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A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em França

CAPÍTULO II: Direitos humanos: tradição e modernidade

2. Das primitivas declarações de direitos até à contemporaneidade

2.4. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em França

Depois da Inglaterra, surgiram nos Estados Unidos da América Declarações que inspiraram a mais conhecida: a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão proclamada pela Revolução Francesa de 1789.9

Os direitos aí consagrados foram acolhidos pelas Constituições que se lhe seguiram em todo o mundo ocidental.

Duas das características essenciais do direito moderno são:

- por um lado, a formalização lógica e sistemática dos princípios, regras e normas jurídicas, que deslocou a motivação da obediência de critérios baseados na teologia e na tradição, para uma justificação de ordem legal-racional fundada na crença na validade de normas gerais e impessoais, e não no arbítrio dos detentores do poder; - por outro lado, o direito positivo, no duplo sentido da busca pela certeza jurídica,

mediante a sistematização escrita da ordem normativa.

Considerando que o desconhecimento, o esquecimento ou o desprezo pelos direitos do homem são causas de desgraça pública e de corrupção dos governos, os representantes do povo francês resolveram aprovar, numa declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do ser humano. Esta declaração pretendia recordar incessantemente a todos os seus direitos e os seus deveres, para que os atos do poder legislativo e do poder executivo, confrontados com o objetivo de todas as instituições políticas, fossem mais respeitadores dos direitos fundamentais e para que as reclamações dos cidadãos, baseadas agora em princípios simples e incontestáveis, se enquadrassem sempre na defesa da Constituição Francesa e na felicidade de todos os cidadãos franceses.

Em consequência, a Declaração reconhece e declara os Direitos do Homem e do Cidadão. A Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de Agosto de 1789,10 de cariz universal, é considerada como o arquétipo de todas as declarações de direitos humanos: soberania nacional, sistema de governo representativo, primazia da livre expressão da vontade, separação de poderes, igualdade de todos perante a lei, justiça, presunção de

9 A primeira Constituição Americana foi promulgada em 1788, como fruto de um compromisso entre a tendência

republicana (que defendia a autonomia entre os Estados) e a federalista (que defendia um poder central forte), e os princípios que regula são fundamentalmente os mesmos: adoção da República Federativa presidencialista, divisão de poderes, liberdades civis e políticas, incluindo liberdade de expressão, de imprensa e crença religiosa.

inocência, direito à resistência contra a opressão, direito à propriedade, direito à segurança, liberdade de consciência, liberdade de opinião e liberdade de pensamento.

Nesta altura passa-se a declarar direitos, isto é, a proclamá-los positivamente, e não apenas a subentendê-los nos casos em que a lei é omissa ou não proíbe expressamente, vinculando o Estado, simultaneamente, jurídica e politicamente, a garantir a efetividade dos direitos nelas declarados. Há aqui uma importante novidade. Até então, as leis quase nunca declaravam direitos, limitando-se a decretar deveres. As ordens jurídicas, por assim dizer, não tinham capacidade para atribuir direitos subjetivos, mas apenas para prescrever obrigações e estabelecer as sanções aplicáveis nos casos de transgressão.

A Déclaration des Droits de L`Homme et du Citoyen foi discutida e aprovada entre os dias 20 e 26 de Agosto de 1789. Esta Declaração sintetiza, em dezessete artigos, os ideais revolucionários da Revolução Francesa, da Bills of Rights e da revolução dos Estados Unidos da América. Os revolucionários franceses julgaram-se “apóstolos de uma nova ordem” (Silva 1999: 157) que deveria ser anunciada a todos os povos.

Pela primeira vez, foram proclamadas numa Declaração liberdades e direitos fundamentais de todos os seres humanos, com a intenção clara de que as disposições do documento fossem para todos os tempos e para todas as nações, visando abarcar não somente os franceses ou europeus, mas toda a humanidade.

Justamente aí reside a sua fundamental relevância: embora tenham existido declarações anteriores de grande relevância, todas elas possuíam um alcance apenas para dentro de um território nacional delimitado. Aqui, pelo contrário, pôs-se em prática a universalidade dos direitos do homem.

Relativamente ao texto da Declaração enunciada José Afonso da Silva comenta que:

O texto da Declaração de 1789 é de estilo lapidar, elegante, sintético, preciso e escorreito, que, em dezassete artigos, proclama os princípios da liberdade, da igualdade, da propriedade e da legalidade e as garantias individuais liberais que ainda se encontram nas declarações contemporâneas, salvas as liberdades de reunião e de associação que ela desconhecera, firmado que estava numa rigorosa concepção individualista (Silva 1999: 158).

Deve-se à Revolução Francesa e à Constituição dos Estados Unidos da América, de 1788, a moderna forma de representação política, em que os representantes são eleitos democraticamente pela coletividade global de cidadãos.

A Revolução Francesa veio acabar com a servidão feudal, com os privilégios religiosos, com a perseguição aos judeus e com o tráfico de escravos nas colónias. Todavia, foi a igualdade

entre os seres humanos que representou o ponto central desta revolução, como o mundo nunca vira até então.

A Revolução Francesa, contrariamente à Revolução Americana, conseguiu derrubar a barreira entre os sexos, servindo de base ao desenvolvimento teórico do feminismo, influência facilmente notada nos trabalhos de Mary Wollstonecraft, autora da obra “A Reivindicação dos

Direitos da Mulher” de 1790, considerada a pioneira do feminismo moderno (Serra 1994: 23).

Marie Gouze Olympe de Gouges, já em 1971, escreveu e publicou um manifesto denominado “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”, reivindicando a extensão das disposições da Declaração “original” também às mulheres (Castilho 2010: 69). Portanto, muito embora não se tenha acatado de imediato tais reivindicações, a Declaração foi o marco inicial da luta pelo reconhecimento dos direitos civis e políticos das mulheres e pela igualdade aos homens, numa verdadeira democratização dos direitos humanos. Os autores da Declaração investiram-se no papel de proclamar abstratamente algumas “verdades da natureza” (Castilho 2010: 70).

A Declaração de 1789 debruçava-se essencialmente sobre os direitos do indivíduo. A declaração de direitos naturais universais e sua aclamação fez surgir para o mundo pós- revolução francesa a relação conflitual entre o direito natural dos seres humanos e o poder necessário dos Estados (criado pelos seres humanos e para os seres humanos) com base no contrato social.

Este conflito entre direitos inalienáveis e a necessidade da vida social encontrou uma solução pela incorporação dos direitos universais nas Constituições. Entretanto, essa solução foi temporária, uma vez que ela significa que os Estados ainda podem ter a última palavra em matéria de direitos humanos.

O fenómeno histórico que melhor evidenciou os riscos do conflito referido foi o nazismo alemão do séc. XX. No entanto, foi inevitável o catalisador dos horrores da Segunda Guerra

Mundial para arrastar os direitos humanos para a agenda e para a consciência à escala global

de várias nações. A ascensão dos ideais de extrema-direita na Alemanha revelou a consequência do abandono da proeminência do jusnaturalismo em nome da segurança do direito positivo. Por isso, podemos dizer que após a Segunda Guerra Mundial a proteção dos direitos humanos se tornou num problema para o direito internacional público resolver. Este passou a cumprir o papel universal de atribuir segurança jurídica não só aos poderes dos Estados, mas principalmente aos direitos dos cidadãos de todas as nações. Segundo afirma Noberto Bobbio:

Enquanto teorias filosóficas, as primeiras afirmações dos Direitos do Homem são pura e simplesmente a expressão de um pensamento individual: são universais em relação

ao conteúdo, na medida em que se dirigem a um homem racional fora do espaço e do tempo, mas são extremamente limitadas em relação à sua eficácia, na medida em que são (na melhor das hipóteses) propostas para um futuro legislador (Bobbio 2004: 29).

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e as reivindicações ao longo do séc. XIX e XX em prol das liberdades alargaram o campo dos direitos humanos e definiram os direitos económicos e sociais. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão traduziu de forma depurada o espírito do seu tempo, deixando definido um verdadeiro “modelo teórico de liberdade”, feito não apenas de direitos naturais absolutos e inalienáveis, mas também dos princípios estruturantes do moderno Estado de Direito, que integraram o ordenamento constitucional francês e conformaram a generalidade dos ordenamentos constitucionais da Europa e do mundo.

Esta Declaração é indiscutivelmente um documento de referência e de extrema importância no domínio dos direitos humanos, de tal forma que se impõe o seu conhecimento. Estava-se na época da implantação do racionalismo que iria influir no próprio conceito de moral que os filósofos reconduziam a um relativismo universalista e dependente dos dados da razão. Era também cultivada a ideia de que a paz civil assentava na paz entre os povos. Vislumbrava- se, assim, afastar da humanidade o espetro da guerra pela união dos povos.

Uma vez proclamadas na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão as declarações de direitos, de forma universal para todos “todos os homens têm direito a ...”, esta é a expressão jurídica da necessidade de afirmar os novos princípios – sobretudo o princípio do império da lei em substituição ao império do monarca, e o princípio da submissão do poder ao Direito – passou a constituir um pressuposto necessário da noção de Estado democrático de direito. Uma função essencial do direito foi, a partir daí, precisamente a de enunciar direitos, mesmo quando as condições sociais, políticas e económicas são insuficientes para que a eficácia desses direitos seja plenamente assegurada.

2.5. A Declaração de Independência dos Estados Unidos da América e a