequência, elas mesmas introjetariam essa mentalidade e naturalizariam o afastamento das ruas. Diante dessa conjuntura, as falas a seguir denotam novamente essas visões e tratam do preconceito que as mulheres sofrem na perspectiva do policial militar:

Percebo que alguns companheiros têm um certo preconceito em relação às mulheres. Muitos, já ouvi falar que é menos um na viatura, que você tem que tá se preocupando com você e com ela. Mas eu não vejo dessa forma. Vejo que a partir do momento que ela se propõe a participar de uma profissão desse tipo, ela tem total consciência dos riscos e das situações em que vai se inserir (P1-01).

A tropa aceita, mas a opinião que a maioria tem é que, pro serviço de rádio patrulhamento (serviço operacional tradicional), a mulher não tem um valor maior, mas em outros serviços, como administrativos, pode ser que elas se encaixem melhor (P1-05).

As mulheres são vistas pela tropa com certa desconfiança. Porque o nosso meio é muito machista e a gente vê que policiais femininas parecem pensar que tem que dar algo a mais para serem respeitadas. Acho que alguns policiais ainda têm esse pensamento de discriminação e não aceitação, mas com a evolução da própria sociedade, essas arestas vão sendo aparadas e a discriminação irá cessar (O1-01).

Há ainda muito preconceito contra as mulheres. Inclusive, elas se sentem muito assediadas, tanto moralmente devido aos PMs acharem que o serviço da polícia é apenas serviço de força, quanto sexualmente, porque há um número bem menor de mulheres em relação aos homens e eles muitas vezes usam da hierarquia e do próprio regulamento, por serem superiores hierárquicos, eles também assediam muito as mulheres (P2-02).

Sendo assim, fica claro que, na visão dos praças, o preconceito contra as mulheres ainda está presente no ambiente policial militar. Importante ressaltar que, para se certificar da real ocorrência desse processo, o melhor procedimento foi ouvir justamente as vozes das “fems” na instituição para observar o que elas dizem e pensam a respeito. Por esse viés, elas são unânimes em afirmar que certamente o preconceito diminuiu bastante comparado com outros tempos mais antigos. Nessa seara, considera-se natural que, com o passar dos tempos e com o ingresso de policiais mais novos e com maior formação acadêmica, a tendência seja a diminuição progressiva do preconceito em relação à presença das mulheres na atividade fim de policiamento. As oficiais que foram entrevistadas também demonstraram essa perspectiva, embora os seus relatos tenham sido intrigantes ao revelarem uma atmosfera de preconceito não somente na atividade de rua com relação à tropa como um todo, mas também no âmbito interno dos oficiais. Nesse contexto:

Alguns policiais, eu acho que não têm o costume, acha estranho, porque pensa que mulher não tem força, ou que não tem agilidade, aí veem com um pouco de restrição (P1-06-fem).

Vejo que diminuiu a questão do preconceito. Mas ele ainda existe e existe muito. Inclusive hoje me deparei com um relato de uma colega, que já tinha se formado e no período gestacional foi mudada de unidade, foi jogada para várias unidades porque ninguém queria aceitar ela porque ela tava gestante. Além disso, quem aceitou ela na sua unidade, acabou usando ela em atividades que se mostravam ser inúteis, só para constrangê-la, como por exemplo, ler todos os boletins de ocorrência que os militares traziam do ano anterior. Ou, ainda, ter que ir pra um evento distribuir água mineral. E ainda chegou ao ponto de ter policial que, quando ela retornou da licença, afirmou que ela estava devendo nove meses de serviço à instituição. Então, isso é humilhante, fora o assédio moral que tem por trás de tudo isso (O1-03-fem).

Aconteceu no meu curso de formação e pelos próprios colegas de turma, que eles diziam que a gente (policiais femininas) devia ser formada à parte porque o nosso curso devia se chamar CFOG, que eles diziam que era curso de formação de oficiais de gabinete porque tenente mulher na polícia só servia pra servir cafezinho a coronel (O1-05-fem).

Logo, os episódios revelados apontam para uma desvalorização do trabalho feminino e para um desrespeito para com as condições que lhes são inerentes, como, por exemplo, o período gestacional. Evidencia-se, pois, que, embora a participação feminina seja

proporcionalmente maior no círculo dos oficiais, mas mesmo nesse âmbito organizacional, elas são vítimas de preconceitos decorrentes da cultura de gênero imbricada na corporação policial. Finalmente, vale destacar que as policiais entrevistadas relatam que o fato de muitas mulheres estarem trabalhando no administrativo ao invés do serviço operacional não é responsabilidade ou escolha delas, mas dos gestores que estão à frente, que não priorizam ou não buscam a maior inclusão das mulheres na atividade fim de policiamento. E ainda acrescentam que a participação feminina no serviço de rua é um aspecto que continua crescente e cuja tendência aponta para o progressivo aumento. Por essa ótica:

Eu não tenho conhecimento de policiais femininas que tenham, por si sós, optado pelo serviço burocrático. Conheço sim, pessoas que passaram muito tempo trabalhando na rua e foram designadas para funções administrativas e hoje são essenciais nessas funções (O1-05-fem).

A policial militar que sai do curso de formação está tão preparada como um policial do sexo masculino. Agora, os comandos que tendem a colocar elas em outras funções como, por exemplo, funções administrativas (P1-09-fem).

A participação feminina é uma evolução porque é uma instituição que é muito masculina desde os primórdios. É um trabalho que se vê que as mulheres já estão participando. E o homem e a mulher são duas formas de pensar diferentes, que podem se complementar na rua (P1-06-fem).

Hoje, a mulher policial feminina que tira serviço operacional, ela tem que fazer muito mais do que um militar do sexo masculino para poder conseguir o respeito dos seus pares, subordinados e superiores (P2-08-fem).

Por fim, confirma-se que o espaço de trabalho policial militar, especialmente o chamado “mundo das ruas” (MUNIZ, 2000) permanece sendo essencialmente masculino, com as mulheres ocupando números mínimos e buscando assumir funções de destaque, tanto nas ruas quanto na administração, mas ainda enfrentando a resistência masculina, típica da instituição policial militar. Dessa forma, também foi constatado que o preconceito permeia tanto o ambiente dos praças quanto dos oficiais. Outrossim, os policiais que enalteceram a importância das mulheres no serviço operacional não a justificaram com base no fato de que o emprego delas poderia ser tão eficiente quanto o emprego de um policial masculino, mas apenas no fato de que a participação feminina em crimes teria aumentado consideravelmente e isso exigiria uma presença policial feminina maior, tendo em vista o seu emprego específico para abordagem às mulheres. No mais, percebe-se que as “fems” continuam o seu caminho em busca de valorização e reconhecimento em uma organização historicamente construída sob preceitos masculinos como força física e imposição de respeito, mas que nas últimas

décadas já vem se especializando e profissionalizando com o uso de tecnologias menos letais para substituir a força bruta e com o aprimoramento do caráter racional e gerencial da atividade policial.