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A utilização cada vez mais frequente de mídias digitais, como a internet, e de outros meios de comunicação, aventa a discussão com respeito aos recursos existentes para que ocorram trocas, diálogos, enfim, para que se travem as relações sociais. Faz-se

69 necessário problematizar de que forma os sentidos são constituídos e os discursos são postos em circulação nos espaços virtuais, problematizar como esses novos meios de interação (re)produzem sentidos, discursos e as relações sociais e, consequentemente, as relações de poder.

O termo “rede social” deixa latentes as intrincadas relações discursivas que acontecem nesse espaço, como que formando um entrelaçamento de expressões, diálogos, enunciações e discursos. Essas relações travadas em um ambiente virtual consubstancializam as realidades sociais e tornam possível observar as variadas relações que atravessam a sociedade. Nas redes sociais são engendrados regulamentos sociais e discursivos originados exclusivamente para as interações nesses ambientes, seja pela criação de novos regimes linguísticos, seja pela readequação de regimes anteriores. Sendo assim, o incremento das interações nos ambientes virtuais faz com que sejam cada vez mais necessárias as discussões acerca do discurso e das relações sociais nesses espaços.

Diante do exposto, o trabalho consiste na análise de comentários feitos por usuários na rede social Facebook. O nome Facebook50 origina-se do apelido do livro

artesanalmente preparado que passava de mão em mão entre os calouros das universidades americanas e que servia para que eles começassem a conhecer seus colegas na instituição — páginas encadernadas contendo fotos de estudantes e algumas informações sobre cada um.

A rede social foi criada em 4 de fevereiro de 2004, por estudantes de computação da universidade de Harvard – Mark Zuckerberg, Eduardo Saverin, Dustin Moskovitz e Chris Hughes. Em 4 de outubro de 2012, o Facebook alcançou a cifra de 1 bilhão de usuários ativos, tornando-se a rede social virtual de maior alcance em todo o mundo. O Brasil é o segundo país no mundo em número de assinantes do Facebook – mais de 47 milhões de usuários ativos –, atrás apenas dos EUA, tendo hoje 23,38% de penetração na população brasileira total, sendo 61,90% na população on-line do país.

Cabe salientar, neste ponto, que a opção por direcionar minha atenção para as práticas sociais no âmbito da rede social Facebook se origina em um contexto sócio-

50As informações apresentadas foram obtidas nos sites https://pt.wikipedia.org/wiki/Facebook e

70 histórico em que espaços discursivos como esse tomam importância crescente, agregando um número considerável de usuários regulares.

Um estudo realizado em janeiro de 2009 do Compete.com concluiu que o

Facebook é a rede social de maior utilização mundial, por usuários ativos mensalmente.

A rede social ainda tem impacto na política. No Brasil, durante as eleições presidenciais de 2014, as redes sociais converteram-se em relevante meio de comunicação entre os candidatos e seus prováveis eleitores. Durante um debate realizado entre candidatos à presidência, usuários do Facebook interagiram mais de 346 milhões de vezes, em forma de "curtidas", compartilhamentos de informações e outras publicações. Desses fatores deriva a escolha da rede social como fonte para a geração de dados para o presente trabalho.

Os comentários foram extraídos da página do grupo denominado Movimento Brasil Livre (MBL). Em sua descrição, seus criadores afirmam que “o Movimento Brasil Livre é uma entidade que visa mobilizar cidadãos em favor de uma sociedade mais livre, justa e próspera”, tendo como pautas o combate à corrupção, o liberalismo econômico51

e a redução do tamanho do Estado. A página na rede social Facebook foi iniciada em 1º de novembro de 2014, período em que também foi criado o grupo MBL, e conta com cerca de 2.833.000 seguidores. O grupo conta, ainda, outras centenas de milhares de seguidores em redes sociais como Twitter, Youtube e Instagram. A escolha da página do grupo MBL como lócus da pesquisa se deve ao fato de que o grupo atingiu repercussão nacional por promover manifestações pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff.

Conforme observa Gohn (2017), o grupo se pauta pela busca por visibilidade, o que se denota, por exemplo, na sigla escolhida para dar nome ao movimento. A opção pela nomenclatura MBL parece ter sido feita no intuito de tomar carona no Movimento Passe Livre (MPL)52. No tocante a seu perfil político, O MBL “situa-se no campo

51

O liberalismo advoga a existência de um sistema econômico de mercado, ou seja, sem a interferência do Estado, mas regido pela livre oferta e procura. Nesse sentido, a liberdade nas transações econômicas preconizada por essa ideologia advém da concorrência entre os vendedores e da ausência de impostos. Além disso, também são defendidas a liberdade individual máxima para fazer escolhas de consumo, por meio do capitalismo, e a propriedade privada. Disponível em: https://www.dicionariofinanceiro.com/liberalismo/. Acesso em: 20 maio 2019.

52 O Movimento Passe Livre (MPL) articulou protestos contra o aumento das tarifas do transporte público

na cidade de São Paulo, no mês de junho de 2013. Esses protestos obtiveram a cobertura nacional e internacional dos meios de comunicação, o que gerou discussões políticas, econômicas e de cunho social e comunicacional.

71 contraditório de ideias que misturam o liberal e o neoconservadorismo” (GOHN, 2017, p. 46-47). Segundo a autora, o grupo defende o livre mercado e adota uma postura antiestatista, sendo contrário à intervenção do mercado na economia. Além disso, demonstra matizes neoconservadoras, posicionando-se contra diversos direitos sociais e culturais modernos.

Figura 1: Página do site Movimento Brasil Livre (MBL).

Fonte: https://www.facebook.com/mblivre/

72 Na página, é disponibilizada aos visitantes a oportunidade de se tonar um integrante do grupo. Para tanto, são oferecidos aquilo que o grupo denomina como sendo os “benefícios” oferecidos aos participantes, quais sejam: 1) a participação em debates, 2) a votação em propostas, 3) diretrizes que definem o movimento, 4) o acesso e a troca de ideias com outros participantes, 5) a participação em concursos de vídeos e artigos que podem ser reproduzidos pelo movimento 6) a assistência de coordenadores estaduais e nacionais para a promoção de eventos e 7) a formação dos mobilizados através de cursos presenciais e online. Tais propostas visam a vincular o potencial membro ao grupo. O visitante que desejar receber tais benefícios deverá, no entanto, contratar mediante pagamento, um plano mensal para participar. São três os planos oferecidos: o primeiro denominado Agente da Cia (R$30,00), o segundo denominado Irmãos Koch (R$100,00) e o terceiro denominado Mão Invisível (R$250,00). Os benefícios e o acesso às atividades do grupo podem variar de acordo com o plano escolhido pelo potencial militante. Ainda são vendidas camisetas e canecas personalizadas com palavras de ordem e frases a favor do impeachment. Na seção doação, é disponibilizado ao visitante o seguinte comunicado:

[...] o Brasil que trabalha e produz disse basta à corrupção e decidiu tomar as rédeas do seu destino. É nesse papel de condutor e protagonista que necessitamos de sua contribuição. Não podemos deixar que a militância de esquerda que sairá às ruas, somada ao impulso fisiológico do ‘centrão’, transformem esse momento único de reconstrução nacional em mais do mesmo: Estado inchado, corrupção, covardia e adesismo. Não! Precisamos de uma cidadania vigorosa e atuante, transformando o inchado e inoperante estado brasileiro em um instrumento político que de fato transforme a realidade do país. Vencer uma batalha não significa abandonar a guerra! Após a queda do PT é preciso derrotar suas ideias e suas práticas. É preciso impor reformas que reduzam o estado, reduzam os impostos e aumentem a liberdade. É preciso libertar o Brasil! O MBL fará sua parte e continuará sendo um instrumento a serviço do novo Brasil. Temos certeza de que poderemos contar com sua contribuição nesse excitante momento do país (MBL, 2016).

Os dados foram extraídos da rede social durante o período entre 19 de agosto e 11 de setembro de 2016. A justificativa para a escolha dessa data é de que, nesse período, referente ao seu impeachment, Dilma Rousseff esteve em grande evidência nas mídias, gerando, consequentemente, mais comentários e postagens nas redes sociais. Para esse trabalho, contei com o auxílio de um aluno do curso de Engenharia da Computação da Faculdade de Engenharia – Campus VG/UFMT. Utilizando uma ferramenta de extração

73 de dados API53, foram selecionados todos os comentários realizados em postagens no referido período. Como meu interesse era observar comentários de usuários acerca da ex- presidenta, não foram extraídas postagens, apenas comentários.

Também cabe ressaltar que, a partir de 2017, em virtude de questões de proteção de dados, a política do Facebook sofre alterações e não mais é possível extrair o ID (identificador único) e nome de usuários que curtem ou comentam publicações em páginas públicas, grupos ou eventos. Logo, para questões de análise, não será possível problematizar questões como idade, gênero, raça ou escolaridade do enunciador, a não ser que estas se tornem evidentes por meio de suas escolhas linguísticas.

Após a extração dos comentários, os mesmos foram separados com o auxílio de uma linguagem de programação Python54. Por meio de uma busca com o termo ‘DILM’, foi gerado um arquivo em word contento em torno de 91.648 palavras, que perfaziam um total de 2.993 comentários.

Empreendi, então, uma análise inicial, ou pré-análise, de todos os comentários selecionados, que me permitiu um primeiro contato com os dados. Pude, então, perceber quais tipos de palavras (adjetivos, substantivos ou verbos) aparecem com maior frequência nos comentários em referência à presidenta. Isso foi feito por meio da observação da repetição de palavras, ou seja, tentei identificar quais termos foram mais utilizados mais frequentemente pelos enunciadores. Adicionalmente, procurei compreender quais significados podiam ser suscitados de tais enunciações e, consequentemente, esboçar uma estrutura de organização dos comentários (conjuntos de sentidos) para posterior interpretação e discussão.

Realizada essa fase exordial, passei a empreender uma triagem mais exaustiva dos comentários, separando-os em eixos de observação. Nessa ordenação, classifiquei e agrupei os comentários segundo suas semelhanças de sentido com os conjuntos estabelecidos no processo de pré-análise.

53 API é a sigla de “Application Programming Interface”, traduzida para o português como interface de programação de aplicativos. Diz respeito a um conjunto de códigos e especificações para que os aplicativos se comuniquem ou interajam uns com os outros e pode ser utilizado para extração de dados de uma página. Mais informações podem ser obtidas no site: https://developers.facebook.com/docs/graph- api?locale=pt_BR. Acesso em: 10 março 2019.

54 A linguagem de programação Python serve de base para o desenvolvimento de ferramentas que facilitam

74 Sendo assim, ressalto que os recortes foram realizados levando em conta o critério semântico, ou seja, os sentidos que considerei, enquanto pesquisadora, que podiam ser atribuídos às enunciações presentes nos comentários, considerando as perguntas propostas para a pesquisa. Para efeitos de análise, também registrei a contagem da frequência de aparição de alguns termos e sua repetição no corpus. Julgo importante frisar que alguns comentários apresentam a reiteração de mais de um dos discursos analisados; sendo assim, estão presentes em mais de um dos eixos de observação. Além disso, alguns comentários não foram selecionados, por não produzir nenhum dos efeitos de sentido analisados nos quatro conjuntos de análise. Por esse motivo, a contagem dos comentários classificados em cada conjunto não equivale à soma exata da totalidade dos comentários que compõem o corpus.

Da observação atenta dos dados emergiram então quatro temas recorrentes, os quais serão analisados e discutidos no próximo capítulo. As categorias e o número total de comentários selecionados, são apresentadas no seguinte quadro:

Quadro 1 - Categorias e contagem de comentários

Eixos de observação Total de comentários

1. Comentários com alusão à Loucura – o estereótipo da “mulher louca”

106 2. Comentários com alusão à burrice– o estereótipo da “mulher burra” 332 3. Comentários com alusão à moral sexual – o

estereótipo da “puta” 14 4. Comentários com alusão ao grotesco - abjeção 77 Fonte: Elaborado pela pesquisadora.

Finalmente, executei a análise do que resultou desse processo de classificação. À luz do referencial teórico que orienta a pesquisa, busquei compreender como os sentidos veiculados pelos comentários se articulavam com outros discursos, presentes na memória discursiva em torno da mulher na sociedade.

Neste capítulo, descrevi os pressupostos metodológicos desta pesquisa, bem como o lócus da pesquisa, o instrumento de geração de dados e o procedimento de análise. No

75 próximo capítulo, apresento a discussão dos dados, de forma a compreender os discursos evidenciados pelos comentários. No intuito de facilitar a leitura, ressalto que a discussão está estruturada de forma a obedecer à ordem demonstrada no quadro 1.

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CAPÍTULO 4 -

Análise dos Dados

“uma mulher não é um território mesmo assim lhe plantam bandeiras uma mulher não é um souvenir mesmo assim lhe colam etiquetas mais que nuvem menos que pedra uma mulher não é uma estrada não lhe penetre as cavidades com a fúria de um minerador hispânico” Luiza Romão55 (América: substantivo – mulher)

Neste capítulo, abordo a discussão dos resultados obtidos pela análise dos comentários que integram o corpus desta investigação. O crivo de análise advém da atenta observação do objeto deste estudo. O interesse de analisar os comentários postados na página do MBL no Facebook, a respeito da ex-presidenta Dilma Rousseff, é que este escrutínio pode nos propiciar uma compreensão de como os enunciados envolvendo uma mulher em um importante cargo decisório atualizam outros discursos a respeito da mulher na sociedade brasileira contemporânea. Não pretendo proceder a generalizações com o presente estudo, mas procuro demonstrar, por meio das análises aqui apresentadas, de que maneira uma imagem discursivamente construída e, até certo ponto, naturalizada da mulher ecoa nos enunciados proferidos em relação à ex-presidenta e propor reflexões sobre suas possíveis implicações sobre a representação feminina na política brasileira. Sendo assim, utilizei, como demonstrei na introdução desta tese, as seguintes perguntas de pesquisa:

1. Como a imagem da ex-presidenta Dilma Rousseff é construída discursivamente na rede social Facebook?

55 O trecho foi extraído do poema que integra a obra “Sangria”, segundo livro de autoria da atriz e poeta

Luiza Romão. A obra, composta de 28 poemas e 28 fotografias do corpo de Luiza, busca retratar a história do Brasil sob a ótica de um útero, em oposição à história que nos foi contada sob uma ótica androcêntrica, que, em geral, silencia mulheres, sexualidades não binárias, negros e a classe trabalhadora.

77 2. De que forma os comentários analisados atualizam uma memória

discursiva, vinda de outros discursos, acerca da mulher na sociedade? Essas perguntas tiveram o escopo de orientar a pesquisa e a discussão dos dados, apresentada a seguir. Os procedimentos metodológicos de análise da construção discursiva do gênero nos discursos a respeito de Dilma Rousseff envolveram, primeiramente, um levantamento bibliográfico em torno da discussão do poder exercido pelo discurso na produção dos sujeitos e da realidade social (FOUCAULT, 2008, 2007; 2003), da construção discursiva do gênero (BUTLER, 2008; SCOTT, 1995), conceitos que nos permitem compreender como são produzidos e/ou reproduzidos os sentidos do que é ser mulher na sociedade. Importante também para a análise é compreender se e de que forma a circulação desses sentidos e discursos pode contribuir para produzir e sustentar uma estrutura de hegemonia masculina (CONNEL; MESSERSCHMIDT, 2005). Reflito sobre se uma das prováveis implicações dessa estrutura poderia ser a manutenção de uma posição subalternizada para a mulher, que inviabiliza ou reduz sua participação nas esferas de poder (MIGUEL; BIROLI, 2014). Tendo feito essas delimitações, parto agora para a discussão das categorias de análise.

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Figura 2 - Nuvem de palavras com o resultado da análise.

Fonte: Software NVivo.

Conforme explicitado na seção anterior, realizei uma análise detalhada de todos os comentários selecionados, que me permitiu perceber quais tipos de comentários eram mais frequentemente realizados em referência à presidenta e, consequentemente, classificá-los.

Da observação dos comentários negativos em relação à Dilma, pude classificá-los em 4 eixos de observação, os quais são analisados e discutidos no presente capítulo. Os critérios que me levaram à divisão desses conjuntos de sentido, demonstrados no gráfico abaixo, serão explicitados em cada uma das seções a seguir.

79 Gráfico 1 – Eixos de observação

Fonte: Elaborado pela pesquisadora.

Do escrutínio dos comentários que compõem o corpus da pesquisa, encontrei inúmeras entradas de teor pejorativo com respeito à ex-presidenta, que de alguma forma carregavam em seu bojo o viés de questionar sua habilidade, aptidão e competência para exercer o cargo para o qual foi eleita.

Os comentários que questionavam sua competência e minavam sua credibilidade, por sua vez, podiam ser divididos em comentários que 1) questionavam sua sanidade mental e reiteravam o estereótipo da loucura feminina e 2) questionavam sua inteligência, capacidade intelectual e recorriam ao escárnio, referindo-se à ex-presidenta, por diversas vezes, como motivo de “piada” e “vergonha”, reproduzindo, assim, o estereótipo da mulher “burra”.

Uma análise minuciosa do corpus ainda revelou a ocorrência de comentários acerca da ex-presidenta de teor hostil, insultuoso, ofensivo e, por vezes, até mesmo colérico. Tais comentários eivados de um caráter misógino56, por sua vez, foram

56 O Dicionário Crítico de Gênero (COOLING; TEDESCHI, 2019, p. 515) define o termo misoginia,

proveniente do grego, como “aversão, repulsão mórbida, ódio ou desprezo por mulheres”.

Dilma

Louca

Burra

Puta

80 categorizados como comentários que: 3) condenam sua moral sexual, com o emprego de termos como “puta”, “vaca”, “vagabunda”, e 4) associam a imagem da ex-presidenta ao grotesco, ao abjeto, com a utilização de termos que remetem a sujeira, dejetos fecais ou doenças.

Os títulos dados a cada subseção são termos ou expressões extraídos dos comentários que formam o corpus da pesquisa e foram registrados na página do MBL. Passarei, agora, a discutir cada um desses eixos de observação.

4.1 – “Louca, maluca, desequilibrada”

Retomo o conceito de gênero, discutido nesta pesquisa, uma construção social, discursiva e histórica, que faz uso da diferenciação biológica entre os seres (macho e fêmea) para categorizá-los socialmente em feminino e masculino (BUTLER, 2003). O gênero ainda diz respeito ao estabelecimento de papéis sociais, isto é, normas e condutas que são socialmente constituídas, aceitáveis e esperadas dos sujeitos; “determinadas características chamadas femininas às mulheres, e as chamadas masculinas aos homens” (PINTO, 2007, p. 4).

A padronização de comportamentos sociais para os sujeitos com base em atributos ditos masculinos e femininos que são considerados adequados para homens e mulheres culmina com sua naturalização, à medida que são repetidas, contadas e recontadas (ADICHIE, 2014), num processo de construção de estereótipos de gênero. Nesse processo de delimitação dos papéis sociais, são postos em operação discursos não somente da psicologia, mas provenientes de diversos campos de saber, como a ciência, religião, filosofia, pedagogia, da psicanálise e outras instituições sociais, assim como autoridades judiciárias, com o escopo de delimitar o papel social de homens e mulheres na sociedade (FOUCAULT, 2008), assim como os seus modos de agir.

A mulher ideal, na sociedade deve ser dócil, meiga, recatada, mãe, cuidadora, educadora e responsável pela “transformação do embrião num indivíduo acabado” (BADINTER, 1985, p. 20). Ao mesmo tempo, a mulher que não atende aos padrões socialmente estabelecidos de comportamento feminino tem, por reiteradas vezes, sua sanidade mental questionada.

81 A produção de uma imagem de histeria e desequilíbrio mental da ex-presidenta não é algo fortuito: associa-se a um extenso processo ao longo da história de construção de um estereótipo de loucura e histerização do corpo feminino, que passa a ser entendida como um distúrbio patológico por décadas. Durante os séculos XII e XVIII, os sujeitos femininos eram tipificados pela Igreja Católica como uma expressão do “Mal sobre a Terra”, corpos sujos e possuidores de características inatas que evidenciavam transtornos da natureza da mulher, como a loucura (PRIORE, 1999).

Contudo, é especialmente por volta do século XIX, que o campo da medicina se debruça na tarefa de definir disparidades, não somente de natureza física, mas também