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2 A IDENTIDADE POLICIAL MILITAR

2.3 A CULTURA ORGANIZACIONAL

2.3.1 A cultura guerreira

A cultura guerreira está vinculada a valores morais bélicos, provenientes de ideais voltados para o combate e às guerras. Na Antiguidade Oriental e Clássica, a virtude guerreira era uma característica que estava no cerne das sociedades, de modo que a guerra não era apenas um meio de afirmação social e política, mas proporcionava também um gênero de vida

considerado sagrado, de modo que morrer em batalha era a maior glória que se podia esperar do guerreiro (MAGNOLI, 2006). Por esse prisma, Elias (1997, p. 58) recorda que “em todas as sociedades guerreiras (incluindo, por exemplo, a antiga Atenas), provar seu valor em combate físico contra outras pessoas, vencê-las e, se necessário, matá-las, era parte integrante do estabelecimento da posição de um homem”.

Com a passagem dos tempos, como essa virtude guerreira se originou das forças que guerreavam, naturalmente ela permaneceu na cultura militar após a formação e a profissionalização dos exércitos permanentes. Os militares foram, assim, sendo cada vez mais compelidos a introjetar em si essa cultura guerreira própria das Forças Armadas. Por conseguinte, como os órgãos policiais surgiram dos exércitos, eles herdaram esses ideais amplamente valorizados nessas instituições.

Keegan (2006) explica que, ao longo dos séculos XVIII e XIX, o serviço militar obrigatório se tornou uma importante forma cultural na vida europeia, uma experiência comum a quase todos os jovens europeus do sexo masculino. Por sua universalidade, sua pronta aceitação pelos eleitorados como uma norma social, o serviço militar era visto como um rito de passagem que transformava os jovens em homens. Desse modo, para o autor, a Primeira Guerra Mundial foi uma aberração cultural monstruosa, consequência de uma decisão de europeus no século de Clausewitz de transformar a Europa numa sociedade de guerreiros. Nesse sentido:

Clausewitz era mesmo em sua época a voz isolada de uma cultura guerreira que os ancestrais do Estado moderno estavam se esforçando para extirpar de seus territórios. Naturalmente, eles reconheciam seu valor para os objetivos do Estado, mas permitiam que ela sobrevivesse apenas dentro de um conjunto de bandos guerreiros artificialmente preservados; os regimentos eram completamente diferentes em ethos da sociedade civil na qual estavam estacionados (KEEGAN, 2006, p. 65).

Importante ressaltar a percepção de Gros (2009) ao traçar a evolução e os principais aspectos da estruturação ética do soldado. Esta se inicia na ética cavalheiresca, em que se busca a afirmação de si através de uma ética da responsabilidade, do reconhecimento do outro, da rivalidade e da excelência em servir. Segue-se então das batalhas individuais para uma ética voltada à batalha de fileiras em que se exalta a coragem como capacidade de suportar as adversidades formando uma moral de cidadão-soldado capaz de dominar e vencer a si próprio e ainda cuidar do outro. Depois, surge a ética como obediência incondicional e mecânica, surgida a partir da disciplina, a qual é resultado de um processo de racionalização da sociedade e da guerra. Por fim, há a ética da guerra moderna aplicada como guerra total,

voltada não apenas à vitória, mas à destruição do inimigo como conclusões cientificamente demonstradas ou como fatalidades matemáticas, demonstrando que a brutalidade de ofensiva ao extremo, o ódio do inimigo absoluto e o dogmatismo cego funcionam como elementos éticos determinantes para esse ethos.

Dessa forma, com o desenvolvimento das forças de segurança pública, verificou-se uma dupla persistência do ethos guerreiro no âmbito das polícias militares, tanto pela natureza militar da instituição quanto pela natureza de força de segurança pública. Em ambos os casos, há a incidência de uma atmosfera em que se verifica um comportamento voltado para a valorização de uma cultura guerreira, a qual exerce fascínio nos policiais militares, uma vez que o cotidiano dos mesmos envolve um ambiente de perigo, aventura, coragem e heroísmo (MUNIZ, 2000). Percebe-se ainda que essa visão contribuiu para a mistificação de que a atividade policial deve ser centrada na guerra ao crime. Logo, a formação do policial militar é orientada fundamentalmente para o controle do crime, com forte apelo ao “combate ao crime” ou mais perigoso ainda ao “combate ao criminoso”, sendo o ethos guerreiro paulatinamente sedimentado na identidade profissional do policial como um importante requisito para que ele possa realizar a árdua missão do “combate real” à criminalidade (PONCIONI, 2005).

Keegan (2006) também aponta para um distanciamento existente entre a população civil e as organizações militares. O autor acentua que os soldados não são como as outras pessoas, pois a guerra precisa ser travada por homens cujos valores e habilidades estão inseridos em um mundo à parte, muito antigo e que existe paralelamente ao universo do cotidiano, mas que não pertence a ele. Ambos os mundos se alteram ao longo do tempo, mas mantêm-se distintos, de tal forma que essa distância nunca pode ser eliminada, pois a cultura do guerreiro jamais pode ser a da própria civilização. Todas as civilizações devem suas origens ao guerreiro e as suas culturas nutrem os guerreiros que as defendem. Desse modo, a vida de guerreiro exerce enorme enlevação, especialmente sobre a imaginação masculina, uma vez que são historicamente os homens quem são enviados para as guerras para combater os inimigos e defender a sua terra e o seu povo. Por esse prisma:

Como sabem aqueles que reconhecem os soldados como membros de uma sociedade militar, essa sociedade tem uma cultura própria aparentada, mas diferente da cultura mais ampla a que pertence, funcionando com um sistema diferente de punições e recompensas – as punições, mais peremptórias, as recompensas, menos monetárias e, com frequência, puramente simbólicas ou emocionais –, mas profundamente satisfatório para seus participantes (KEEGAN, 2006, p. 242).

Nesse contexto, Silva (2011), ao analisar os rituais militares no âmbito da polícia militar, reconhece que a “caserna” é tipicamente o domínio da honra emotiva no qual se constroem e vivem guerreiros militares fabricados como peças de uma máquina ideal. O funcionamento desta máquina é expresso por Foucault (1999a), que relata como, na segunda metade do século XVIII, o soldado tornou-se algo que se fabrica. Nesse sentido:

De uma massa informe, de um corpo inapto, fez-se a máquina de que se precisa; corrigiram-se aos poucos as posturas; lentamente uma coação calculada percorre cada parte do corpo, se assenhoreia dele, dobra o conjunto, torna-o perpetuamente disponível, e se prolonga, em silêncio, no automatismo dos hábitos; em resumo, foi “expulso o camponês” e lhe foi dada a “fisionomia de soldado” (FOUCAULT, 1999a, p. 117).

Dessa maneira, Foucault (1999a) expõe como o corpo do soldado passou a ser construído de modo a permitir que se extraísse dele o máximo de utilidade e eficiência. Então, quando essa estrutura de organização militar se expande para além das Forças Armadas e se adere à segurança pública, os órgãos policiais militares acabam em conflito diante da existência de identidades múltiplas a serem absorvidas pelos seus integrantes. Por essa ótica, Silva (2011) aponta que há uma diversidade de identidades policiais militares, de maneira que se observam policiais atuando na rua com uma espécie de ética guerreira, em um cenário em que a formação, ao invés de resultar na profissionalização da segurança pública, funciona como ingrediente complementar na construção dos guerreiros.

Sendo assim, Albuquerque e Machado (2001), ao se referir a alguns métodos aplicados em um treinamento militar realizado com policiais militares, inferem que o objetivo não é a mera provocação do sofrimento no corpo do outro, mas principalmente fazer o aluno policial militar perceber que a identidade do guerreiro se situa antes da instituição democrática, de modo que eles devem introjetar que alguma violência pode compensar a sociedade em termos de segurança. Para os autores, a persistência desses modelos de treinamento militar demonstra a inquestionabilidade da imagem militarizada do policial e a necessidade de nutri-la. Nas palavras de Calazans (2004), o objetivo dessas práticas é levar os policiais em formação a perceberem que a identidade do policial guerreiro precede a legalidade.

Pode-se argumentar, pois, que é forjado um padrão de comportamento que legitima simbolicamente o trabalho policial à vista de todos e afirma a identidade do policial como um “soldado guerreiro”, encorajando ações agressivas para fazer face à missão que lhe foi designada (PONCIONI, 2005). Portanto, observa-se que o comportamento e a cultura

guerreira são uma constante no âmbito das instituições de segurança pública e especialmente nas polícias militares, sendo a cultura militar uma cultura guerreira por excelência.