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O poder, para o filósofo contemporâneo Michel Foucault, não reside em uma instituição, ou uma pessoa, e nem é algo que se pode conferir a alguém, por meio de documentos de natureza legal ou contratual. Antes, poder deve ser entendido como uma relação oscilante, algo que está em toda a parte, sendo as relações de poder inescapáveis para os sujeitos. Para o autor, o poder não é propriedade, mas é exercido pelos sujeitos. “Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui” (FOUCAULT, 2007, p. 138).

O poder em Foucault controla, restringe, mas também produz, engendra efeitos de saber e verdade (FOUCAULT, 2008). Destarte, na perspectiva de Foucault (2004), existe uma relação íntima entre o conhecimento e o poder dentro da coletividade. Segundo o filósofo, o discurso que ordena a sociedade é sempre o discurso daquele que detém o saber.

O autor propõe duas “histórias da verdade” (FOUCAULT, 2008), uma interna e outra externa. A primeira se refere aos princípios de regulação que produzem a verdade dentro da história da ciência e a segunda se refere a “vários outros lugares” onde a verdade se forma, a partir de certo número de “regras de jogo”. Foucault faz então uma relação entre produção de verdade e produção de formas de subjetividade, domínios de objetos e saberes. Dizendo em outras palavras: a própria relação do homem com a verdade define formas específicas de produção de subjetividades, saberes e domínios de objetos. O autor cita como exemplo as formas jurídicas, que, ao realizarem as práticas penais (como o inquérito), simultaneamente produzem verdades acerca do indivíduo julgado em função de seu crime (FOUCAULT, 2002).

51 No que diz respeito ao discurso, este consiste de “um conjunto de enunciados que se apoiem na mesma formação discursiva” (FOUCAULT, 2008, p. 135). No discurso, por meio de disputas e embates, são produzidas transformações sociais, políticas e históricas, práticas, condutas e subjetividades (FOUCAULT, 2007).

O discurso é o fio que tece o mundo. Por meio dele, a prática social em que estamos inseridos é verbalizada. É no discurso que a existência é assimilada, analisada, ressignificada, desnaturalizada. O discurso também, ao ser produzido e reproduzido, constrói, desconstrói e reconstrói, em um contínuo processo que o renova e reorganiza. Sendo assim, o discurso possui energia formadora, na medida em que viabiliza a materialização de ideologias, produz e reforça relações sociais hierárquicas, promove preconceitos e segrega indivíduos. Sob esse viés, discurso pode significar poder (FOUCAULT, 2004).

Os enunciados, por sua vez, estão condicionados a regras de funcionamento comuns, inseridos em campos de saber específicos e com uma articulação permeada por lutas e constante dispersão. No processo de construção da realidade, os enunciados são constantemente retomados e reconstruídos, num processo dinâmico, social, político e histórico. Nesta perspectiva, as formações discursivas compreendem o conjunto de normas que governam o funcionamento dos enunciados, elas

[...] prescreve[m] o que deve ser correlacionado em uma prática discursiva, para que esta se refira a tal ou qual objeto, para que empregue tal ou qual enunciação, para que utilize tal conceito, para que organize tal ou qual estratégia (FOUCAULT, 2008, p. 82).

Maingueneau (1993) concorda com esta concepção, ao defender que as formações discursivas estão sempre relacionadas a campos de saber, fixando o que pode e deve ser dito em determinado campo, assim como os significados e representações que são comumente atribuídos aos enunciados. As formações discursivas funcionam como uma matriz de sentidos, de onde os sujeitos extraem as significações e sentidos, que desta forma lhes soam indiscutíveis, naturais.

Foucault (2003) analisa, ainda, como a noção de corpo enquanto organismo assumiu centralidade na implementação de dispositivos de controle sobre os corpos individualmente, a partir do século XVII, e como o desenvolvimento da noção de corpo como espécie, a partir da segunda metade do século XVIII, foi capital para a construção

52 de formas diversas de disciplina e governo da população. Ao refletir sobre as relações de poder nas instituições modernas, Foucault contribuiu grandemente para a discussão do conceito de biopolítica dos corpos disciplinados individual e coletivamente, compreendidos como gestão estatal do corpo e da vida da espécie humana.

Mediante instituições como a escola, os hospitais, as prisões e, hodiernamente, a mídia, os indivíduos são formados, controlados; valores são produzidos e reproduzidos, por meio de discursos que produzem saber e verdades (FOUCAULT, 2003; 2007; 2008), que articulam uma série de saberes-poderes distintos, de campos como a Medicina, Pedagogia, Psicologia, a fim de disciplinar as práticas sociais, condicionar a conduta dos indivíduos e produzir a realidade.

Assim, uma vez que a “verdade não existe fora do poder ou sem poder”, o discurso constitui um instrumento de poder (FOUCAULT, 2007, p. 10), à medida que produz sujeitos governáveis por intermédio de estratégias de controle e estabelecimento de condutas, determinando para homens e mulheres lugares e papéis sociais específicos dentro dos parâmetros do que é considerado socialmente ‘normal’, assim condicionando a autonomia dos sujeitos. O que é socialmente normal e aceitável é estabelecido de acordo com um determinado regime de verdade, que, por sua vez, legitima o exercício do poder.

Nesse diapasão, formou-se no Ocidente (FOUCAULT, 2003) uma ciência sexual que produz discursos de verdade sobre a sexualidade. Dentro dos discursos de verdade acerca da sexualidade produzidos na área da medicina, é constituída uma opressão do sexo e de práticas consideradas desviantes da norma por discursos que estabelecem relações de poder/saber. Determinadas práticas sexuais e indivíduos são caracterizados pelos discursos da medicina como casos patológicos ou anomalias. Na contemporaneidade, a transexualidade é um exemplo de construção conceitual desenvolvida a partir da oposição binária entre os sexos como noção de normalidade.

Há de se notar que os indivíduos que fogem às normas não atingem as expectativas esperadas e não obedecem à lógica dicotômica dos gêneros, adquirem o rótulo de desviantes, problemáticos e patológicos. Ainda outro desdobramento desse processo é o silenciamento ou banimento social de grupos que não se enquadram na polarização imposta (LOURO, 2007), como é o caso de homossexuais e transgêneros.

Nas comparações classificatórias são chamados anormais aqueles cuja diferença em relação à maioria se convencionou classificar como intolerável, incômoda, exagerada,

53 fora do permitido, oposta ao normal. Assim, a anormalidade passa a ser considerada um desvio, algo indesejável, porque a norma não admite, algo exterior, já que os princípios de formação de um saber e um poder de normalização são mecanismos com os quais se pretende defender a sociedade de qualquer abominação (FOUCAULT, 2003). Por esses entendimentos, há uma conduta social que, ao ser seguida, produzirá as masculinidades e feminilidades supostamente normais, esperadas para aquela sociedade.

2.2 “Não se nasce mulher, torna-se mulher” – Gênero e feminismo

A questão do gênero tem sido analisada com base em diversas correntes teóricas, compreendendo-o como produção de significados e condutas sociais com base na constituição biológica dos indivíduos. Teorias marxistas analisam como o gênero influencia na divisão sexual do trabalho. Já outras, de cunho psicanalítico, buscam compreender o caráter subjetivo da constituição dos sujeitos generificados (BUTLER, 2008).

O conceito de gênero é relevante nesta discussão, uma vez que nos auxilia a analisar as relações entre masculino e feminino em suas múltiplas conexões, suas hierarquias, precedências e relações de poder. Neste estudo, farei uso da delimitação discursiva da sexualidade e do sexo, com fulcro nos estudos foucaultianos e nas teorias

queer.

O gênero, de acordo com Scott (1995), faz referência a uma categoria sexual atribuída a um corpo sexuado. Pode ser entendido como uma classificação que diferencia os sujeitos de acordo com sua dimensão biológica, atribuindo aos sexos (macho e fêmea) determinadas características ou comportamentos.

Joan Scott (1995) discute as relações de gênero, definindo-o como: “[...] um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos” (SCOTT, 1995, p. 86). Para ela, o gênero é constituído por representações simbólicas e conceitos normativos (religiosos, educativos, científicos, políticos, jurídicos), que influenciam a organização política, social e a subjetivação dos indivíduos. De fato, “[...] a política constrói o gênero e o gênero constrói a política” (SCOTT, 1995,

54 p. 89). Segundo a autora, discutir o conceito de gênero propicia a problematização e desconstrução de seu caráter fixo e natural e sua construção histórica, social e discursiva.

Contudo, a concepção de gênero, em seus estudos iniciais, partia de uma visão binária e heterossexual do humano (SWAIN, 2001). Em razão das críticas de movimentos feministas de mulheres lésbicas, negras, latinas, operárias, ao que consideravam ser um feminismo de perspectiva, em geral, heterossexual, branca, de classe média, acadêmica, juntamente com as contribuições pós-estruturalistas e desconstrucionistas, que ganharam força nos anos 1980 e 1990, a teoria queer contribuiu para que se passasse a refletir também sobre a travestilidade e a transexualidade como experiências de gênero (BUTLER, 2008; SWAIN, 2001).

Atualmente referidas de forma plural, as teorias queer encontram forte referência nas reflexões que Foucault (2003) fez sobre poder, ao propor uma análise histórica do sexo, questionando, assim, a visão binária sexo/natureza. Embora não tivesse como objetivo em seus estudos desconstruir a estruturação binária em que se assentava a sociedade ocidental, o autor problematiza a categorização sexual desenvolvida por essa sociedade.

De fato, a noção de poder de Foucault (2003) é fundamental para as teorias queer. Para esse filósofo, o poder não está localizado ou centrado em uma instituição, tampouco como algo que se transmite por meio de contratos jurídicos ou políticos. Sua obra oferece uma contribuição importante para os estudos de gênero ao conceber as relações de poder como um entrecruzamento, uma teia inescapável que atravessa toda a estrutura social.

Em suas análises, Foucault entende que o dispositivo da sexualidade, que estabelece as concepções acerca do sexo como premissa maior sobre o sujeito, deslocou o poder para os corpos. Assim, o discurso passou a definir a homossexualidade como prática pecaminosa e, mais tarde, como distúrbio de natureza patológica. Ao mesmo tempo, a homossexualidade passa a poder se expressar, falar por si, reclamar espaços e ter discursos próprios; é engendrada uma relação binária em que a heteronormatividade torna-se padrão e detém o poder.

Contudo, o poder não é centralizado. Ele é disperso, com diferentes polos e permite oposições, enfrentamentos. Assim, uma atitude de resistência e de subversão acontece no próprio interior das relações de poder. Nesse sentido, a própria criação da noção de homossexualidade (FOUCAULT, 2003) tornou possível um “discurso inverso”:

55 sujeitos homossexuais tinham a possibilidade de lutar pela preservação de seus próprios direitos e interesses, fazendo uso das classificações e escolhas lexicais que eram empregadas para promover sua marginalização.

O termo queer, em inglês, designa algo estranho e esquisito, tendo sido também empregado para se referir de forma pejorativa e agressiva a indivíduos que fugiam dos padrões sociais de gênero e sexualidade (MISKOLCI, 2007). No entanto, com o início dos estudos queer, o termo passa por uma ressignificação, sendo adotado pelos teóricos para tratar da “diferença que não quer ser assimilada ou tolerada, e, portanto, sua forma de ação é muito mais transgressiva e perturbadora” (LOURO, 2001, p. 546).

Esse processo discursivo confere ao termo um caráter fluido e transitório que corrobora o entendimento proposto pelas teorias queer, de que as identidades não são estanques, mas em constante processo, que o desejo sexual é fruto de um constante processo sócio histórico, que impõe a heterossexualidade como norma e institui os comportamentos desviantes dessa norma como inadequados e marginalizados. De acordo com Gamson: “[...] a teoria queer e os estudos queer propõem um enfoque não tanto sobre populações específicas, mas sobre os processos de categorização sexual e sua desconstrução” (GAMSON, 2006, p. 347).

O estudo do gênero com base nas teorias queer, portanto, é de interesse, pois nos permite perceber a organização da vida social, as representações e as relações de poder entre os sujeitos. Scott entende o gênero como “um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1995, p. 14).

Tais diferenças encontram-se culturalmente urdidas no cerne de doutrinas religiosas, educativas, políticas ou jurídicas e que contrastam de forma binária o que socialmente entende-se por masculino e feminino, transformando seres que são considerados biologicamente como machos e fêmeas em homens e mulheres, sujeitos inseridos em uma sociedade (AMUSSEN, 1985). Nessa perspectiva estão incluídos também homens e mulheres transexuais, uma vez que a posição social de gênero é central na vida de tais sujeitos a tal ponto que esses realizaram “uma transição da posição de homem para a posição social de mulher” (RODRIGUES, ANDRADE, MANO 2015, p. 51).

56 A partir dessa concepção das relações de gênero, não apenas das mulheres exige- se um comportamento de feminilidade e submissão, como também os homens são monitorados quanto a como expressam sua masculinidade (SWAIN, 2001). Em alguns contextos, os homens que demonstram um comportamento mais feminino, que se vestem de forma percebida como pouco máscula ou são mais frequentemente vistos na companhia de homens do que de mulheres incorrem em uma conduta imprópria para o que se considera masculino (ALBUQUERQUE; CEBALLOS, 2002).

Judith Butler é também uma autora de capital importância no campo dos estudos de gênero. Ela entende o gênero como construto discursivo e performático. As teorias

queer têm em suas fundações contribuições de teóricos pós-estruturalistas, como

Foucault, Derrida e Lacan, e problematiza o suposto caráter essencialista da sexualidade, entendendo o gênero como constituído por relações de poder. Consoante com essa concepção, o corpo sexuado é produto de representações, uma construção discursiva que, de forma arbitrária e categórica, associa o masculino a um corpo de macho e o feminino a um corpo de fêmea (BUTLER, 2008). Sexo e sexualidade também são invenções constituídas sob uma suposta essencialidade e naturalidade, normatizando relações políticas e discursivas, sob um viés de heteronormatividade, ou heterossexualidade compulsória.

O termo heterossexualidade compulsória surge das discussões da feminista Adrinne Rich (2012), ao tratar da vivência lésbica. Para a autora, as mulheres são expostas a um mecanismo discursivo que as convence de que o casamento e heterossexualidade são a norma, o padrão. Elas devem assumir características ditas femininas, delicadas e evitar identificar-se com o masculino. Nessa perspectiva, o lesbianismo emerge como um desvio, algo abjeto, inaceitável ou invisível. O mesmo processo ocorre com sujeitos masculinos, com implicações distintas. O homem, mesmo sendo homossexual, precisa caracterizar-se de forma máscula, como macho, por exemplo.

Desta feita, a heterossexualidade compulsória é a demanda para que todos os indivíduos apresentem um comportamento heterossexual. Nesse processo, a heterossexualidade vai sendo naturalizada e passa a ser encarada como obrigatória, compulsória (MISKOLCI, 2007). O aspecto heteronormativo e heterossexual dá sentido aos conceitos de masculino e feminino, fazendo com que formas alternativas de sexualidade sejam marginalizadas e estigmatizadas.

57 Como resultado, os sujeitos que não se conformam aos padrões heteronormativos social e discursivamente impostos (BUTLER, 2008), como os homossexuais, transexuais e aqueles que vivem seu gênero e sua sexualidade de formas que divergem do que foi convencionado, são marginalizados, rotulados como aberrações, seres abjetos e, consequentemente, patologizados e estigmatizados.

Butler entende o gênero como performativo, aproximando-o de uma paródia. Para ela, não é possível a existência de um gênero “verdadeiro” a ser copiado, mas a idealização de um gênero a ser imitado, concebido em uma matriz heterossexual. Guacira Louro (2007) vai ao encontro do pensamento de Butler ao afirmar que o caráter aparentemente natural do gênero é produto de sua constante repetição nos discursos, que tenta silenciar outras formas de sexualidade e gênero, impondo apenas uma forma de sexualidade (heterossexual) como a norma.

Dessa forma, a construção de sujeitos generificados, sua categorização em conformidade com seu sexo biológico e sua sexualidade, são compreendidos como muito mais que fenômenos secundários na subjetivação dos indivíduos. Antes, pode-se afirmar que se constituem como recursos de fundamental importância para a governamentalidade da sociedade. Essas categorizações dos sujeitos atuam de forma a propiciar o gerenciamento, controle e normalização das suas condutas (FOUCAULT, 2003).

Umas das implicações decorrentes desse processo é uma situação de marginalização das mulheres em diversos aspectos. Os diferentes papéis sociais atribuídos aos sujeitos de diferentes gêneros são produto de um sistema desigual de poder socialmente estabelecido.

A teoria dos papéis sexuais advém da noção de papéis sociais, que surge nas ciências sociais durante a década de 1930. Essa teoria defende que certos comportamentos, tidos como femininos ou masculinos, são fixados culturalmente e internalizados por homens e mulheres em seu processo de socialização. Nessa concepção, os papéis sociais são entendidos como construções sociais e não retratam especificamente características biológicas. Defende-se, portanto, a existência de certo papel masculino e feminino na sociedade, sendo que todo comportamento que fugisse a essa norma seria visto como um desvio (CONNELL, 1987).

Essa teoria, no entanto, recebe críticas no sentido de representar os gêneros feminino e masculino como categorias homogêneas, claramente definidas e harmônicas

58 (CONNELL, 1995). A autora entende que a teoria dos papéis sociais, em virtude de sua simplicidade, oferece contribuições limitadas para a análise sociológica, visualizando apenas duas possibilidades de papéis sociais, antagonizando, assim as diferenças entre homens e mulheres (BROD, 1994). Sendo assim, tal teoria seria insuficiente para lidar com as complexas relações de gênero, não dando espaço para a compreensão de incoerências, transgressões e a própria ação dos sujeitos na sua vivência de gênero. Nesta perspectiva, masculinidades e feminilidades são compreendidos como sendo papéis sexuais introjetados pelos sujeitos, por meio de um processo social de assimilação (CONNELL, 1995).

Connell, contudo, sugere que a solução de tal problemática seria abordar os estudos de gênero de forma relacional, sem necessariamente abandonar as noções de gênero e masculinidades (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2005). Corroboramos a opinião de que seria apropriado

teorizar gênero como estrutura social, como uma estrutura de relações entre homens e mulheres, entre mulheres e entre homens, tudo relacionado às distinções reprodutivas entre os corpos (RODRIGUES, ANDRADE, MANO, 2015, p. 48).

Este trabalho, como mencionado no início desta seção, se apoia na delimitação discursiva da sexualidade e do sexo, baseada nos estudos foucaultianos e nas teorias

queer. Entendo que essa concepção do gênero e das relações sociais possibilita a

problematização das classificações binárias relativas à sexualidade e torna possível abarcar a multiplicidade da qual é composta a existência dos seres. Somos múltiplos, com múltiplos desejos, vontade e interesses e, nessa multiplicidade, categorizar os sujeitos dentro dos binômios do que é sexual e socialmente aceitável não é mais suficiente na contemporaneidade.

Sem embargo, as relações sociais ainda são, muitas vezes, pautadas por um binarismo identitário, que atua como um biopoder (FOUCAULT, 1999). Esse poder gere a divisão sexual do trabalho, bem como os sistemas econômicos, sociais e de gênero.

Diante de tal afirmação, é possível observar que o entendimento tradicional e geralmente aceito de que a esfera pública é um lugar determinado ao homem, enquanto a esfera privada, o lar, é o lugar da mulher engendra uma condição de exclusão feminina

59 da seara política, com um consequente sentimento de desinteresse das mulheres pela vida pública (SAFFIOTI, 2002; DELPHY, 2003; VERDADE, 2013).

A política se constitui, assim, como um espaço eminentemente masculino, o que cria um cenário pouco democrático, uma vez que a própria democracia subentende uma participação política mais igualitária entre os cidadãos. Como entende Avelar (2007), a democracia pressupõe o engajamento dos cidadãos em diversas áreas da atividade política. Tal engajamento legitima e fortalece as instituições democráticas.

A maior participação feminina na política, com início na conquista do direito ao sufrágio48, é fruto de uma longa trajetória de lutas e não de um mero obséquio do Estado.

Restou evidente que o direito ao voto não foi suficiente para garantir uma maior representação política das mulheres, sendo vital a criação de instrumentos que fomentem maior representatividade feminina, mais mulheres sendo eleitas e assumindo cargos políticos (ÁVILA, 2001, 2002). Neste sentido, o Brasil foi um dos países a se utilizar deste instrumento, aprovando em 1995 a lei n.º 9.504, que estabelece cotas de gênero nas candidaturas para as eleições proporcionais no país.

A desigualdade de gênero na política, realidade que ainda predomina mesmo em nossos dias, constitui um óbice ao alcance da equidade de gênero na sociedade, ainda tão repleta de violência, preconceitos e marginalização das mulheres. As cotas de gênero nas