• Nenhum resultado encontrado

5.4 Elsa, A que “Não Deu Certo”

5.4.5 A depressão de Elsa

Desde o início do tratamento de Elsa, chamou-me atenção a intensidade de seu sofrimento e o caráter regressivo de sua ansiedade. Ela apresentava características histéricas, mobilizando as pessoas ao seu redor; obsessivas, com preocupações excessivas com horários e higiene, mas as características fóbicas pareciam predominar, em função de uma estrutura de personalidade formada sob a égide da falta, do déficit narcísico. Tinha uma auto-imagem muito frágil e fracassada, uma auto- estima muito baixa, sentindo grande impotência diante da realidade da maternidade. Demonstrava tristeza por se sentir tão mal, incredulidade e culpa diante da não-felicidade pelo nascimento do filho.

O quadro depressivo agudo de Elsa, que ela denominava de “quarto escuro”, denunciava a afluência quase violenta de vários aspectos infantis de sua personalidade e de temores conscientes e inconscientes. Em seu momento de transparência psíquica, Elsa reviveu a relação anaclítica e simbiótica que tinha com a mãe quando criança e que transferira para o marido quando adulta. Ela requeria os cuidados da mãe e do marido, identificada com o desamparo de seu filho; era como se tivesse acabado de nascer também. Só podia se tranquilizar quando estivesse na companhia de um dos dois. Ela praticamente os escravizava na sua necessidade de cuidados e companhia. Em função da precoce privação e rejeição materna, “grudou-se” à mãe e ao marido para reassegurar-se. Mas, mesmo com objetos externos acolhedores, não conseguia ficar bem com seus objetos internos.

A depressão e a angústia de Elsa pareciam um grito de socorro diante de uma evidente ansiedade de separação, em que dormir representava morte, solidão e perda do controle sobre os objetos amados. Elsa sabia que não tinha sido desejada pela mãe e vivenciou uma perda precoce aos dois anos, quando a irmã que cuidava dela mudou de cidade.

Além disso, provavelmente, a ambivalência e a culpa da mãe de Elsa conduziram-na a condutas superprotetoras, que dificultaram o desenvolvimento de segurança e confiança em relação a si mesma, como costuma acontecer em personalidades predominantemente fóbicas. Apesar de ter conseguido levar uma vida adulta, estar casada e trabalhando, Elsa demonstrou ser afetivamente instável e imatura quando do nascimento de Marcos, pois esse veio “quebrar” o equilíbrio do casal “onde um vivia para o outro”.

Nesse momento regressivo pós-parto, que pode ser considerado natural em todas as mulheres, Elsa não encontrou em si o suporte necessário para ela e para o filho. Totalmente identificada com a ambivalência materna, tornou-se fortemente ambivalente em relação ao filho. Cuidava e não cuidava, aconchegava-o e o deixava sozinho no berço, conforme relatado. Parecia travar um “cabo de guerra” com ele.

Portanto, o que de mais forte acontecia com Elsa era a projeção em Marcos de seus próprios impulsos sádico-orais-dependentes. Ela, que afirmou temer ser um fardo para as pessoas, sentia Marcos como um fardo também, projetando nele sua voracidade e necessidade de controle. Não compreendia a dependência de seu filho como tal, mas como controle agressivo e mutilante, temendo ser devorada e consumida por ele, o que a fazia desejar que ele “sumisse”. Temia enlouquecer, perder-se, perder sua identidade diante de suas demandas. “Eu vivo em prol dele! Ele é que está no comando!”

Como defesa contra esses impulsos, Elsa exacerbou seus traços obsessivos tentando controlar o incontrolável. Livrando-se da sujeira da casa compulsivamente e transformando as tarefas de banhar e alimentar seu filho em rituais, tentava se proteger de sua raiva e rejeição pelo filho que viera importuná-la em seu paraíso nirvânico com o marido. Numa determinada sessão, pude observar esse fenômeno, ao vivo, quando notei que Elsa ficou com o rosto vermelho quando o bebê acordou. Quando questionei o que sentia, disse que ficara com vergonha porque Marcos atrapalhou a sessão. Fiquei em dúvida se tinha sentido vergonha, raiva ou ciúme, pois passei a olhar e a sorrir para Marcos.

Elsa desenvolveu uma transferência positiva em relação a mim, agradecendo sempre a oportunidade que tivera: “se não fosse a senhora...”, “ainda bem que eu tenho a senhora!”. Como manifestação concreta dos sentimentos de dependência, ao final das primeiras sessões, me pedia para pegar Marcos (e/ou ela) no colo, enquanto ela pegava a bolsa, guardava a fralda ou algum brinquedo, o que mudou na fase intermediária de seu processo, quando passou a não mais me pedir ajuda, pegando seus pertences com Marcos no colo, com destreza e habilidade.

Durante o processo psicoterápico, Elsa se mostrou receptiva às minhas intervenções, colocando-se de forma sincera e, às vezes, impactante, quando admitiu, por exemplo, que queria se livrar do filho. Parece que me via como as professoras da creche de Marcos e que entendia que eu a estava tentando ajudá-la a encontrar suas forças e potencialidades. Apesar disso, sentia vergonha do que me contava e

tinha preocupação sobre o que eu pensava sobre ela, talvez temendo uma reação “bodenta” como as da mãe.

Quando comuniquei minhas férias e indaguei sobre seus sentimentos, Elsa disse “Eu tenho medo de mim mesma!”, como se não se sentisse capaz de se manter sozinha ou que pudesse causar algum dano. Vimos que esse sentimento estava relacionado aos seus sentimentos de abandono, quando a mãe ficava fora de casa; e com seus sentimentos de incompetência, quanto a dar conta de situações difíceis.

Durante seu processo terapêutico, mostrou reconhecimento pela importância do autoconhecimento e da interferência da história de vida e da família quando se tem um filho; manifestou desejo de não repetir a própria história na relação com Marcos. Seu filho parece também ter sido uma tentativa de incluir um terceiro na relação dual com o marido/mãe, para rompimento da simbiose. Nesse sentido, sua depressão pode ter tido um significado de reposicionamento interno diante de suas dificuldades. Disse que se não tivesse tido acompanhamento psicoterápico “teria definhado”.

Da minha parte me identifiquei contratransferencialmente com sua impotência e, algumas vezes, duvidei que pudesse ajudá-la, temendo por Marcos e pelo bebê que ainda habitava em Elsa.

Atualmente, embora Elsa tenha recuperado sua relação com o filho, reconhece que precisa mudar características pessoais. Ela diz que aprendeu a viver a três, está mais tranquila, embora reconheça que é ansiosa e sabe que a cada mudança em sua vida, vai perder o sono. Parece mais confiante de que dá conta e, com a ajuda do marido, parece enfrentar as questões imprevistas da vida, o que, anteriormente, se sentia incapaz de fazer. Quando não concorda com ele em alguma situação tem conseguido se posicionar de forma adulta e objetiva. Quanto a sua mania de limpeza da casa faz uma autocrítica, continua perfeccionista, mas ri disso e se propõe a mudar para não se estressar, embora ainda com esforço consciente.

A meu ver, esse caso teve dois pontos facilitadores em direção à mudança interna e externa de Elsa. O primeiro deles era a presença forte e apoiadora do marido a quem não senti necessidade de chamar para uma sessão, como em outros casos, pois Elsa e ele apresentavam grande possibilidade de diálogo. Ela transmitia a ele o que conversávamos e ele compreendia e tentava ajudá-la nas mudanças. Ele tinha disponibilidade afetiva para ela e para o filho. Durante o tratamento isso foi ressaltado para que Elsa também pudesse ouvi-lo quando se tratava de decisões

sobre Marcos e passasse a vê-lo com uma figura de pai forte e presente, um terceiro necessário, diferente do que vivenciara em sua infância.

A presença do bebê nas sessões foi o segundo aspecto de grande importância, pois através da observação de condutas e verbalizações em relação ao filho, foram possíveis muitas intervenções. Sempre que Elsa fazia afirmações sobre Marcos, eu aproveitava para examinar essas afirmações, esclarecer seu cunho projetivo e também, de alguma forma, orientá-la, principalmente quanto ao seu papel de mãe, o que possibilitou o alívio de suas fantasias destrutivas.

Alguns exemplos: (1) quando Elsa disse que Marcos estava no comando, confirmei e disse que assim era porque ele dependia totalmente dela naquele momento e lembrei-a das etapas do desenvolvimento de uma criança. Foi quando vimos o quanto ela se sentia um fardo para a mãe e o marido por suas necessidades dependentes e o quanto temia que o filho fosse igual; (2) quando se queixava que ele parecia só ficar bem no seio dela, comparei com o fato de ela também só ficar bem na casa/ seio da mãe; (3) quando ela o chamava de “manhoso”, aproveitava alguma de suas falas em que ela se dizia “nojenta”, por ser teimosa e exigente e assim por diante.

-“É mesmo, né? De repente ele nem tá pensando e sentindo isso, eu é que estou, né? Coitado do meu filho!” Essa afirmação de Elsa fez parte do desenvolvimento da posição depressiva em relação a Marcos, com o reconhecimento dele como pessoa separada dela, após um longo período de projeções e reações paranoides em relação às suas próprias dificuldades orais.

Observei que nos momentos em que Elsa fazia queixas em relação ao filho, ele acordava, chorava e Elsa oferecia o peito, o que parecia deixá-lo tranquilo. Nos primeiros meses, ele dormia no colo da mãe após a mamada; mais tarde, ficava acordado, sentado no colo de Elsa, olhando para mim. Foi aí que o incluí nos diálogos, me dirigindo a ele também. Certo dia, quando Elsa se queixava de ele ter chorado até ela tirá-lo do berço, disse a ela que ele já sabia muito bem expressar o que queria, ao que ele respondeu com um sorriso.

Nessa e em outras oportunidades, acredito ter servido de referência para Elsa na relação com o filho, mas, principalmente, acredito que a ajudei a ressignificar as comunicações e os comportamentos de Marcos, o que resultou na diminuição das projeções de Elsa e da perspectiva fusional com que ela o via.

Finalmente, por que intitulei Elsa “a que não deu certo”. Primeiro, porque essa era a imagem que tinha de si desde antes da crise depressiva. E também porque no período final de seu tratamento, tinha

um sentimento ambivalente quanto a sua família. Por conseguir estimular Marcos a se independizar e, por ter uma relação muito próxima com o marido, se sente um “ET” junto aos seus familiares, agora de outra perspectiva.

“Eu aprendi como é importante cuidar dele agora, que responsabilidade que é. E eu quero acertar. Vejo as coisas erradas lá na minha família, e não posso mudar nada lá, mas na minha família aqui eu posso fazer diferente”. No entanto, esse sentimento a deixa confusa por ainda gostar muito de estar com seus familiares e ter medo de perder seu lugar junto a eles. Nas sessões mensais de acompanhamento, estamos trabalhando a possibilidade de se diferenciar e se separar sem romper, nem destruir as relações, junto com o término da psicoterapia.