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A “cultura da dominação” e o “triângulo sem base”

RECONCILIAÇÃO DO PERU: UMA ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO DA QUESTÃO INDÍGENA

3 A QUESTÃO INDÍGENA NO PERU

3.4 O INDIGENISMO DE ESTADO

3.5.1.1 A “cultura da dominação” e o “triângulo sem base”

Julio Cotler (1969a) analisa o gamonalismo como “cultura da dominação” à luz da teoria da dependência52.Tendo em vista a noção de colonialismo interno de autores mexicanos como González Casanova, os indígenas seriam subordinados em um sistema em que as

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A Sociologia foi instituída no Peru em 1956, com a fundação do Instituto de Sociologia na Universidade de San Marcos. Nos anos subsequentes, duas perspectivas teóricas e maneiras de conceber a Sociologia se contrastavam, segundo Julio Mejía Navarrete (2005). Como aponta, havia uma corrente que apostava nela como disciplina para formar profissionais que resolveriam problemas sociais e outra que entendia que seu objetivo central era a busca das transformações radicais da sociedade e a atenção teórica voltada para as classes exploradas, como apostava o sociólogo Aníbal Quijano. Teoricamente, a contraposição era entre o estrutural-funcionalismo e a teoria marxista (e a teoria da dependência e do desenvolvimento). François Bourricaud, seguidor de Talcott Parsons, se localizou no espectro do estrutural-funcionalismo, assim como a obra que iremos apresentar: Cambios en Puno. Degregori (2014a) localiza as produções de Quijano sobre o processo de cholificación no Peru – entre elas, sua tese de doutorado La emergencia del grupo cholo y sus implicancias en la sociedad peruana (1964) e Naturaleza, situación y tendencia de la sociedad peruana actual (1967) –, além das produções de Cotler (1969b), Mayer (1970) e Fuenzalida (1970) como produções calcadas na teoria da dependência. Para ele, tal perspectiva introduziu temáticas até então descuidadas no seu campo de estudos, a antropologia, como o conflito, dominação e poder.

52 Cotler argumenta que por mais que a análise do país a partir de uma visão dualista – costa como região “em

desenvolvimento, modernizante, ocidental, de cultura criolla” e a serra como região “subdesenvolvida, tradicional, indígena” – seja estereotipada, faria sentido para visualizar situações sociais altamente contrastadas. Entretanto, seria necessário analisá-las a partir do ponto de vista de sua interação, que é por relações de dependência, análogas à dos países periféricos com relação aos países centrais do capitalismo mundial e que se reproduziria em distintos níveis dentro do país (como da província com relação ao distrito). Nesse sentido, não é que seriam regiões “não integradas” entre si: “La sierra, in toto, no es que se encuentre al margen de la sociedad, sino marginada por un sector de ella” (COTLER, 1969a, p. 148).

figuras do poder local buscariam atrelar seu poder ao cenário político e administrativo público, principalmente regional. O poder do mestiço/misti se sustentaria porque, apesar de advir da posse e do controle da terra, a sua manutenção estaria também ligada aos importantes cargos de poder e prestígio que conseguia ocupar nas capitais de província, onde geralmente os grandes proprietários moravam. Seu poder se ampararia, além disso, nos representantes (allegados) que conseguiam inserir no âmbito nacional para que influenciassem nas decisões que lhe dizem respeito, e que utilizavam para os seus próprios interesses (privatização do poder). Portanto, no sistema gamonal, o mestiço era também o juiz, o governador, o deputado, o senador, o prefeito, o professor, a polícia, o comerciante etc., que dominam todas as esferas de autoridade.

Apesar das diferenças internas entre os próprios mestiços – que existiriam também entre os indígenas –, sempre haveria um elemento em comum: a dominação que o misti submete o índio, seja ele colono ou comunero. Dentro da “estrutura de castas”, para o autor, os mestiços seriam aqueles que controlariam a melhor e maior extensão de terra e gado, que teriam maior riqueza, maior acesso à educação oficial e alfabetização, são os que se dedicariam menos ou nada a atividades agropecuárias, que morariam em áreas urbanas e desempenhariam ocupações influentes no âmbito político. Já os índios não possuiriam terras ou seriam minifundiários, se dedicariam sempre a atividades agropecuárias, seriam monolíngues quéchuas ou aymaras e analfabetos, viveriam em zonas rurais e a sua capacidade de influência estaria reduzida a familiares ou pessoas próximas a ele.

Na região, afirma que o sistema de haciendas, caracterizado pelas formas feudais de relações sociais e de produção, preponderava. Apesar de os indígenas de maneira geral serem fonte e reserva de mão de obra nas haciendas, havia uma diferença crucial entre a forma pela qual colonos – que são chamados também de peões por outros autores – e comuneros eram inseridos e dominados nesse sistema pelo mestiço. Os primeiros eram aqueles que não possuíam terras e eram explorados pelo misti através do “colonato‖53 e que não possuíam

53 O “colonato‖ consistia em colocar a disposição do trabalhador uma parcela de terras e pastos, com a condição

de que ele cumprisse certas “obrigações”, tais como o trabalho gratuito nas terras da hacienda durante certo número de dias da semana, venda da produção exclusivamente ao patrão no preço desvantajoso que ele estabelece, pela prestação de serviços domésticos na casa do proprietário etc. É uma relação, portanto, profundamente assimétrica, complexificada por relações paternalistas. Para Cotler, o colono buscaria estabelecer laços de compadrio com o patrão e com outras figuras de autoridade em geral para que tivessem preferência ante seus pares, ao passo que o patrão se aproveitaria efetivamente desses laços de reciprocidade assimétricos para reafirmar a lealdade pessoal do colono e impedir que acontecessem “identificações de classe” entre eles. É um mecanismo para que a agressividade não fosse dirigida àquele que domina, mas aos igualmente dominados, tidos como competidores. Tal competição geraria mais bem situações de “inveja” e “desconfiança” mútua, que causariam fragmentação social e resultavam na sua incapacidade de organização e articulação. De maneira geral,

articulação entre si, sendo o controle do misti sobre o índio, um controle total. O autor expressa essas relações através do conceito de “triângulo sem base”:

Así, el sistema de relaciones tradicionales se caracteriza en definitiva por las relaciones interpersonales que se suceden dentro de un sistema cerrado, entre un ente dominante y varios que dependen de él, sin que exista entre estos últimos relaciones articuladas ni con agentes exteriores, sugiriendo la figura de múltiples radios inconexos que convergen en un sólo vértice, por el que se filtran y se reinterpretan las comunicaciones provenientes de las instituciones y de las figuras de influencia nacional, así como de la masa sojuzgada y desorganizada. (COTLER, 1969b, p.65)

Assim, todos os contatos políticos, econômicos e sociais do peão seriam mediados pelo hacendado, que ocuparia o lugar do vértice superior do triângulo no que tange as relações com eles. Faltariam as bases desse triângulo na medida em que não haveria vínculos de ligação entre seus colonos, desencorajadas pelo misti tanto no que diz respeito ao exterior da propriedade quanto internamente, entre eles. Esse controle é exercido em menor grau aos

comuneros.

As comunidades indígenas são outro tipo de organização social rural características da região apontadas por Cotler. Estariam também imersas na estrutura de controle e exploração do mestiço, ainda que em menor medida, pois mesmo que gozassem de maior liberdade, dependiam do misti em certas circunstâncias54. Em suma, estariam em posições que permitiriam a eles perpetuarem a condição de marginalização da população indígena e excluí- las de todas as esferas da vida institucional do país.

além do mais, o índio se comportaria de maneira servil e passiva frente à percepção fatalista da sua condição frente ao misti e a sua impotência para modificá-la: “Si para el mestizo ‗el indio es el animal que más se parece al hombre‘, el indio, por otra parte, interioriza su condición de subordinación” (COTLER, 1969a, p. 159).

54 Primeiramente, porque suas terras acabavam sendo insuficientes, tendo pouca produtividade e inclusive, como

vimos anteriormente, roubadas pelas haciendas adjacentes. Diante dessas situações, os comuneros acabavam, por exemplo, arrendando terras das haciendas para subarrendá-las a outros colonos, ou ainda buscando a integração total da comunidade ao sistema de hacienda, passando a ser uma “comunidade dependente ou cativa”. Entretanto, a relação de dominação se dava em torno da propriedade e do trabalho feudal não se davam em todas as ocasiões. Como o misti desempenhava funções de autoridade e tinha cargos na administração pública, os comuneros dependiam, por exemplo, do advogado para resolver problemas intracomunais, para solicitar o reconhecimento legal de suas terras ou quaisquer contatos que se quisesse estabelecer com as instituições oficiais, já que não eram alfabetizados: “La condición necesaria y suficiente del sistema de dominación descrito estaría en función de la posibilidad que tiene el mestizo de tener acceso al sistema de autoridad a través de su conocimiento del castellano, de su alfabetismo, que le permite elegir o ser elegido, o bien designar o ser designado para ocupar posiciones dentro del sistema de autoridad „nacional‟, o dentro de la administración pública, contando de esa manera con los recursos estatales para legitimar la línea de casta y de dominación sobre la masa indígena‖ (COTLER, 1969a, p. 162-163). Os indígenas em boa medida eram monolíngues quéchuas ou aymaras, e não tinham sido alfabetizados, isto é, não dominavam a linguagem escrita e oral do castelhano. Por isso, também não podiam votar e serem votados e, dessa forma, sua dependência e marginalização perante o misti estava fadada a ser institucionalizada nas urnas. Tudo isso ajudaria, para o autor, a definir o sistema gamonal, em que os mestiços controlam recursos econômicos, políticos, judiciais, repressivos e culturais.

A análise de Júlio Cotler nos parece um avanço para pensar a dominação e exploração como sistema integrado e não somente como algo externo, mas interno ao país. Utiliza o conceito de colonialismo interno, que autores mexicanos usam para pensar a exploração dos povos indígenas dentro dos países colonizados. Mariátegui foi precursor dessa ideia, mas claramente não apresentou nesses termos. O estudo de Cotler permite ainda visualizar uma estrutura que quase não permite a mobilidade social e econômica do sistema gamonal dos departamentos mais ao sul do Peru e a forma pela qual ele está inserido em um contexto não apenas local e regional, mas nacional, além de estabelecer o que seria uma “cultura da dominação”, sem espaço para articulação e reversão de sua condição entre os indígenas, mas como ela os afeta de maneiras distintas. É uma sociedade pautada na relação assimétrica entre mestiços/mistis e índios, baseada rigidamente em posições pré-definidas e nas quais os índios são sempre subordinados e de certa forma atados. Entretanto, nota-se na sociologia de Cotler que a variável racial fica quase invisibilizada na análise, e o mestiço e o indígena são assumidos principalmente como entes econômicos, de acordo com sua posição na estrutura produtiva. O indígena acaba sendo o camponês. Portanto, as designações para mestiço/misti e indígena/índio, para Cotler, parecem apontar uma situação estrutural na sociedade de castas, mais que racial. Isso é importante de ser levado em consideração, porque a época em que o autor desenvolve o texto antecede o governo militar de Juan Velasco Alvarado e a mudança oficial do termo “indígena” para “camponês”.

Um dos autores que parecem aprofundar essa perspectiva classista é o economista e antropólogo peruano Enrique Mayer (1970), para quem uma tipologia que diferencie os grupos dos índios e mestiços deveria dar mais relevância para as relações sociais e características estruturais do que aspectos culturais, já que estes “refletiriam” a estrutura. Assim, dialogando com a perspectiva do antropólogo austríaco Eric Wolf (1923-1999), para quem os índios constituem um campesinato, importando para análise os traços estruturais que os unem à sociedade nacional, Mayer criou uma tipologia que engloba o camponês, o mestiço como “intermediário” e o cholo, que denomina também de “índio ex-camponês”. Os “camponeses” estariam em uma posição inferior na relação com os “intermediários”. Mayer subdivide-os entre yanaconas, que é outra nomenclatura que é dada na literatura a peão ou

colono; membros das “comunidades corporadas cerradas” (comuneros) e os camponeses que

cultivam para fins comerciais. Os últimos são desconsiderados pelo autor como “camponeses indígenas”, por manterem relação com o mercado. Assim, são considerados indígenas apenas aqueles que sofrem mediação do mestiço para canalizar a sua produção excedente para o “setor nacional” e mediar todas as negociações entre eles: “Los intermediarios mestizos están

interesados en monopolizar su posición y por lo general lo hacen manteniendo aislado y en situación de dependencia al grupo campesino” (MAYER, 1970, p. 117).