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RECONCILIAÇÃO DO PERU: UMA ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO DA QUESTÃO INDÍGENA

3 A QUESTÃO INDÍGENA NO PERU

3.3 O PROBLEMA DO ÍNDIO EM MARIÁTEGU

Uma das proposições mariateguianas fundamentais para o pensamento social latino-americano é aquela em que o autor constatou que o problema primário do Peru de seu tempo era o problema do índio que, por sua vez, era o problema da terra. Dessa forma, como afirmou, se 90% dos índios peruanos eram agricultores (servos) e tinham a máxima exploração do seu trabalho nos latifúndios “Llamamos problema indígena a la explotación

feudal de los nativos en la gran propiedad agraria” (MARIÁTEGUI, 1986b, p. 21). Para

ele, a problemática deveria ser analisada desde a crítica marxista, ou seja, a partir de sua base real, de sua concretude histórica: o problema indígena é econômico-social e por isso, político. Tendo isso em vista, rechaçou as tendências positivistas de seu tempo que apresentavam “abstratamente” como problema cultural, administrativo, jurídico, pedagógico, religioso, técnico ou moral: “No nos contentamos con reivindicar el derecho del indio a la educación, a

la cultura, al progreso, al amor y al cielo. Comenzamos por reivindicar, categóricamente, su derecho a la tierra” (MARIÁTEGUI, 2007, p. 39).

O autor apresenta a relação do indígena com a terra como uma relação orgânica, cultural, que perpassa o caráter puramente econômico, dando à terra um sentido que vai além de sua materialidade:

En una raza de costumbre y de alma agrarias, como la raza indígena, este despojo ha constituido una causa de disolución material y moral. La tierra ha sido siempre toda la alegría del indio. El indio ha desposado la tierra. Siente que “la vida viene de la tierra” y vuelve a la tierra. Por ende, el indio puede ser indiferente a todo, menos a la posesión de la tierra que sus manos y su aliento labran y fecundan religiosamente. (MARIÁTEGUI, 2007, p. 36)

Além disso, postulava que a luta pela terra no Peru implicava o combate às manifestações do regime econômico feudal: o latifúndio, a servidão e o gamonalismo – um tipo de organização política local que engloba, além do gamonal (que por ora traduziremos como latifundiário, mas que veremos mais adiante que é um conceito muito mais complexo) e sua família, uma vasta estrutura de funcionários, agentes, advogados, e clero subordinados à autoridade regional do gamonal e que está constituída a partir da hegemonia da grande propriedade semifeudal. Retomaremos esse assunto adiante.

Mariátegui apresentou assim o problema indígena também como problema nacional: uma política realmente nacional não poderia ignorar o índio, pois seu empobrecimento e a sua depressão são também o empobrecimento e a depressão do país. O índio, “cimento da

nacionalidade em formação”, deve ser capaz de criar riquezas, ser um produtor e consumidor da qual a nação moderna necessita. Dessa forma, “[c]uando se habla de la peruanidad, habría

que empezar por investigar si esta peruanidad comprende al indio. Sin el indio no hay peruanidad posible” (MARIÁTEGUI, 1986a, p. 44).

A conclusão a que chegou é que nos países de maioria indígena (e por extensão negra) se deveria converter o “fator raça” em “fator revolucionário”, por constituírem uma camada com duplo caráter, de raça e classe. Para este autor, são os partidos comunistas latino-americanos que deveriam dar às massas indígenas e negras exploradas uma clara consciência de clase, “evidenciando su identidad con los proletarios mestizos y blancos,

como elementos de una misma clase productora y explotada” (MARIÁTEGUI, 1986b, p.

80), de modo a estabelecer na América Latina um governo de trabalhadores e camponeses. O que “levanta a alma do índio” é, pois, o mito, a ideia de revolução socialista: “La esperanza

indígena es absolutamente revolucionaria” (MARIÁTEGUI, 2007, p. 26).

Outro traço que dá caráter peculiar e original ao socialismo de Mariátegui é o fato dele encontrar na própria forma de vida das populações indígenas traços de socialismo, um fator “natural” de socialização da terra. Para ele, a comunidade (ou ayllu)43

representa a vitalidade do “coletivismo incaico primitivo” e do “socialismo indígena” e leva o índio a determinadas formas de associação e cooperação; de forma que, mesmo destruída a comunidade, o espírito comunitário permanece. Encontra nela uma das bases mais sólidas da sociedade “coletivista” preconizada pelo marxismo e é a possibilidade “de iniciar directamente una organización

económica colectiva, sin sufrir la larga evolución por la que han pasado otros pueblos ”

(MARIÁTEGUI, 1986b, p. 68).

43 Para Mariátegui, as comunidades (ou ayllus) são formas de organização social seculares, que foram

incorporadas ao Império Inca e subsistiram, com muitas transformações, ao Peru de sua época. Durante o período inca, segundo o autor, a população se dividia nessas comunidades por laços de parentesco, e trabalhavam coletivamente a terra que lhes era periodicamente repartida pelo Estado. Para Mariátegui, era um sistema “eficiente” e “orgânico”. Com a conquista espanhola, estas comunidades passam a não ser mais responsabilidade do governo, mas dos encomenderos, que recebiam a terra com a obrigação de instruir os indígenas. Na prática, contudo, os ayllus acabaram se convertendo nas grandes propriedades agrárias e os encomenderos, em latifundiários. Com a Independência, esse processo é acentuado, sobretudo na costa, até que muitas comunidades desaparecem e dão lugar a um processo de individualização da propriedade; na serra, em algumas regiões, as comunidades conservavam ainda parte de suas terras, mas em uma proporção ínfima para atender as necessidades dos seus integrantes, de modo que foram levados a trabalhar para os latifundiários. Diz Mariategui: “Los propietarios de los latifundios, dueños de enormes extensiones de tierras, en gran parte incultivadas, no han tenido en muchos casos interés en despojar a las „comunidades‟ de sus propiedades tradicionales, en razón de que la comunidad anexa a la hacienda le ha permitido a ésta contar con mano de obra segura y „propia‟. El valor de un latifundio no se calcula sólo por su extensión territorial, sino por su población indígena propia” (MARIÁTEGUI, 1986b, p. 35).

Como vimos, Mariátegui coloca o índigena no centro da problemática nacional, “indigenizando” as lutas de classes e anti-imperialistas e indicando a necessidade de expandir essa análise para países e regiões onde existissem populações colonizadas (GONZÁLEZ CASANOVA, 2007). Além disso, ele apresenta de forma contundente o problema indígena como problema da terra, o que vai influenciar de forma decisiva as gerações e os movimentos sociais posteriores. Para a pesquisadora francesa Marie-Chantal Barre (1985), o grande mérito de Mariátegui foi ter rompido com o “indigenismo romântico” de seu tempo ao apresentar a

questão indígena em termos econômicos e sociais, muito embora tenha deixado em segundo

plano o fator cultural para ressaltar o econômico. Para ela, o movimento indigenista “romântico” havia contribuído para a tomada de consciência do problema índio e a mitigação de alguns abusos cometido contra ele, entretanto, acabou por não se converter em corrente transformadora e se revelou facilmente recuperável por parte de vários governos latino-americanos, dentre eles o de Juan Velasco Alvarado, como veremos ainda neste capítulo. Como sugere Flores Galindo (1986a), o vínculo de Mariátegui com os indigenistas foi fundamental para fazer a mediação, a ponte entre o marxismo e o mundo andino, já que em um país com os contrastes do Peru era praticamente impossível um intelectual estabelecido em Lima chegar com seus próprios meios ao camponês. O autor também adverte que na verdade muito pouco se sabia empiricamente sobre as comunidades nos anos que Mariátegui produziu. Montoya Rojas (2011) destaca a fragilidade física do amauta, que sofria de vários problemas de saúde, como elemento que o impossibiliva de fazer viagens aos Andes; ao mesmo tempo em que sua casa em Lima esteve sempre repleta de intelectuais, de pessoas que chegavam da região andina com seus memoriais e denúncias contra abusos cometidos por gamonales e autoridades em geral.