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RECONCILIAÇÃO DO PERU: UMA ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO DA QUESTÃO INDÍGENA

5 O RELATÓRIO FINAL DA COMISSÃO DA VERDADE E RECONCILIAÇÃO DO PERU: UMA ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO DA QUESTÃO INDÍGENA

5.3 O RELATORIO FINAL

O documento conclusivo resultante do intenso trabalho da Comissão da Verdade e Reconciliação, o Relatório Final, se tornou público em 28 de agosto de 2003, durante o mandato de Alejandro Toledo (2001-2006). O Relatório está estruturado em nove volumes [tomos], divididos em quatro partes, e uma seção adicional composta por seis anexos. A primeira parte, O processo, os fatos, as vítimas engloba um prefácio e uma introdução, além de quatro seções: a) Exposição geral do processo (Vol. 1); b) Os atores do conflito (Vol. 2 e 3), que faz uma distinção entre os atores armados (PCP-SL e MRTA), as Forças Armadas e Policiais e Comitês de Autodefesa147; os atores políticos e institucionais (partidos políticos do Poder Executivo, partidos de esquerda, os Poderes Legislativo e Judiciario) e as organizações sociais; c) Os cenários da violência (Vol. 4 e 5), que são resultado do trabalho do setor que utilizou a metodologia das histórias regionais (Vol. 4) e dos estudos em profundidade (Vol. 5); d) Os crimes e as violações de direitos humanos (Vol. 6 e 7), que engloba a descrição dos padrões na perpetração dos crimes e das violações de direitos humanos (Vol. 6) e os 73 casos reconstruídos e analisados com enfoque jurídico-penal, dos quais 54 foram entregues ao Ministério Público (Cap. 7). A segunda parte, Os fatores que tornaram a violência possível, com a proposta de explicar a violência e seus impactos “diferenciados” pelas desigualdades de gênero, raciais e étnicas e a terceira, As sequelas da violência, compreendem o volume 8 e a última, Recomendações da CVR: rumo [hacia] à reconciliação, que engloba o Programa Nacional de Reparações (PIR), o volume 9.

Todo o material produzido pela Comissão nos seus quase dois anos de trabalhos intensos encontra-se aberto à consulta pública em arquivo disponível no Centro de Informação para a Memória Coletiva e os Direitos Humanos (CIMCDH-DP), que começou a

funcionar em abril de 2004, sob a jurisdição da Defensoría del Pueblo148. Parte do material também já está disponível no arquivo do Lugar da Memória, da Tolerância e da Inclusão Social (LUM). Para Aguirre (2009), essa “consciência arquivística” é um grande mérito da Comissão desde a sua criação, cujo trabalho foi sistematicamente registrado e organizado a cada ação e documento que se produzia. É um acervo documental rico não só para pesquisas acadêmicas, mas para ampla consulta do conjunto da sociedade peruana e estrangeira, além de uma fonte de documentos produzidos e que acabaram não entrando no processo de escrita do Relatório Final.

5.3.1 Alguns apontamentos gerais da CVR

De acordo com a CVR, o que ela denomina como “conflito armado interno” (CAI) começou em 17 de maio de 1980 na zona andina de Ayacucho, tendo como causa imediata e fundamental a “guerra popular” desencadeada pelo PCP-SL contra o Estado peruano. Nesse dia, também marcado pelas eleições que poriam fim ao período de ditadura militar no país, ocorreu a primeira ação de propaganda da guerrilha justamente com a queima simbólica de urnas eleitorais no povoado ayacuchano de Chuschi (província de Cangallo). A Comissão indica que o conflito envolveu também o Movimento Revolucionário Túpac Amaru149 e o Estado peruano, através da atuação dos seus agentes (Forças Armadas e Policiais), dos grupos paramilitares e dos Comitês de Autodefesa150.

148 Como indica Carlos Aguirre: “Según el acta de transferencia de los materiales de la CVR a la Defensoría del

Pueblo se entregaron 567 cajas de documentos y otros materiales, cuyo detalle se puede consultar en el inventario que posee el Centro de Información. De acuerdo con este inventario, el Centro de Información contiene 16.917 testimonios, 13.696 cassettes de audio, 1.109 videos, 104 CDs y 13.139 fotografías, además de vários otros tipos de documentos” (AGUIRRE, 2009, p. 145).

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Em 1984, o Movimento Revolucionário Túpac Amaru (MRTA) também iniciou a luta armada contra o Estado peruano e foi, segundo a CVR, responsável por 1,5% das vítimas do conflito. A organização havia sido criada em 1982 a partir da união de dois pequenos grupos de esquerda, o Movimento da Esquerda Revolucionária – O Militante (MIR-EM) e o Partido Socialista Revolucionário – Marxista Leninista (PSR-ML) e se diferenciava explicitamente do SL, por exemplo, na medida em que reivindicava suas ações, seus membros usavam signos distintivos que os distinguissem da população civil e que eram mais cautelosos quanto ao uso de violência contra ela (CVR, 2003, Conclusões gerais). Sobre o MRTA, vide: CVR, 2003, Vol. 2, Cap. 1.4.

150 A CVR aponta que os grupos paramilitares são parte do aparato estatal, e no caso dos Comitês de Autodefesa,

defende que é necessária uma avaliação caso a caso no que tange à relação com as autoridades estatais. Também nomeados no contexto do conflito armado interno como Comitês de Defesa Civil, Rondas Contrassubversivas ou Rondas Camponesas, os CADs se formaram na década de 1980, na serra central peruana, para fazer resistência ao PCP-SL. Segundo a CVR, de maneira geral, no início da sua formação e atuação, eles desenvolveram ações armadas isoladas, mais locais, não coordenadas e defensivas com relação ao SL. Paulatinamente, vão ganhando maior protagonismo em algumas zonas ayacuchanas e desenvolvendo estratégias ofensivas. Pelo fato de muitas vezes serem coordenadas ou impostas pelas chamadas forças da ordem, a Comissão indica que geralmente os

A cifra estimada de vítimas fatais do conflito é de 69.280 mil e a proporção estimada de acordo com o perpetrador seria de 46% para o SL, 30% para os agentes do Estado e 24% “provocadas por otros agentes o circunstancias (rondas campesinas, comités de autodefensa,

MRTA, grupos paramilitares, agentes no identificados o víctimas ocurridas en enfrentamientos o situaciones de combate armado)” (CVR, 2003, Anexo 2, p. 1). Tendo

como base números reais, calculados a partir dos depoimentos, foram identificadas 23.969 mil pessoas mortas ou desaparecidas – sendo que deste total 18.397 mil puderam ser identificados com seus nomes completos (CVR, 2003, Anexo 2). Nesse caso, o PCP-SL também seria o primeiro perpetrador das mortes e desaparições relatadas à Comissão (53,68%), enquanto que os agentes do Estado, Comitês de Autodefesa e paramilitares seriam responsáveis por 37,26% dos mortos e desaparecidos relatados, a maior parte (28,73%) de responsabilidade específica das Forças Armadas. O MRTA foi indicado como responsável por 1,5% das mortes e desaparições relatadas (CVR, 2003, Vol.1, Cap. 1)151.

A CVR imputa ao PCP-SL e ao MRTA a categoria de organizações terroristas, atribuindo à primeira as qualificações de “fundamentalista”, “totalitária” e “fanática”. Indica, ainda, que tanto os crimes perpetrados pelos movimentos guerrilheiros quanto as violações de direitos humanos cometidas pelas “forças de segurança do Estado” não foram simples excessos, mas configuraram cursos de ação deliberados e sistemáticos152. Reiteradas vezes a Comissão assume o caso peruano como especial no contexto latino-americano por contar com muitos crimes cometidos por agentes não estatais e, principalmente, pelo fato de apontar o SL como o grande perpetrador do conflito. Com relação ao Estado, a Comissão argumenta que a

ronderos acabaram sendo usados como “carne de canhão” nos enfrentamentos entre PCP-SL e agentes estatais. No decorrer do conflito, as comunidades passam a ter uma vida cada vez mais militarizada, incitada ou tolerada por essas forças estatais e alguns ronderos adquirem comportamentos agressivos e também violadores de direitos humanos. De qualquer forma, a atuação dos CADs é apontada pela Comissão como um dos principais motivos para a derrota do SL na serra sul central peruana. Foram reconhecidas legalmente pelo Estado somente em 1991, quando o SL já se encontrava taticamente vencido nessas localidades por elas. São, por fim, atores bastante controversos e polêmicos do conflito: “En ningún otro actor de la guerra, la línea divisora entre perpetrador y víctima, entre héroe y villano es tan delgada y tan porosa como en los Comités de Autodefensa (CAD) o rondas campesinas contrasubversivas.Su actitud durante la guerra, su subordinación a las Fuerzas Armadas (FFAA), la terquedad con la cual se niegan a entregar las armas y su innegable contribución a la derrota militar del Partido Comunista del Perú El PCP-SL Luminoso (PCP-SL) y, por lo tanto, al restablecimiento de la paz han causado opiniones contrapuestas” (CVR, 2003, Vol.2, Cap 1.5, p. 437). Sobre esse tema, vide: DEGREGORI et al, 1996; STARN, 1993; DEL PINO, 2017.

151 É preciso notar aqui que os cálculos estimados de vítimas fatais por perpetrador não incluem os paramilitares

e os CADs como agentes do Estado, enquanto que nos cálculos pautados na base de dados dos depoimentos a conta é feita com e sem esses atores. É necessário considerar ainda que, se por um lado as cifras estimadas de pessoas mortas na guerra foram as mais amplamente publicizadas, quando se trata dos números referentes a mortes por perpetradores, as cifras mais divulgadas são aquelas baseadas nos depoimentos, em que a diferença entre mortes atribuídas ao SL e aos agentes do Estado é maior.

resposta brutal dada pelas Forças Armadas à “subversão” não tinha precedentes nas décadas anteriores, nos anos de regime militar de Juan Velasco Alvarado (1968-1975) e de Francisco Morales Bermúdez (1975-1980)153.

A CVR entende o conflito como parte de um processo em que as ações de violência não afetaram com a mesma magnitude as diferentes localidades e os diversos setores do país ao longo dos anos: elas se deram mediante aumentos progressivos de intensidade e de extensão geográfica, e afetaram particularmente os camponeses indígenas das zonas rurais dos departamentos mais pobres da serra sul central do país. Dessa forma, um dado relevante apresentado é a concentração dos mortos e desaparecidos relatados em apenas seis dos 24 departamentos (mais a Província Constitucional de Callao) do país: San Martín, Junín, Huánuco, Huancavelica, Apurímac e Ayacucho, que somam cerca de 85% dos casos. Somente em Ayacucho há registradas mais de 40% das mortes e desaparições reportadas. E mesmo nestes departamentos mais afetados, os mortos e desaparecidos reportados se encontram em sua maioria nas zonas rurais. Concluiu-se ainda que há uma evidente relação entre exclusão social, pobreza e a intensidade da violência, considerando que os últimos quatro departamentos mencionados constavam na lista dos cinco mais pobres do país à época (CVR, 2003,Vol. 8, Capítulo 2.2).

Para a Comissão, os “camponeses indígenas” são os símbolos por excelência das vítimas que esta guerra produziu. Por um lado, indica que 79% das vítimas viviam nas zonas rurais e 56% ocupavam atividades agropecuárias – em contraposição aos dados nacionais que

153 É preciso lembrar que, embora a ditadura velasquista tenha assumido um viés muito menos repressor e sangrento quando comparada às ditaduras do Cone Sul da época, uma das ações mais violentas ocorridas durante o governo de Velasco foi justamente no distrito de Huanta (província de Huanta, departamento de Ayacucho), em 1969. Na ocasião, ocorreu uma matança indiscriminada de manifestantes – os sinchis entraram disparando cegamente na multidão – que se mobilizavam contra o Decreto Supremo que instituía a limitação da gratuidade do ensino no país para aqueles estudantes que reprovassem em alguma matéria durante o ano letivo. Ao menos 50 pessoas morreram no episódio, que ficou gravado na memória coletiva de huantinos e ayacuchanos desde então. Sobre este evento, vide: DEGREGORI, 2014b; VICH, 2015, particularmente os capítulos 1 e 2, onde o autor analisa o evento da matança em Huanta através da música Flor de retama, eternizada na voz de Martina Portocarrero, e do retábulo também chamado Flor de retama, criado pelo artista e antropólogo Edilberto Jiménez. Queremos chamar atenção para o histórico de violência do Estado direcionada a alguns grupos sociais e a determinadas regiões que, no entanto, nunca deixou de ser confrontado e questionado por eles. É preciso lembrar ainda que ao longo de seu período republicano o Peru teve poucos anos de democracia constitucional. Na análise da CVR, há a sensação de que o país do final dos anos de 1970 finamente se encaminhava para a paz e para a democracia, mas que com o surgimento do PCP-SL o Estado respondeu com violência descomunal, aparentemente considerada pela Comissão como algo incomum. Por último, é necessário reiterar que o governo de Francisco Morales Bermúdez assume um viés mais autoritário do que o seu antecessor, Velasco Alvarado. Bermúdez foi condenado recentemente pela Justiça italiana pelo seu envolvimento na Operação Condor, mais especificamente na morte de ítalo-peruanos. A condenação foi noticiada nos principais meios de notícias

peruanos, tais como: <http://rpp.pe/mundo/latinoamerica/que-fue-la-operacion-condor-noticia-733384>;

<https://elcomercio.pe/politica/congreso/plan-condor-condenaron-morales-bermudez-claves-159592>;

<http://larepublica.pe/politica/840492-morales-bermudez-recibe-condena-de-cadena-perpetua-por-plan-condor>. Acesso em: 27 nov. 2017.

mostravam, de acordo com a População Economicamente Ativa (PEA) nacional, que apenas 29% da população peruana da época vivia em zonas rurais e 28% estava ocupada no setor agropecuário (CVR, 2003, Conclusões gerais). Por outro lado, aponta que 75% delas tinham o quéchua ou outras línguas nativas como idioma materno, enquanto que de acordo com o censo de 1993154 apenas um quinto dos peruanos possuía essa característica (CVR, 2003, Vol. 8, Capítulo 2.2). Vale apontar que Ayacucho é o departamento com maior número de vítimas quéchua-falantes do país: 97%, além de concentrar o maior número de vítimas por lugar de nascimento, 53% (CVR, 2003, Vol 8. Cap. 2.2). O mapa a seguir, elaborado pela CVR, mostra a dispersão territorial, dividida em províncias, dos mortos e desaparecidos quéchua-falantes reportados:

Figura 1 - Mapa Peru 1980-2000. Quantidade de mortos e desaparecidos de idioma materno quéchua reportados à CVR segundo província.

Fonte: CVR; Vol. 8, Cap. 2.2, p.138.

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Segundo dados do Censo Nacional de 2007 (INEI, 2007), a população total peruana em 1993 era de 22.639.443 pessoas.

A CVR cita como emblemático o uso de violência e crueldade do SL para com as comunidades quéchuas ayacuchanas, principalmente durante os primeiros anos do conflito, e nos anos posteriores para com as comunidades asháninkas da selva central do país. Em ambos os casos indica que os senderistas deflagraram ou se aproveitaram de situações de desavenças pré-existentes para desatarem ou atiçarem conflitos locais – como, por exemplo, o enfrentamento entre “nativos” e entre migrantes de origem andina (chamados “colonos”) nas comunidades da selva central.

O conflito foi periodizado pela Comissão (CVR, 2003, Vol.1, Cap 1) em cinco etapas, que duraram 20 anos no total. A primeira teve início com a entrada do PCP-SL para a luta armada, em maio de 1980, e perdurou até o final de 1982. Esteve basicamente restrito ao departamento de Ayacucho. Esse é o momento em que a guerrilha tem ampla liberdade de ação e conta com o apoio das comunidades locais, principalmente nas províncias do norte de Ayacucho – embora a Comissão use outras palavras como “aceitação” e “neutralidade” de setores significativos da população, como os “camponeses” (CVR, 2003, Vol.8, Cap 1, p. 29). A CVR indica que atuação senderista nesse momento se dá em conjuntura de desgaste das Forças Armadas Peruanas, depois de 12 anos de governo militar, e de relutância do governo civil de Fernando Belaúnde (1980-1985) em reconhecê-lo como movimento insurgente. De acordo com a CVR, nos primeiros dois anos e meio do início de sua luta armada, o Sendero Luminoso contou com conjuntura bastante favorável para o desenvolvimento de sua estratégia guerrilheira. Como sugere, o então governo recém-eleito de Fernando Belaúnde Terry teria incorrido num “erro de diagnóstico”: 1º) ao subestimar a força do PCP-SL e tratá-lo como problema de delinquência comum, passível de ser resolvido meramente com força policial; 2º) ao não ter clareza sobre a organização em questão, vinculando-a a países socialistas no contexto da Guerra Fria, tratando-a como uma típica guerrilha latino-americana daquele momento, ou, ainda, como uma guerrilha análoga àquelas que haviam atuado em 1965 no próprio Peru – MIR e o ELN (COMISIÓN DE ENTREGA DE LA CVR, 2008).

Como indica a CVR, já com a atuação dos sinchis (unidade contrainsurgente da antiga Guarda Civil que havia passado a atuar em Ayacucho em outubro de 1981, quando de sua declaração como zona de emergência) se tentava justificar violações de direitos humanos pelos agentes estatais sob alegação de que os ataques poderiam vir de qualquer lado – tendo em vista ainda que os senderistas não recorriam a quaisquer distintivos que os diferenciassem enquanto movimento armado. Nesse caso, como durante os anos subsequentes, a população local seria o alvo mais visado, como veremos em seguida. Em 30 de dezembro de 1982, mediante cenário insustentável de guerra e crescimento preocupante das ações senderistas na

região sul central andina depois de dois anos de luta armada, foi entregue o controle da zona de emergência em questão às Forças Armadas e aos comandos político-militares, sobre as quais, segundo a CVR, o governo civil não exerceu controle significativo. O racismo, o autoritarismo, a natureza da democracia e a debilidade das instituições se tornariam ainda mais visíveis nesse momento.

Assim, a segunda etapa indicada, que vai de janeiro de 1983 a junho de 1986, corresponde ao período de militarização do conflito, cujo ponto de inflexão é a entrada das Forças Armadas Peruanas nas zonas de emergência, em 1983, e o aumento vertiginoso do número de mortos e dos casos de crimes e violações aos direitos humanos por parte dos movimentos guerrilheiros e dos agentes do Estado. Durante esse período há o desencadeamento da chamada “guerra suja” e da expansão das ações senderistas para departamentos vizinhos, enquanto que na região de Ayacucho a organização já sofria golpes significativos. De acordo com os autores Hertoghe e Labrousse (1990), depois dessas investidas militares contra a guerrilha a situação se agrava muito no Peru; a dimensão desse derramamento de sangue pode ser acompanhada pela “estratégia de terror” usada pelo governo para combater os guerrilheiros, em 1983:

Dois mil soldados e seis helicópteros chegam à nova “zona de estado de emergência”, que compreende sete e, logo depois, treze províncias dos estados de Ayacucho, Huancavelica e Apurimac […] Por seu lado, o Ministro da Guerra [Luis Cisneros Vizquerrera] revela sua “estratégia de sessenta por três”: “Porque eles têm as mesmas características dos habitantes da serra, será preciso matar sessenta pessoas para eliminar três senderistas e dizer evidentemente que eram sessenta senderistas”. (HERTOGHE; LABROUSSE, 1990, p. 95)

Para a CVR, a população dessas comunidades, no final das contas, acabou ficando num fogo cruzado sangrento e sem precedentes entre os senderistas e os agentes do Estado: os senderistas matavam todos que supunham pertencer às forças estatais e o governo matava, também indiscriminadamente, quem desconfiava ser guerrilheiro. Alguns dos resultados mais tenebrosos da guerra entre SL e dos agentes estatais nesse período são os casos de violações massivas (conhecidos pelos próprios nomes das comunidades), em que se investia contra comunidades inteiras na base de terror, destruindo-as e matando seus moradores. Alguns dos casos emblemáticos atribuídos ao Estado são: Socos, levado a cabo pelos sinchis, em novembro de 1983; Pucayacu, pelos infantes da Marinha, em agosto de 1984; Putis, pela infantaria do Exército, em dezembro de 1984; e Accomarca, infantaria do Exército, em agosto de 1985. Por sua vez, são atribuídos ao SL casos como o de Lucanamarca e Huancasancos, em abril de 1983 – vide volume 7 do Relatório Final da CVR.

O terceiro período do conflito vai de junho de 1986 a março de 1989, quando ele se expande e alcança o território nacional. O PCP-SL centrava-se então na estratégia de expansão da sua “guerra popular” nas zonas rurais, fase que chamava de “desarrollar la

guerra de guerrillas y conquistar bases de apoyo”, e em Lima, principalmente, poria em ação

uma política de assassinatos seletivos de autoridades. Nesse momento, o país passava por uma grave crise econômica com hiperinflação deflagrada no final dos anos 1980, durante o Governo de Alan García (1985-1990), do partido aprista. Nesse cenário, o governo se enfraquece politicamente e “deixa o terreno livre” para a atução das Forças Armadas nas zonas de emergência, mas em contextos urbanos, como Lima, manteve o trabalho de inteligência e de investigação policial (CVR, 2003, Vol. 1, Cap. 1).

O período posterior, que vai de março de 1989 a setembro de 1992, é de crise social e econômica extrema: o PCP-SL resolve intensificar as suas ações nas cidades, principalmente em Lima e a contraofensiva estatal se dá com nova estratégia de “eliminação seletiva” – que a CVR enfatiza ter redundado em menos violações aos direitos humanos. Este é o período em que o conflito alcança seu momento mais crítico e no qual a maior quantidade de mortos se desloca da serra sul central para departamentos de Huanuco, San Martín, Junín e Lima. Esse aumento sistemático das ações senderistas nos contextos urbanos em geral leva o governo central a apressar as soluções para o conflito; o que tem êxito, principalmente pela vulnerabilidade das guerrilhas em detrimento da maior familiaridade das operações de contrainsurgência no meio urbano (PALMER, 2005).

Em 28 de julho de 1990, o engenheiro agrônomo nipo-peruano Alberto Fujimori é eleito democraticamente, mas no dia 5 de abril 1992 dá o chamado “autogolpe”, que conta com o apoio das Forças Armadas, das elites políticas e econômicas e com quase 80% de apoio