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É nas classificações que a vida revela o seu arco-íris pungente, nos protocolos que visam catalogá-la e desse modo põem em evidência o seu irredutível resíduo de mistério e encontro. Assim, o esquema do projecto dos dois exuberantes investigadores, articulado como o Tratactus de Wittgenstein (1.1, 1.2, 2.11, 2.12, etc.), deixa entrever, nas mínimas fissuras entre um e outro número, as peripécias indefinidas do viajar.146

Se posteriormente Wittgenstein vai preferir o jogo, nos Diários e no TLP a lógica assume um papel determinante não só na legislação da linguagem, do que pode ser dito, mas também na construção (e delimitação) do espaço lógico que é o mundo. É importante sublinhar que uma das consequências do TLP é que a lógica é a criadora do como do mundo, no sentido de ser a sua condição de possibilidade. Não se trata de uma ferramenta expressiva ou da questão da dizibilidade do mundo e dos factos que nele ocorrem, mas da possibilidade do mundo ser como é, da possibilidade de afirmar o seu modo de ser, por isso “a lógica do mundo é anterior a

qualquer verdade ou falsidade.”147 Nos Diáros e no TLP a lógica tem uma natureza a priori: está

antes do modo de ser das coisas, das suas configurações, do seu ser como são: “A ‘experiência’

de que precisamos para compreender a Lógica não é a de que algo se comporta desta e daquela

146 Claudio Magris, Danúbio

maneira, mas a de que algo é: mas isto não é bem uma experiência. / A Lógica está antes de qualquer experiência — de que algo é assim. / Está antes do como, não do quê.”148

Mais tarde, mas ainda no TLP, Wittgenstein vai fazer equivaler a experiência do ‘quê’ [was] do mundo à experiência mística, a qual, paradoxalmente, implica uma visão do mundo como se se estivesse dele afastado e o fosse possível ver como um conjunto inteiro e limitado de todos os factos. Uma visão a que Wittgenstein nas proposições finais do TLP chama visão ‘sub

specie aeterni’. É no contraste com o mundo descrito pela lógica que tanto a ética como a estética vão surgir, ou seja, é partindo da distinção realizada no TLP entre dizer e mostrar (os factos dizem-se, mas a forma lógica, que é o que permite dizer com sentido os factos, só se pode mostrar), a qual resulta do desenho que o TLP faz dos limites do sentido, da linguagem e da dizibilidade, que tanto a ética, como a estética, enquanto experiências de excesso e de transgressão do logicamente possível, ganham a verdadeira extensão. Pode dizer-se que o lugar que os conceito de estética e ética possuem é uma consequência do quadro lógico-proposicional desenhado pelo TLP.

As afirmações que constituem os andamentos de abertura do TLP, afirmações enigmáticas porque não permitem uma imediata identificação dos objectos e/ou experiências a que se referem, dizem respeito à apresentação de um determinado olhar e compreensão sobre o mundo. Trata-se da apresentação de uma imagem lógica do mundo e do estabelecimento dos elementos de fundo relativamente aos quais o pensamento de Wittgenstein acerca do que deve ser a actividade da filosofia toma forma. O problema a que o TLP quer, definitivamente, responder é o problema do modo como se pensa e conhece o mundo, ou seja, trata-se de uma investigação lógica acerca da possibilidade do sentido das representações humanas. Se posteriormente o interesse de Wittgenstein vai ter os seus eixos na percepção e sua expressão ou exteriorização, no TLP a questão central é encontrar os elementos lógicos que permitam às representações usadas para descrever e o mundo fazer sentido. Ou seja, trata-se de investigar como é que a linguagem está “enganchada no mundo”, como escreve Alice Crary149. Portanto,

mundo e linguagem, em termos cognitivos e epistemológicos, formam uma unidade

148 Tradução modificada: “Die ‘Erfahrung’, die wir zum Verstehen der Logik brauchen, ist nicht die, daß

sich etwas so und so verhält, sondern, daß etwas ist: aber das ist eben keine Erfahrung. / Die Logik ist vor jeder Erfahrung — daß etwas so ist. / Sie ist vor dem Wie, nicht vir dem Was.” TLP, §5.552

149 “a metaphysical explanation of how language hooks on to the world”, Crary, Alice, The New

indissociável, por isso a estrutura do mundo depende da estrutura lógica da linguagem e, logo, do pensamento.

É através do estudo das condições a priori do poder representativo do homem, como mostra Christiane Chauviré150, que Wittgenstein chega à conclusão da existência de uma estrutura comum à linguagem e à realidade. E é esta zona de contacto entre representação, linguagem e realidade que o TLP delimita e da qual a ética e a estética, enquanto modos de experiência e sentimento particulares, não fazem parte. É porque a linguagem possui a capacidade de dizer, expressar e representar o mundo com sentido que no TLP ela se transforma em problema filosófico e em questão lógica. No sentido em que a investigação de Wittgenstein tem como ponto de partida o modo como a linguagem diz com sentido o mundo, o modo como consegue com sucesso representar aquilo que acontece, pode dizer-se partilhar a convicção aristotélica do espanto com aquilo que há, seja isso a existência da linguagem que eficazmente diz o mundo ou o próprio mundo151, ser o início e a origem da actividade filosófica.

Mesmo que no final as respostas às questões originadas pelo espanto tenham de ser silenciadas por se localizarem no exterior da região daquilo que é possível representar e dizer152.

O mundo do TLP surge como entidade lógica complexa. Os elementos em que se decompõe não conhecem correspondentes empíricos e, dada a ausência de exemplos que permitam clarificar o que Wittgenstein quer dizer com caso, facto, estados de coisas e objectos, fica uma estrutura, da qual todos esses elementos fazem parte, a qual só ganha sentido no interior da matriz proposicional lógico-linguística. Isto é, só quando se pensa com e através da linguagem é que a estrutura do mundo fica descrita e esclarecida, ou seja, dado os elementos constituintes do mundo possuirem correspondentes exactos na estrutura da proposição só quando eles se espelham numa proposição é que se tornam identificáveis.

O TLP começa com o mundo lógico do qual o sujeito é um limite153, mas não uma parte, e o seu sentido está no exterior154 e não se confunde com a realidade [Realität e Wirklichkeit] a qual só surge no contexto da proposição e da imagem. A abertura do livro caracteriza-se por um

150 Christiane Chauviré, Wittgenstein, p.145 e ss.

151 É impossível não lembrar as palavras de Aristóteles na Metafísica A. 982b e ss: “É com o espanto que os

homens principiaram a filosofar; primeiro espantaram-se com as perplexidades óbvias, depois progrediram e levantaram questões acerca dos assuntos de outra importância.”

152 Cf. TLP, §6.53 153 TLP, §5.632 154 TLP, §6.41

movimento de descrição das entidades primeiras da realidade, movimento este a que corresponde um esforço analítico de decomposição dos diferentes elementos constituintes da forma, da configuração e da substância do mundo: “O mundo é tudo o que é o caso [Fall]”155, “a

totalidade dos factos [Gesamheit der Tatsachen], não das coisas [Dinge]”156, “é determinado

pelos factos [durch die Tatsachen bestimmt] e, assim, por ser todos os factos [alle

Tatsachen]”157

. Factos estes que “no espaço lógico [logischen Raum] são o mundo”158

e em que o mundo se decompõe [zerfällt]159.

Estas primeiras afirmações dão conta de um mundo resistente a qualquer tentativa de percepção (e até mesmo de identificação e exemplificação) dos elementos empíricos que correspondem à sua estrutura lógica. Está em causa determinar as condições de possibilidade do sentido das possíveis representações humanas, identificar os elementos lógicos que garantam que todas as proposições com sentido possam ser alvo de uma análise completa porque possuem correspondentes na estrutura lógica do mundo, ou, como Wittgenstein lhe chama, na construção lógica do mundo, a qual é partilhada pela linguagem: “existe uma relação

interna de representação pictórica entre a linguagem e o mundo. A construção lógica [logische

Bau] é comum a todos eles.”160 Depois de estabelecida e descrita esta construção, o território

comum entre representações, princípios lógicos e mundo, qualquer proposição com sentido terá o seu fundamento num facto, estado de coisas ou objecto. Objectos que formam não só “a

substância do mundo [die Substanz der Welt]”161, como constituem a forma fixa [feste Form] do mundo 162, porque “só havendo objectos [Gegenstände] pode haver uma forma fixa do

mundo”163.

Este mundo, sublinhe-se, é um mundo lógico distinto do mundo descrito por Wittgenstein no final do TLP e que é semelhante à vida164. Trata-se de um mundo preenchido pela lógica e que tem nesta os seus limites e condições: “a lógica enche o mundo [erfüllt die

155 TLP, §1 156 TLP, §1.1 157 TLP, §1.11 158 TLP, §1.13 159 TLP, §1.2 160 TLP, §4.014 161 TLP, §2.021 162 TLP, §2.023 163 TLP, §2.026 164 cf. TLP, §§5.621 e 5.63

Welt]; os limites [Grenzen] do mundo são também os seus limites. Assim não se pode dizer em

lógica: ‘no mundo há isto e isto [das und das gibt], mas não aquilo’. ”165 Esta secção é clara na

identificação do conceito de mundo que o TLP quer descrever e esclarecer. O que as proposições lógicas do TLP dizem acerca do mundo destinam-se não a estabelecer um conteúdo do mundo (o que há ou não há), mas a mostrar as possibilidades da existência e as propriedades formais dessas mesmas existências: “o facto de as proposições da lógica serem tautologias

mostra [zeigt] as propriedades formais [formalen Eigenschaften] — lógicas — da linguagem, do mundo.”166 E, continua Wittgenstein, “mas é claro que a lógica nada tem a ver com a pergunta

sobre se o nosso mundo é realmente assim ou não”167, as suas proposição somente “descrevem as traves-mestras do mundo [Gerüst der Welt], ou melhor ainda, representam-nas

[darstellen].”168

Destas descrições do mundo, que são o seu andaime ou esqueleto [Gerüst der Welt], fica claro que está em causa o conjunto de condições necessárias para que os objectos, factos e estado de coisas possam existir: “a lógica é transcendental”169.

Ainda relativamente ao mundo, continua Wittgenstein: “A totalidade dos factos [die Gesamheit der Tatsachen] determina, pois, o que é o caso [was der Fall ist] e também tudo o que

não é o caso”170 e “os factos no espaço lógico [logischen Raum] são o mundo.”171Estes

elementos, a que Wittgenstein faz corresponder o mundo, são extremamente genéricos. Fall designa tudo aquilo que acontece, a pedra que cai, o carro que passa, a deslocação de um objecto de um lugar para outro, etc. (exemplos estes que são uma pressuposição do leitor, porque Wittgenstein nunca os fornece), e Tatsachen corresponde, como é dito na secção §2, à “existência de estados de coisas [das Bestehen von Sachverhalten]”. O mundo significa, assim, uma totalidade simples de factos genéricos, uma grandeza limitada de acontecimentos que têm no espaço lógico a sua sua possibilidade. O espaço lógico é o espaço de possibilidade de representação daquilo que acontece, ou seja, é o espaço de acontecimento dos factos cujo conjunto inteiro e limitado é o mundo. Assim, mundo é o que acontece, o conjunto de todos os factos e casos. Esta distinção entre facto e caso [Fall e Tatsachen] a partir de determinado

165 TLP, §5.61 166 TLP, §6.12

167 Tradução modificada: “ Es ist klar, daß die Logik nichts mit der Frage zu schaffen hat, ob unsere Welt

wirklich so ist oder nicht.”, TLP, §6.1233

168 TLP, §6.124 169 TLP, §6.13 170 TLP, §1.12 171 TLP, §1.13

momento parece já não interessar a Wittgenstein (ainda que se continue a falar de casos e factos) e podem fazer-se equivaler.

Na já referida §2ª secção do TLP Wittgenstein introduz os ‘estados de coisas’ [Sachverhalten] que são mais um elemento constituinte do mundo e são “uma conexão entre

objectos (coisas) [eine Verbindung von Gegenstände (Sachen, Dinge)]”. Fall, Tatsachen, Sachverhalten e, finalmente, Gegenstände parecem ser termos permutáveis de uma entidade

comum — o mundo —, nunca sendo completamente claro quais os elementos que designam, que mostram ou para que apontam. O movimento de identificação do mundo enquanto possibilidade daquilo que acontece, que vai ter um movimento análogo na compreensão da proposição, parte do elemento mais genérico para o mais específico, do complexo para o simples: mundo, caso, facto, estado de coisas e objectos. O pressuposto é lógico e mecânico: toda a grandeza complexa tem de ter partes mais simples suas constituintes, tal como toda a máquina, por mais complexa que seja, é construída através de diferentes elementos constituintes que quando relacionados de determinada maneira possibilitam a existência do mecanismo e o seu funcionamento.

O TLP apresenta os objectos enquanto os elementos mais simples em que se decompõe o mundo, mas Wittgenstein utiliza indistintamente três conceitos — Gegenstände, Sachen e

Dinge — que aparentemente querem dizer o mesmo e esta variedade gramatical e conceptual cria dificuldades na identificação daquilo a que se referem os objectos e as coisas. Nos três casos estão em causa termos de uma tal generalidade que tudo aí pode encontrar lugar. O objectivo de Wittgenstein com esta distinção tão precisa, mas à qual aparentemente nada corresponde, parece ser o de não deixar nada de fora, não haver qualquer resto: este mundo tem de poder conter tudo o que há e o que poderá haver, todas as possibilidades presentes e futuras (ou como se dirá depois: o mundo tem de ser completa e totalmente descrito). Trata-se de todos os objectos e de todas as coisas sem excepção, por isso pode assumir-se não existir entre ‘Gegenstände’, ‘Sachen’ e ‘Dinge’ uma distinção lógica pertinente na construção lógica que é o mundo. Esta estrutura, que não admite qualquer excepção, pode ser vista como a matriz organizacional que também se detecta no modo como Wittgenstein compreende a linguagem.

Este levar a análise lógica ao elemento mais simples, permite a Wittgenstein descrever a ordem lógica e imutável do mundo. Ordem a qual se irá reflectir na estrutura da linguagem e que permite à proposição, logicamente articulada, funcionar em plena sintonia e concordância

com a realidade. Os objectos através da sua conexão não só permitem que os estados de coisas se formem, como quando são “dados todos os objectos também são dados todos os estados de

coisas”172e é a configuração dos objectos que “forma os estados de coisas.”173 Objectos são

“simples”174 e “contêm a possibilidade de todas as situações.”175

Os objectos possibilitam todas as situações não só devido à sua simplicidade, mas porque a sua forma, “espaço, tempo e cor

(coloração)”176

, é igualmente a forma fixa do mundo. Se os objectos formam a substância do mundo, formam igualmente a sua forma: “a forma fixa [feste Form] consiste precisamente em

objectos”177 e, Wittgenstein reforça ainda mais a identificação da forma fixa do mundo com os

objectos, sublinhando em §2.027 “o fixo, o subsistente e o objecto são um.” Com o conceito de objecto não está em causa a determinação de quaisquer realidades empíricas ou materiais do mundo ou de um seu acontecimento, trata-se da possibilidade de alguma coisa poder existir e por isso “a substância do mundo só pode determinar uma forma e nenhumas propriedades

materiais. Pois estas só são representadas através de proposições — só são formadas através da configuração dos objectos.”178 E é esta forma que o mundo — à semelhança da construção lógica que é comum ao mundo, às proposições e às imagens — partilha com todos os outros mundos possíveis (reais ou imaginários): “é óbvio que um mundo imaginado, por muito diferente

que seja do real, tem que ter algo – uma forma – em comum com o real.”179

Os objectos, além de formarem a substância do mundo, são suportados por uma estrutura lógica a qual permite realizar transições entre mundo, objectos, proposições e imagens. A forma fixa do mundo sendo constituída por objectos e dado estes serem a substância do mundo, então substância é no TLP uma forma descritível (os objectos são descritiveis por uma proposição), representável (a proposição, se for verdadeira, representada como as coisas são) e partilha com a linguagem a mesma forma lógica. Esta substância do mundo “permanece independente daquilo que é o caso”180

, independência no sentido em que a sua determinação é lógica e não empírica, ela é independente do que acontece e daquilo que é

172 TLP, §2.0124 173 TLP, §2.0272 174 TLP, §2.02 175 TLP, §2.014 176 TLP, §2.0251 177TLP, §2.023 178 TLP, §2.0231 179 TLP, §2.022 180 TLP, §2.024

o caso porque ela é “ela é forma e conteúdo”181

: neste sentido pode afirmar-se serem os objectos, articulados em factos e casos, o garante da totalidade da estrutura do mundo. É ao tornar o fixo, o subsistente e o objecto em elementos sinónimos que Wittgenstein expressa a necessidade, lógica e linguística, de haver uma forma lógica que seja o esqueleto daquilo que acontece no mundo: tem de haver uma forma firme, subistente e que permaneça idêntica e inalterável ao longo daquilo que acontece.

Contudo, ainda que a forma fixa do mundo pareça caracterizar-se por uma espécie de imobilismo próprio dos primeiros princípios metafísicos que constituem uma espécie de imagem lógica cristalina, que depois Wittgenstein vai tão duramente criticar e repudiar, é da relação entre os diferentes objectos que se forma o mundo porque “não podemos pensar nenhum

objecto fora da sua conexão com outros. […] não posso pensá-lo fora da possibilidade desta

conexão”182, logo a natureza substancial do mundo é relacional: é só por haver objectos que

entram em relação uns com os outros que o mundo existe, porque o mundo é uma totalidade não de objectos, mas de factos. Distinções estas que não são de natureza substancial, mas obedecem a uma espécie de imperativo lógico, o qual tem por objectivo garantir o sentido das proposições e das representações humanas.

Neste contexto, a minuciosa descrição do mundo é o que permite identificar os elementos do mundo que correspondem, tal qual, ao que existe na linguagem porque só depois de estabelecida esta relação de isomorfia entre o facto a representar e o facto representado é que se pode garantir o sentido de uma proposição. E, tal como na sua crítica da linguagem em que Wittgenstein vai do elemento proposicional mais simples ao mais complexo, também na descrição do mundo que realiza detecta-se esse movimento de análise de uma complexidade dada, o mundo, nos seus elementos simples constituintes. É no espaço lógico do mundo que a linguagem vai encontrar a sua possibilidade, o mundo é o ponto de partida e o ponto de chegada da linguagem humana.

A simplicidade que era um pressuposto lógico do objecto, quando é vista através da necessidade de relação e de integração dos objectos em estados de coisas tranforma-se em complexidade, e a unidade simples do objecto — “atómica” — conhece outras determinações formais através do espaço, do tempo e da cor. Os objectos têm de abandonar a sua simplicidade

181 TLP, §2.025 182 TLP, §2.0121

e assumir uma configuração determinada para que possam constituir os estados de coisas: “a

configuração dos objectos constitui os estados de coisas”183, mas esta configuração é “o mutável,

o insubsistente”184. Logo, para um objecto poder ser parte de um estado de coisas tem de ser

determinado: estar num espaço, num tempo e ter uma cor.

O objecto é o elemento do mundo que permanece, por oposição ao que acontece que é caracterizado por ser mutável, variável e insubsistente. E é a partir da relação entre os objectos, do seu arranjo, que se constituem os estados de coisas. Eles são a possibilidade do espaço, tempo e cor penetrarem no mundo, os quais têm de ser formas porque nem o espaço, nem o tempo e nem a cor são propriedades materiais. A configuração dos objectos mesmo sendo mutável e insubsistente é o que permite a distinção entre os diversos acontecimento de que o mundo é feito: “Ou uma coisa tem propriedades que nenhuma outra tem, e pode-se então sem

mais distingui-la das outras através de um descrição, e referi-la […].”185 Uma coisa tem de ter

propriedades materiais que são as suas marcas distintivas, são o que se reflecte nos diferentes elementos das imagens e proposições. Estas propriedades, sem as quais nenhuma coisa se distinguiria de outra, são os referentes da representação pictórica da realidade.

Não é o mundo que precisa de ter propriedades materiais que o distingam porque só existe um mundo, logo não é preciso distingui-lo de outro mundo ou de outra coisa, mesmo no caso dos mundos fictícios, ou como Wittgenstein diz “mundos imaginados”, permanece um elemento comum e estável que é a sua forma. O mundo encontra as suas características próprias, o seu ser como é, no ser a totalidade dos factos, os quais determinam tudo o que acontece e ao serem uma conexão entre objectos implicam a existência de propriedades que distinguem os diferentes acontecimentos do mundo: são estes acontecimentos, variados e distintos, que a linguagem descreve correcta ou incorrectamente e com os quais é possível espantar-se. Como Wittgenstein afirma na CE: “É sem sentido dizer que me espanto com a

existência do mundo, porque eu não podia imaginá-lo como não existindo. Podia certamente espantar-me que o mundo que me rodeia seja como é.”186 O espanto acontece relativamente ao

que é possível descrever e só aquilo que tem propriedades distintas — os estados de coisas — é

183 Tradução modificada: “Die Konfiguration der Gegenstände bildet den Sachverhalten.” TLP, §2.0272 184 TLP, §2.071

185 “Entweder ein Ding hat Eigenschaften, die kein anderes hat, dann kann man es ohne weiteres durch eine

Beschreibung aud den anderen herausheben, und darauf hinweisen; …”, TLP, §2.02331

descritível, os objectos, como o mundo, ao serem simples são, de certo modo, indescritíveis: posso espantar-me com o que acontece no mundo, mas não com o próprio mundo. Os objectos

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