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5.5 Carla, A Seca

5.5.3 História familiar de Flávio

Flávio é um homem alto, forte, de voz grave, mas que demonstra muita polidez ao falar e em seus gestos. É o filho mais moço de pais separados desde que ele tinha onze anos. O pai literalmente “fugiu” com a secretária sem se despedir da mulher ou dos filhos e até recentemente Flávio não queria contato com ele. No segundo casamento, o pai teve um filho que Flávio denomina, segundo relatos de Carla, “o bastardo”.

Há aproximadamente vinte anos, o irmão mais velho de Flávio faleceu em um acidente de automóvel, o que o fez se sentir duplamente responsável pela mãe: por ela não ter marido e por ter perdido o filho.

Flávio já foi casado, tem dois filhos desse casamento, um menino de onze anos e uma menina de dezesseis anos de idade. A ex-esposa e os dois filhos moram em outra cidade. Flávio paga a eles uma alta pensão alimentícia.

Profissionalmente, já teve vários negócios, mas atualmente está desempregado, vivendo com a ajuda financeira da mãe. Vive sozinho em um apartamento que foi comprado em sociedade com ela.

5.5.4 História do casal

Carla e Flávio se conheceram durante um curso superior que faziam, namoraram por três anos, se davam muito bem, se divertiam e viajavam. Ela passava os finais de semana na casa dele. Ele frequentava a casa dela e mantinha bom relacionamento com a mãe de Carla.

No terceiro ano de namoro, Carla começou a ter manchas na pele e “precisou” parar a pílula anticoncepcional. Avisou a Flávio e, embora nenhum dos dois, conscientemente, quisesse um filho, nada fizeram para evitar uma gravidez. Após seis meses, Carla constatou, com desespero, que estava grávida. Chorou muito no dia que descobriu, pensando que sua vida estava acabada, mas, no dia seguinte, conforme relata, estava disposta a ter o filho. Flávio, que também não aceitara a gravidez, propôs o aborto, ao que ela se recusou. A mãe de Flávio, então, ficou três meses sem falar com Carla.

No último mês de gravidez e depois de ter atitudes que Carla interpretou como dúvida e hesitação, Flávio convidou-a para morar com ele, pois não via sentido em criarem o filho em casas separadas. Ele não admitia ver seu filho criado no meio de cachorros e gatos e considerava o fato de Carla ir morar com ele um “upgrade” na vida dela, passando a criticar claramente as atitudes e o modo de vida da mãe de Carla. Esta

relutou em aceitar o convite, pois sentia que a casa não era só dele, e muito menos dela, mas acabou indo morar com Flávio.

Carla fez alguns movimentos para personalizar o apartamento: pintou uma parede, comprou um sofá em conjunto com Flávio e comprou o quarto de João. Ela se queixa, porém de Flávio não ter arrumado lugar para que ela pudesse levar todos os seus pertences para o apartamento dele, apenas algumas roupas e livros. Ele sugeriu que ela deixasse sua coleção de sapatos e bolsas, pela qual é aficionada, na casa da mãe dela. Da mesma forma, Carla relata que Flávio sugeriu que a mãe dela não desmanchasse o seu quarto “de solteira” para aproveitar o cômodo de outra forma.

Segundo Carla, quando ela foi morar com Flávio, ele foi cada vez mais se mostrando exigente e intransigente, ordenando que tudo fosse feito a sua maneira. Carla, por sua vez, “não se apoderou de seu lugar” e ficava muito retraída e “estática”, num canto do sofá, com João no colo, por dias a fio. As dificuldades começaram a crescer quando a mãe de Flávio passou a insistir que eles deveriam dar chupeta ao bebê, fato que Carla foi sempre radicalmente contra.

Após algum tempo vivendo essa polêmica, Carla e a sogra tiveram uma dura discussão, em seguida a qual a mãe de Flávio não mais frequentou a casa deles. A situação entre ela e Flávio foi ficando insustentável, já que Carla se sentia desqualificada como mãe, pois Flávio insistia em acatar as sugestões de sua própria mãe.

Flávio, por sua vez, a considerava teimosa, pois ela também queria tudo a seu jeito, na verdade do jeito que ela foi criada. Aos poucos Carla foi se sentindo “dispensada”, quando ele sugeriu que ela passasse a almoçar diariamente na casa da mãe, ou a ir para lá em dias de faxina no apartamento.

Antes de João completar dois meses e depois de Flávio pedir “um tempo” na relação, Carla voltou para a casa da mãe, levando o filho consigo. Foi nesse momento que buscaram a psicoterapia.

Posteriormente, buscou suas roupas e livros e, por fim, o quarto de João. Os dois continuavam se vendo, mas não conseguiam chegar a um consenso quando se tratava do bebê.

Quando Flávio percebeu o gradual distanciamento de Carla, não se conformou. Ele reagiu de diversas formas: afastando-se dela e do filho; reclamando para amigos e familiares de Carla; recorrendo à terapeuta; ao se reconhecer apaixonado ainda por ela, propôs que voltassem; e por fim, afastou-se indo ver o filho cada vez mais espaçadamente.

Apesar de todas as tentativas de Flávio, Carla ficou irredutível e, a cada iniciativa de aproximação dele, recuava para mais longe. Achava difícil voltar a viver com ele como homem e mulher. Dizia ainda respeitá-lo como pai e fazer questão de que João contasse com ele. Até hoje, porém, fica muito magoada quando ele se afasta, não visita o filho, apenas liga para saber dele ou, ainda, quando a recrimina em algumas atitudes com João.

Carla disse já ter cedido muitas vezes, mas que tem limites. Durante a psicoterapia deu-se conta que, não importa o que ele faça e proponha, ela não quer voltar para ele, apesar de ao mesmo tempo lamentar muito a perda do que tinham juntos antes de engravidar.

Carla e Flávio estão separados, vendo-se e falando-se por telefone cada vez mais raramente. O casal está discutindo através de advogados a questão da pensão de João.

5.5.5 Relação com o bebê

Durante a gravidez, Flávio relutava em acompanhar Carla nas consultas e nos exames de ultrassom e a aceitar a obstetra por ela escolhida. Após mudar para a casa dele, Carla começou a apresentar hipertensão que evoluiu para pré-eclâmpsia no último mês de gestação. Precisou de cuidados especiais no final da gravidez, mas teve o parto normal de cócoras que almejava. Flávio a acompanhou no parto.

Carla teve também o acompanhamento de sua irmã que é doula (mulher treinada a acompanhar parturientes, facilitando esse momento e estimulando um parto natural). Segundo Carla, a irmã foi a única pessoa a lhe dar apoio desde que soube que estava grávida. A mãe dela ficou tão assustada quanto ela no início, mas depois a apoiou como de costume.

Durante o trabalho de parto, Carla dispensou anestésicos como faz sempre em outros pequenos procedimentos médicos ou odontológicos, mas aceitou acupuntura. Flávio não teve coragem de cortar o cordão umbilical, sendo que a irmã de Carla o fez. Até hoje Carla mostra-se agradecida à irmã, à médica e a Flávio porque lhe permitiram ter o filho como sonhou.

Carla e Flávio não quiseram saber o sexo do bebê durante a gravidez, mas ela tinha certeza de que seria um menino. O nome João foi escolhido em consenso, uma homenagem dela ao pai, já falecido e, dele ao avô materno que reside atualmente com a mãe de Flávio, ambos de nome João.

Carla, que sempre verbalizou não querer ter filhos por não “suportar” crianças, mostra-se “conformada” e se diz “feliz” com o nascimento de João. Apesar disso, após o parto continuou com hipertensão por alguns meses, supondo que era causada pela tensão que vivia na casa de Flávio e pelo processo de separação.

Carla está amamentando e diz que vai fazê-lo até João completar dois anos. Tem algumas ideias alternativas com as quais Flávio não concorda. Por exemplo: é contra vacinas, não queria batizar o filho, não deu chupeta. Em relação às duas primeiras, cedeu.

Carla oferece o seio a João sempre que ele solicita e isso acontece muitas vezes ao dia. Numa sessão em que o bebê compareceu, ela lhe deu o seio por seis vezes, ainda que pouco tempo de cada vez, pois ele se dispersa e faz outra coisa agora que está maior.

Ela costuma se divertir com as atitudes dele, que é muito parecido fisicamente com o pai. Nunca se queixa de ter que cuidar dele, apesar de se dizer cansada às vezes. Quase sempre que sai de casa leva João. Ele frequenta aulas de natação desde os cinco meses de idade. Flávio nunca foi vê-lo ou acompanhá-lo nessa atividade, apesar dos pedidos de Carla, exatamente como seu pai fez com ela, não frequentando as atividades da escola.

Chamou a atenção, na última vez em que João acompanhou Carla na sessão, que ela o colocou no chão, de costas para ela, com seus brinquedos. Ele, no entanto, foi se virando e explorando a sala, engatinhando. Depois choramingou, pediu colo, o seio e ficou me olhando do colo dela. Durante várias ações dele, como pular no seu colo, largar o peito, chorar, ela o chamou de “doido” e “louco”.

João parece estar se desenvolvendo muito bem, apresentando apenas o jeito ansioso e agitado da mãe, devido às situações estressantes das quais participa e ser ela a sua referência identificatória mais presente. Mesmo vendo o pai em espaços de tempo cada vez maiores, reconhece Flávio, o recebe com alegria e fica bem quando sozinho com ele. João tem presenciado discussões acirradas dos pais e já ouviu algumas vezes de Flávio que ele veio para atrapalhar o relacionamento dos dois ou que Carla só se relacionou com ele para ter o filho. De Carla ouve que o pai não gosta dele e não o considera como filho igual aos outros, evidenciando-se, assim, uma clara repetição de seu próprio ambiente familiar.

A paciente foi questionada sobre os sentidos que ela atribui a “doidice” e “loucura” que menciona sobre o filho e, como resultado de uma reflexão com a terapeuta, concluiu-se sobre um possível estado

ansioso da criança, relacionado às falas e discussões presenciadas. Daí Carla deduziu a importância de evitarem discutir na frente dele.