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O “VERDADEIRO PERU” E A ESQUERDA PERUANA

RECONCILIAÇÃO DO PERU: UMA ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO DA QUESTÃO INDÍGENA

3 A QUESTÃO INDÍGENA NO PERU

3.2 O “VERDADEIRO PERU” E A ESQUERDA PERUANA

As proposições pradianas, tidas por grande parte da literatura como divisoras de águas sobre a questão indígena peruana, levariam tanto os setores mais conservadores a incluí-la na pauta38, como reverberariam no pensamento de setores da esquerda, que transformariam em ação os preceitos de González Prada, como veremos a seguir.

A década de 1920 é o período fundacional da esquerda peruana. O protagonismo do indígena e o projeto de construção da nação seriam as bases do socialismo de José Carlos Mariátegui (1894-1930), intelectual e um dos maiores e mais vigorosos marxistas latino-americanos do século XX, e do aprismo social-democrata de Victor Raúl Haya de la

38 Segundo Uriarte (1998), González Prada impulsionou a reação de hispanistas como Víctor Andrés Belaúnde

(1883-1966), José de la Riva Aguero (1885-1944) e Francisco García Calderón (1883-1944), que travaram debates ao longo das três primeiras décadas do século XX. Inspirados na obra Ariel (1900) do uruguaio José Enrique Rodó (1872-1917), e por isso chamados também de arielistas, esses intelectuais peruanos acreditavam, segundo a autora, que o Peru deveria “tomar consciência de si mesmo”, pois carecia de “alma nacional”, que deveria ser buscada na herança hispânica. Aspiravam a um futuro europeu para seu país, “civilizado”, “moderno”, calcado no ideal de progresso. O índio, segundo essa visão novecentista, apesar de ser “degenerado”, “cheio de vícios”, era passível de ser incorporado à vida nacional, e deveria sê-lo por meio do projeto dirigido por uma oligarquia branca ilustrada, descendente dos espanhóis. Deveria ser “integrado”, “assimilado”, “civilizado”, “redimido” através da religião (Andrés Belaúnde), da economia (Riva Aguero) ou por meio dos princípios do individualismo (García Calderón). Entretanto, apesar de posicionamentos discrepantes sobre o indígena, intelectuais representantes tanto de discursos hispanistas quanto indigenistas, segundo Uriarte, compartilhavam análises calcadas no dualismo cultural: interpretavam o Peru como um país dividido em duas culturas homogêneas e uniformes, a indígena e a ocidental, que estariam geográfica, racial e materialmente bem delimitadas pela Cordilheira dos Andes. Além disso, na concepção da antropológa Marisol de la Cadena (1999), a ideia de redenção do índio – concepção de que deveria melhorar em algum aspecto para ser incluído na nação – era de certa forma generalizada entre a intelectualidade peruana da época, inclusive entre progressistas como Mariátegui. O desacordo, segundo ela, estaria na maneira pela qual se recorreria para “melhorar” as “raças inferiores” e incidir sobre “taxonomias raciais”.

Torre (1895-1979), que criou a Aliança Popular Revolucionária Americana (Apra) e liderou o partido aprista até 1979, sendo esse um dos partidos mais influentes da história peruana39.

Trujillano de família abastada, Haya de la Torre foi exilado em 1923, durante a ditadura de Augusto B. Leguía (1919-1930)40, em decorrência de sua intensa participação nos movimentos estudantis e operários da época. Já no México, em 7 de maio de 1924, fundou a (Apra), cuja identidade como projeto político latino-americanista seria a luta anti-imperialista. O programa era bastante amplo: visava, dentre outras coisas, a ação contra o imperialismo estadunindense, a unidade política latino-americana, nacionalizações de terras e indústrias, além de “[…] uma revolução de base indígena que […] poderia se estender até a Colômbia pelo norte e até as proximidades de Jujuy (Argentina) pelo sul, através de regiões unificadas por um problema agrário e racial comum” (RÉNIQUE, 2009, p. 56). Haya de la Torre recusou a organização partidária do modelo do Partido Comunista internacional e optou pelo multiclassismo nacionalista do Kuomitang chinês.

José Carlos Mariátegui, por sua vez, é criador da aclamada Revista Amauta41 em 1926,

fundador do Partido Comunista do Peru (PCP) – concebido originalmente por ele como Partido Socialista do Peru no dia 7 de outubro de 1928 – e da Confederação Geral de Trabalhadores do Peru (CGTP) no ano subsequente. Mariátegui desenvolveu uma obra profundamente marcada pela busca de um socialismo localmente situado, um socialismo “sin

calco ni copia” e que traduzisse os preceitos do marxismo à realidade peruana. Essa é uma

formulação brilhantemente defendida em um dos livros mais importantes do pensamento social latino-americano, Sete ensaios de interpretação da realidade latino-americana, escrito em 1929. A leitura mais heterodoxa que Mariátegui fez do marxismo contrariou os representantes da Terceira Internacional na ocasião da Primeira Conferência Comunista Latino-americana, realizada em Buenos Aires em 1929. Neste evento, foram apresentadas e discutidas as suas teses El problema de las razas en América Latina e Punto de vista

antiimperialista pelo médico, político e filósofo Hugo Pesce – que é cofundador do Partido

Socialista. Entre as teses polêmicas de Mariátegui, uma das que mais desagradaram a Komintern foi a ênfase mariateguiana na questão indígena e na incorporação do índio à

39 Em 1931, o Apra desapareceu como organização supranacional, dando lugar ao partido político nacional Partido Aprista Peruano (PAP), conhecido popularmente como Apra. O partido recém-criado, entretanto, foi proscrito durante o governo militar de Oscar Benavides (1933-1939), junto com o Partido Comunista, saindo da clandestinidade apenas em 1945.

40Augusto B. Leguía governou o Peru por duas vezes, a primeira entre 1908 e 1912 e a segunda entre 1919 e 1930 – se apresentando, no início, como alternativa ao civilismo e à oligarquia, autointitulando seu governo de “Pátria Nova”, mas que no entanto foi progressivamente ganhando contornos autoritários.

revolução peruana que ele denominou como “revolução indossocialista”. Para Rénique (2009, p. 64), “O impasse era evidente: para os teóricos internacionalistas, as especificidades nacionais eram irrelevantes”.

Muito embora Mariátegui e Haya de la Torre tenham participado juntos na formação e militância política à época, compartilhando muitas ideias e o “esquema histórico pradiano”, eles foram cada vez mais encontrando divergências em seus posicionamentos e concepções. Flores Galindo (1986a) traçou outras diferenças entre os dois e seus projetos esquerdistas. No aprismo, afirma, o andino se converte no messiânico, na aposta no “messias” que chega para salvar o país. Mariátegui recusava a denominação de chefe ou líder: apostava no marxismo como mito de seu tempo, na revolução como ato coletivo; como criação e paixão coletivas, os trabalhadores e indígenas deveriam ser seus verdadeiros protagonistas; a revolução deveria nascer no interior do país e se amparar no coletivismo andino. Além disso, enquanto no aprismo se apostava na modernização do país através do impulsionamento do capitalismo, Mariategui buscava um ponto de encontro entre socialismo e a comunidade indígena.

Os argumentos de um dos textos mais importantes da carreira de Haya de la Torre, El

anti-imperialismo y el Apra, publicado no início da década de 1920, seriam debatidos

posteriormente por Mariátegui em Ponto de vista anti-imperialista, publicado originalmente em 1929, em que o autor critica principalmente o anti-imperialismo aprista enquanto programa em si mesmo:

Para nós, o anti-imperialismo não constitui nem pode constituir, sozinho, um programa político, um movimento de massas apto para a conquista do poder. O anti-imperialismo, admitindo que ele pudesse mobilizar a burguesia e a pequena burguesia nacionalistas, ao lado das massas operárias e camponesas (já negamos terminantemente essa possibilidade), não anula o antagonismo entre as classes, nem suprime sua diferença de interesses. (MARIÁTEGUI, 2012, p. 117)

Mariátegui refutaria ainda o programa aprista pautado em uma aliança com a burguesia nacional. Como acreditava, eram submissas aos setores imperialistas por estes serem suas fontes de lucros, não se preocupavam com soberania nacional além de que, da mesma forma que a aristocracia, desprezavam os setores populares. E reafirma o teor de seu projeto: “[…] somos anti-imperialistas porque somos marxistas, porque somos revolucionários, porque contrapomos ao capitalismo o socialismo como sistema antagônico, chamado a sucedê-lo […]” (MARIÁTEGUI, 2012, p. 120).

Com o golpe de Estado do comandante Luis Miguel Sánchez Cerro (1889-1933), em 1930, o aprismo optou por disputar o poder político para fazer frente ao cenário de seguidas ditaduras e insurreições no país. Tornou-se partido e acabou moderando o discurso radical e

pró-indígena, segundo Rénique (2009, p.66): “[…] a „revolução nacionalista indígena‟ ficava de lado diante de objetivos como „cumprir a etapa democrática, organizar construtivamente o Estado, educar, melhorar, capacitar e defender as classes produtoras‟”. O trabalho do partido seria mais desenvolvido em termos de luta urbana e proletária. Muito embora sua influência política ao longo do século, o Apra (como PAP) somente conquistaria uma eleição a nível nacional em 1985, quando Alan García é eleito no período de maior violência do conflito armado no Peru.

O partido criado por Mariátegui, por sua vez, assumiria uma posição de sujeição ao movimento comunista internacional após a sua morte, em 1930, e, em consequência, o projeto mariateguiano de socialismo indo-americano seria abandonado e teria passado por um processo de stanilização (LÖWY, 2012)42. O amauta seria recuperado no Peru somente após a metade da década de 1960, momento em que inclusive ganha mais prestígio do que em vida. E seria reivindicado como o mentor político e intelectual pela organização política que estremeceu o Peru especialmente na década de 1980 e 1990, o Sendero Luminoso.

Assim, a década de 1930 marca o início de um novo período político no Peru e de certa maneira o deslocamento do foco do “problema do índio” para o “problema de classe”, em que o indígena começa desaparecer como protagonista da oposição. É o momento, segundo Marisol de la Cadena (1999), que intelectuais radicais se distanciam do discurso indigenista, aceitam sua identidade de mestiços transformados pela consciência de classe ou pelo conhecimento intelectual e acreditam que devem assumir a hieraquia mais elevada dentro de suas organizações. Segundo indica, entre 1930 e 1950, essa dirigência opositora passa a focar suas atividades políticas na cidade, com acontecimentos como o fechamento da San Marcos em 1930, a greve operária em Morococha, La Oroya e Cerro de Pasco e em Talara em 1931.

42Para Michael Löwy (2012), essa teria sido uma guinada no pensamento marxista laatino-americano de uma maneira mais geral. Esqueticamente, o autor denomina o período que compreende meados dos anos de 1930 até 1959, data da Revolução Cubana, de stalinista, quando a interpretação soviética do marxismo e a aposta na revolução feita por etapas (recuperada de Stalin) teria sido hegemônica na América Latina. O processo de stalinização dos partidos comunistas, que havia se desenvolvido de forma desigual e contraditória a partir do final dos anos 1920, estava completo em 1936. Explica o autor: “Com stalinismo queremos designar a criação, em cada partido, de um aparelho dirigente – hierárquico, burocrático e autoritário – intimamente ligado, do ponto de vista orgânico, político e ideológico, à liderança soviética e que seguia fielmente todas as mudanças de sua orientação internacional. O resultado desse processo foi a adoção da doutrina da revolução por etapas e do bloco de quatro classes (o proletariado, o campesinato, a pequena burguesia e a burguesia nacional) como fundamento da sua prática política, cujo objetivo era a concretização da etapa nacional-democrática (ou anti-imperialista ou antifeudal). Essa foi uma doutrina elaborada por Stalin e aplicada na China, e, mais tarde, generalizada em todos os chamados países coloniais ou semi-coloniais (inclusive, é claro, a América Latina). Seu ponto de partida metodológico é uma interpretação economicista do marxismo […]: em um país semifeudal e economicamente atrasado, as condições não estão „amadurecidas‟ para uma revolução socialista” (LÖWY, 2012, p. 27).