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2 A IDENTIDADE POLICIAL MILITAR

2.3 A CULTURA ORGANIZACIONAL

2.3.2 A cultura masculina e as relações de gênero

Ao se constatar a existência de uma cultura guerreira nas polícias militares, observa- se, por conseguinte, que também persiste um ambiente de dominação masculina nessas instituições. Como já analisado, as atividades de segurança pública são derivadas de um cenário inicial de utilização do aparato de força do Estado no contexto da segurança externa, ou seja, nas relações internacionais, com notável destaque para a sua utilização em face das guerras. Como as guerras sempre foram consideradas atividades eminentemente masculinas, têm-se todo um histórico em que as mulheres sempre se mantiveram afastadas desse cenário. Nesse contexto:

A guerra é uma atividade humana da qual as mulheres, com exceções insignificantes, sempre e em todos os lugares ficaram excluídas. As mulheres procuram os homens para protegê-las do perigo e censuram-nos amargamente quando eles não conseguem defendê-las. As mulheres têm seguido os tambores, cuidado dos feridos, lavrado os campos e pastoreado os rebanhos quando o homem da família vai atrás de seu líder; elas até mesmo cavaram trincheiras para os homens defenderem e trabalharam nas oficinas para mandar- lhes armas. As mulheres, porém, não lutam. Elas raramente lutam entre si e jamais, em qualquer sentido militar, lutam com os homens. Se a guerra é tão antiga quanto a história e tão universal quanto a humanidade, devemos agora acrescentar a limitação mais importante: trata-se de uma atividade inteiramente masculina (KEEGAN, 2006, p. 92).

Desse modo, considerando que a atividade policial surge como um desdobramento das atividades de defesa do território, as mulheres acabam permanecendo afastadas, especialmente das atividades de cunho operacional, ou seja, do policiamento propriamente dito. Por essa ótica, Muniz (2000) revela que as atividades operacionais de policiamento (o chamado “mundo das ruas”) são idealizadas pelos policiais militares como um tipo de realidade que não se deixa comover pelas virtudes culturais atribuídas ao signo feminino. Por isso, esse território simbólico, que é interpretado como sórdido, violento e insensível, é considerado essencialmente masculino. Esse tipo de gramática dos papéis de gênero, em boa medida conservadora e estereotipada, sempre esteve disseminado no interior dos efetivos policiais (BITTNER, 2003), de modo que dela resulta o discurso que pressupõe a inadequação das mulheres para as tarefas de policiamento e prescreve para elas outros tipos de serviços quase sempre burocráticos e muito distantes das atividades de rua. Nesse sentido:

As inúmeras resistências corporativas ao acesso de mulheres nos meios de força, tanto da defesa nacional quanto da ordem pública, têm sido um problema recorrente em vários países de tradição democrática. Restringindo-me à problemática no interior das organizações policiais, é interessante notar que mesmo a polícia inglesa, matriz das modernas burocracias policiais, só possibilitou o ingresso de policiais femininas em seus quadros na década de oitenta, isto é, 150 anos após a sua criação por Robert Peel (MUNIZ, 2000, p. 241).

Ao abordar esta problemática, Nummer (2014) se utiliza da obra do sociólogo Pierre Bourdieu e dos seus conceitos referentes à “dominação masculina” vigente na sociedade, para ressaltar a abordagem do autor quanto à incorporação de esquemas inconscientes de percepção das estruturas históricas da ordem masculina. O objetivo da autora é localizar essa dominação no ambiente policial militar. Constatada a prevalência masculina, a autora busca uma explicação para as diferenciações existentes entre os gêneros no âmbito das polícias militares. Para Nummer (2014), a divisão sexual na instituição pode ser analisada a partir das categorias de “estabelecidos” e “outsiders”, propostas pelo sociólogo Norbert Elias no estudo sobre dois grupos sociais de uma pequena cidade britânica21. Por esse viés, no caso das polícias militares, a partir da divisão sexual entre os masculinos e as femininas, pode-se afirmar que os homens são os “estabelecidos”, reconhecem-se como veteranos, porque estão na Corporação há longa data, sendo os representantes da tradição do militarismo e das atividades de policiamento ostensivo. As mulheres, por sua vez, são tratadas por eles como “outsiders”, ou seja, algo semelhante a estrangeiras ou novatas, isto é, alguém que não pertence e que ainda está tentando achar o seu espaço naquele universo particular, sendo percebida com dificuldades naturais no desenvolvimento de algumas virtudes vistas como necessárias à condição policial, mais especificamente, à atividade de policiamento ostensivo, tais como imparcialidade, força física e imposição de respeito.

Desse modo, Nummer (2014) revela que a prevalência masculina na instituição demonstra um princípio da dominação sexual que pode ser percebido já no curso de formação policial militar, no qual se evidencia que existe uma relação entre o masculino ativo e o feminino passivo e as próprias mulheres policiais militares (chamadas informalmente de PFems ou fems na organização) incorporam, legitimam e naturalizam essa dominação. Tal estudo corrobora com o que Muniz (2000) e Silva (2011) já haviam proposto, isto é, que o

21 O estudo de Elias e Scotson (2000) foi realizado na década de 1950, em uma pequena cidade ao sul da

Inglaterra, de nome fictício Winston Parva. O objetivo foi compreender a lógica da configuração social e das relações de interdependência que se verificam na cidade. Eles constataram profundas diferenças entre dois grupos aparentemente semelhantes da cidade, uma vez que os habitantes do território mais antigo se consideravam superiores aos demais pelo fato de habitarem o local há mais tempo. Portanto, estabeleciam-se distinções entre um grupo de “estabelecidos” e outro de “outsiders”.

universo policial militar é, portanto, representado como um espaço social essencialmente masculino. Por essa perspectiva:

Os dispositivos disciplinares que pautam a relação interna do aparelho policial militar apontam um processo de formatação da subjetividade nos termos de um modelo hegemônico e de uma impossibilidade de ruptura com este modelo. O modo burocrático-disciplinar presente na organização do trabalho policial configura um espaço hegemônico, como uma tecnologia da produção social, basilar para a compreensão da constituição de mulheres e homens em policiais militares (CALAZANS, 2004, p. 145).

Sendo assim, a instituição militar é observada como um campo em que as mulheres ainda não foram inseridas completamente. Castro (2004) e Leirner (1997) revelam os diferentes aspectos da atmosfera organizacional do ambiente militar das Forças Armadas, enfatizando também os traços militares e masculinos daquela organização. Além disso, ao realizar uma revisão da literatura internacional, Calazans (2014) demonstra que essa falta de espaço da mulher no âmbito da segurança pública não é uma característica própria das polícias militares, mas da maior parte dos órgãos policiais ao redor do mundo. Ainda assim, é preciso reconhecer que a inclusão de mulheres no âmbito das polícias militares representa uma vitória feminina sem precedentes em uma organização masculina fechada há duzentos anos (LIMA, 2002).