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É óbvio que a Ética não se pode pôr em palavras. A Ética é transcendental. (A Ética e a Estética são Um.)82

O projecto filosófico de Wittgentsein é rico em complexidades e exigências ao seu leitor, quer do ponto de vista dos problemas que coloca, quer em termos do modo como constrói e desenvolve a sua forma de pensar. Características estas que cobrem o projecto filosófico de Wittgenstein com uma atmosfera de dificuldade. Como descreve Soulez: “Wittgenstein coloca-

nos diante de um projecto difícil: recuperar a lógica da língua natural sem ter de a construir por meio da descrição do uso de conceitos que também são instrumentos críticos contra as ‘mentiras da Cultura’ ou, se se preferir, contra a ‘incultura’. Ele faz apelo a um tipo de compreensão que não é fácil entender: uma compreensão directa não imediata, mas que procede sem reconstrução, uma compreensão em profundidade de uma estrutura não escondida, uma visão de uma evidência não evidente.”83

Os termos com que Antonia Soulez apresenta a dificuldade do projecto wittgensteiniano traduzem-se numa dinâmica compreensiva que tenta ser directa mas não imediata, ou seja, deseja atingir a profundidade do que está à frente dos olhos e reconhecer as evidências que teimam em não ser evidentes devido à espessa camada de nevoeiro que continuamente as

82 TLP, §6.421

83 “Wittgenstein nous met en face d’un projet difficile: ressaisir la logique de la langue naturelle sans avoir

à la construire, au moyen d’une methode de description de l’usage des concepts qui est aussi un instrument critique contre les ‘mensonges de la Culture’ ou si l’on veut ‘l´inculture’. Il est alors fait appel à un type de saisie qu’il n’est pas aisé de comprendre: une saisie directe non immédiate, mais qui opère sans reconstruction, une saisie en profundeur d’une structure non cachée, une vision d’une évidence non évidente.” Soulez, op. cit., pp.265-266

cobre. Estes movimentos, aparentemente contraditórios, ganham sentido se se pensar que a exigência é a de um olhar directo para os fenómenos, mas de modo a ver-se as próprias coisas e não a camuflá-las com as invenções do espírito “inculto”. Um objectivo que não obriga a novas invenções ou a acrescentos conceptuais: o necessário é olhar para aquilo que sempre ocupou o campo de visão, para as coisas que sempre aí estiveram visíveis e que o olhar teimava em não ver. É no local onde já se está, e onde sempre se esteve (a vida de todos os dias e de todos os homens), que a actividade filosófica deve ser levada a cabo84. Não se erguem construções sobre

a superfície do real, antes intensifica-se a concentração sobre o que vive e age nessa superfície, evitando o erro filosófico comum (uma espécie de tentação pelas alturas a que alguns filósofos, nomeadamente o Wittgenstein do TLP, não conseguem resistir) de entender o processo reflexivo como afastamento do mundo e suspensão da vida. Aquilo que Wittgenstein faz fá-lo a partir do interior da linguagem, do pensamento e da vida. O Prefácio ao TLP, bem como a carta que escreve a Ludwig von Ficker sobre o TLP, dão conta, com extrema precisão, da impossibilidade de se situar fora da linguagem e do pensamento. Que a sua actividade filosófica é exercida do interior da linguagem, do pensamento e do mundo, é outro dos pontos constantes de toda a produção filosófica wittgensteiniana.

Soulez não fala de duas outras dificuldades inerentes ao projecto wittgenstiano: uma diz respeito à existência de uma só obra publicada por ele, o TLP, os restantes manuscritos e documentos dactilografados nunca conheceram uma ordem dada pela mão de Wittgenstein, todos os arranjos desses materiais foram sempre provisórios e nunca satisfatórios: nunca expressavam totalmente o que Wittgenstein pretendia85. As selecções editoriais que se

conhecem (à excepção da primeira parte das IF e da quase totalidade do BT) procedem de escolhas de executores testamentários, logo são já interpretações e leituras. O que obriga o

84 S. Cavell, chama a este local “home” e, acrescenta, que o objectivo último da filosofia de Wittgtenstein,

de acordo com a leitura que faz das IF, é guiar-nos neste regresso a casa. O seu argumento é que de acordo com Wittgenstein, nas IF, o encontrar do caminho de regresso a casa — ou ao comum [ordinary] — é um processo complexo, porque esta casa poderá ser um lugar desconhecido: “a return to what he calls the ordinary, or “home” (I place the quotes to remind ourselves that the we may never have been there).” in,

The Investigations’ everyday aesthetics of itself, 2004, p.23

85 Relativamente às edições das obras de Wittgenstein alerta J. Schulte: “editions of these writings must not

even give the appearance of being ‘works’ since the author himself could not, or did not wish to, consider them complete works. On the other hand, an edition of so many manuscripts and typescripts without certain accents and breaks would be inaccessible to any reader […]. The only possibility seems to me to be the following: Use criteria […] and look at the writings not so much as something finished and complete but rather as “experiments.” Op.cit, p. 36

leitor a um esforço continuo e suplementar de agrupamento, ordenação e esquematização e, como afirma Schulte, a encarar cada aforismo de Wittgenstein como experiências incompletas que têm de ser completadas pelo próprio leitor. Outra dificuldade relaciona-se com a impossibilidade de surpreender um sistema ou encontrar uma chave única de decrifração do seu pensamento de que o leitor se possa munir com vista à total compreenção deste projecto: “Nós não temos sistema. Isto é, ninguém pode concordar ou não concordar connosco; pois,

somente indicamos um método.” 86

Trata-se de um método que exige, como condição de leitura e compreensão, movimentos sucessivos de aproximação e afastamento com vista a conquistar a totalidade das suas intuições e exercícios de pensamento. Ler Wittgenstein obriga a entrar numa “reflexão

dialógica interna” [internal dialogical reflection]87

a qual leva a um diálogo duplo: primeiro com os textos de Wittgenstein seguindo as instruções que dá e realizando as experiências propostas e, em segundo lugar, um diálogo do leitor consigo próprio, com os seus pensamentos e a sua forma de ver. O estilo fragmentário de Wittgenstein ou, como lhe chama Cavell, aforístico, não é uma opção, mas decorre da natureza do seu estilo de pensamento88, das questões que coloca e do modo como as coloca. Num esclarecedor manuscrito de 1949 Wittgenstein mostra que maneira o estilo de um homem é a sua imagem: “ ‘Le style c’est l’homme.’ ‘Le style c’est

l’homme même.’ A primeira expressão possui uma brevidade epigráfica barata. A segunda, correcta, abre uma perspectiva completamente diferente. Ela diz que o estilo é a imagem do homem.”89

Que o estilo seja o próprio homem significa que este estílo aforístico não só impossibilita a reunião de todos os seus pensamentos numa única obra, como manifesta não a impossibilidade do projecto que preconiza, mas a sua identidade. Pode enfrentar-se a sua obra sob o signo do inacabamento, a qual nunca conheceu uma forma final ou um opus mangum, mas que vive de múltiplas variações, repetições, alterações e soluções provisórias. O “manifesto

inacabamento”90

é a marca própria do modo wittgensteiniano de pensar.

86“Wir haben kein System. D. h. es kann niemand mit uns übereinstimmen oder nicht übereinsgtimmen;

denn wir geben eigentlich nur eine Methode an.” VW, p. 288

87 Richard Eldridge, Leading a Human Life, 1997, p.2

88 Relembre-se as passagens das AC (III, §37ss) em que Wittgenstein fala em estilo de pensamento.

89“ ‘Le style c’est l’homme.’ ‘Le style c’est l’homme même.’ Der erste Ausdruck hat eine billige

epigrammatische Kürze. Der zweite, richtige, eröffnet eine ganz andere Perspektive. Er sagt, daß der Stil das Bild des Menschen sei.” MS 137 140a: 4.1.1949

90 cf. Gérard Guest, Wittgenstein et la Question du Livre, Une phenomenology de l’extrême, pp.7-20 e

O seu estilo filosófico, aqui considerado inseparável da natureza dos seus problemas e que não se deixa aprisionar numa forma única, tem na figura do andar aos saltos à volta de um mesmo assunto [springe um das Thema herum] a melhor apresentação da sua natureza interna. Num manuscrito de 1937, escreve Wittgenstein: “Quando penso para mim próprio sem querer

escrever um livro, ando aos saltos à volta de um mesmo assunto; esta é a única maneira de pensar que me é natural. Forçar os meus pensamentos numa sequência ordenada é um martírio. Mesmo assim, deveria agora experimentá-lo??

Desperdiço um esforço indizível, talvez sem qualquer valor, a ordenar os meus pensamentos.”91

A sua forma natural de pensar, andar aos saltos de assunto em assunto, é uma necessidade manifestada no modo como o trabalho da escrita expressa o trabalho do pensamento e os seus mecanismos. O seu estilo de pensamento [Denkstil] implica uma forma específica de expressão, uma “forma do dizer”92, na qual se deixa ver uma acção constante de

resistência às tentações e seduções da filosofia. As suas proposições, investigações [Untersuchungen] e observações [Bemerkungen] são uma “prosa conceptual”93

que têm a função terapêutica de curar o pensamento. A sua estratégia destrutiva conhece nesta “forma do

dizer”, em que a repetição é um continuo recurso estilistico a lembrar o do poeta94, o seu local

de expansão e origem. Uma “forma do dizer” que tem como objectivo a visão clara do uso dos conceitos, da linguagem e do pensamento e, assim, libertar o homem dos feitiços da linguagem.

Este modo wittgensteiniano de filosofar exige movimentos interpretativos e exercícios os quais, a maior parte das vezes, não conhecem paralelo na história da filosofia: está sempre a pedir ao leitor que não pense, que não faça filosofia no sentido tradicional, que não olhe para dentro, que não se deixe enganar. Tudo traços que, à primeira vista, fazem de Wittgenstein uma espécie de anti-filósofo95. Mas esta anti-filosofia é meramente aparente, porque está em causa uma espécie de retorno à filosofia como actividade interrogativa que tem na vida de todos os

91 “Wenn ich für mich denke ohne eine Buch schreiben zu wollen, so springe ich um das Thema herum; das

ist die einzige mir natürlich Denkweise. In einer Reihe gezwungen fortzudenken ist mir reine Qual. Soll ich es nun überhaupt probieren?? / Ich verschwende unsägliche Mühe auf ein Anordnen der Gedanken, das vielleicht gar keinen Wert hat.” MS 118 94v: 15.9.1937, CV, 1937

92 Soulez, op. cit., p. 238 93 ibidem, p.249

94 ibidem, p. 265 95 ibidem, p.265

homens e de todos os dias o seu ponto de partida e de chegada. Se à primeira vista parece haver aqui uma inflexão de caminho, quando visto a outra luz a ‘anti-filosofia’ surge enquanto negação de um mundo pretensamente autónomo, paralelo e autosubsistente que a linguagem filosófica constrói para si mesma. A actividade filosófica, enquanto actividade primeira e vocação do pensamento, deve retornar à dor que sinto, à palavra que salva, ao gesto que faço, à vida que levo.

A importância da “forma do dizer” é de tal modo central em Wittgenstein que a tradição interpretativa distinguiu dois momentos distintos no seu trabalho, protagonizados principalmente pelo TLP e pelas IF, e deu origem a uma cisão entre um “primeiro Wittgenstein” e um “segundo Wittgenstein”96

; uma cisão que tenta dar conta da alteração de tom na escrita a qual se supôs corresponder e exprimir diferentes modos de compreender e empreender a tarefa e o esforço da filosofia. A nossa compreensão é de que, no essencial, são duas formas distintas de um mesmo problema, atravessadas por um caudal subterrâneo que trespassa a totalidade da sua produção, o qual podemos resumir dizendo tratar-se do movimento continuo de clarificação dos mecanismos do pensamento e da linguagem. O “primeiro” e o “último” Wittgenstein não surgem independentemente um do outro, são correlatos, faces de uma mesma moeda. O próprio afirma, no prólogo às IF, que só se pode compreender a sua nova maneira de pensar se ela for vista à luz e em contraste com a sua velha maneira de pensar, sob o foco do TLP. Repita- se: “estes [refere-se aos novos pensamentos presentes nas IF os seus ‘neuen Gedanken’] só

podem ser verdadeiramente iluminados pelo contraste e contra o campo de fundo daquela

[refere-se à velha maneira de pensar ‘ältern Denkweise’, mais especificamente ao TLP].”97

Ler Wittgenstein é de uma exigência extrema, porque implica que o leitor saiba que a linguagem está sempre a pregar partidas as quais é necessário identificar e depois desmascarar. Partidas que dizem respeito, manifestam e expressam problemas do pensamento e da percepção. A abordagem a estes problemas conhece ao longo da obra de Wittgenstein diversas formulações, e, de acordo com a leitura que aqui se propõe, é fruto dessas mudanças de perspectiva e visão a transformação da lógica em gramática e da imagem [Bild] em aspecto. Transformações que permitem efectuar passagens e transições entre os diversos lugares do

96 Há mesmo quem já identifique um “terceiro Wittgenstein”. Cf. Danièle Moyal-Sharrock ed., The Third

Wittgenstein. The Post Investigation Works, 2004

97 “Daß diese nur durch den Gegensatz und auf dem Hintergrund meiner ältern Denkweise ihre rechte

pensamento wittgensteiniano e ao longo das quais a identificação wittgensteiniana entre a investigação estética e a investigação filosófica conhece uma multiplicidade de características.

A inexistência de “um livro” que resuma, sintetize ou dê uma forma final ao pensamento de Wittgenstein significa, principalmente, que o seu trabalho e actividade são longos e silenciosos. Não se trata de pobreza ou insuficiência de recursos, mas corresponde à própria exigência de entendimento da filosofia como actividade que tem como finalidade atingir a claridade do pensamento e não a construção de edifícios teóricos, por isso, enquanto houver vida, a filosofia não pode cessar: “Está-se continuamente a ouvir a observação que a filosofia

não faz qualquer progresso, que estamos ainda ocupados com os mesmos problemas filosóficos com que estavam os Gregos. Os que dizem isto não percebem a razão porque é assim [var.: porque tem de ser assim]. É porque a nossa linguagem permaneceu a mesma & continua a seduzir-nos a fazer as mesmas perguntas.”98

Esta observação não é um lamento, antes a uma reconciliação da filosofia com o seu próprio objecto: a linguagem e o pensamento. O não haver progresso significa não só a permanência de uma mesma linguagem ao longo dos tempos, como indica que a actividade filosófica é sempre levada a cabo como se fosse a primeira vez: o novo modo e estilo de pensar ambicionados por Wittgenstein implicam estar-se sempre a começar tudo de novo, a voltar aos mesmos sítios, a fazer as mesmas perguntas, a recuperar as mesmas experiências, os mesmos espantos, na expectiva que o nevoeiro que envolve as palavras e as coisas se possa dissipar. Na

CE Wittgenstein fala da ética como documento de uma tendência do espírito humano que não

se pode senão respeitar e louvar, e o filosofar é outra tendência do espírito e, como se disse anteriormente, uma vocação do pensamento a que não se pode deixar de atender.

A actividade filosófica de Wittgenstein é não só um exercício do pensamento que implica levar ao limite a linguagem e as condições do pensamento e da visão, mas igualmente uma actvidade produtiva, criativa e ficcional, quando se socorre da criação de diversas “experiências de pensamento” [Gedankenexperimente] e de “conceitos fictícios” [fiktiven Begriffen] os quais são exercícios cognitivos e momentos em que o pensamento se experimenta

98 “Man hört immer wieder die Bemerkungen daß die Philosophie eigentlivh keinen Fortschritt mache, daß

die gleichen philosophischen Probleme die schon die Griechen beschäftigten uns noch beschäftigen. Die das aber sagen verstehen nicht den Grund warum es so ist [var.: sein muß]. Der ist aber, daß unsere Sprache sich gleich geblieben ist & uns immer wieder zu denselben Fragen verhührt.” CV, 1931, p.22

a si próprio. A injunção ao silêncio com que termina o TLP é o primeiro sinal da impossibilidade de “um livro” que pudesse substituir o próprio exercício do pensar a que estão obrigados todos aqueles que se dedicam à filosofia. O único livro de Wittgenstein, não por “simples gosto do

paradoxo”99, “transporta consigo a sua própria refutação e destruição.”100 O livro definitivo de filosofia implicaria, nas palavras da CE, a destruição “ […] com uma explosão, de todos os outros

livros do mundo.”101

Na CE a impossibilidade é relativa a um livro que, verdadeiramente, fosse sobre ética, no caso do TLP está em causa a impossibilidade de escrever o que mais importa. No

TLP a impossibilidade transforma-se em experiência produtiva do limite, na qual ao silêncio não

corresponde a inactividade ou apatia, mas a uma outra forma de vida ou, no caso da ética, da estética e do místico, a um sentimento do sujeito. No quadro do TLP, o silêncio é um elemento que suporta a sua estrutura proposicional e as suas conquistas, não é um silêncio qualquer, nem um silêncio total, mas fundamental102.

Numa carta a um potencial editor do TLP, Ludwig von Ficker, Wittgenstein afirma ser a ética o sentido de todo o TLP. E este sentido, determinante na leitura da obra, localiza-se na sua parte não escrita, não dita, e manifesta-se através do silêncio. A questão do estatuto da ética é central no caso do TLP porque a sua definição apresenta o bom modo de proceder relativamente aos assuntos mais importantes da filosofia: calar porque não se pode dizer mais que aquilo que as palavras, reguladas pelos princípios imutáveis da lógica, podem dizer. O silêncio referido por Wittgenstein é relativo a uma acção que “coloca tudo no seu devido lugar” [festgelegt]. Por isso é um silêncio fundamental, porque não é passivo ou indiferente, mas confere àquele que se cala e àquilo que se silencia o valor que resulta de uma correcta e intensa actividade de pensamento. O silêncio não é um ponto de partida, mas um elemento decorrente da procura, da pesquisa, e é a resposta a uma pergunta acerca das condições de possibilidade da linguagem e do pensamento.

99 Maria Filomena Molder, op. cit.

100 Roland Jaccard, L’enquête de Wittgenstein, 1998, p.57

101“If a man could write a book on Ethics which really was a book on Ethics, this book would, with an

explosion, destroy all the other books in the world.” CE, p.40

102 Sobre a possibilidade de uma estética do silêncio que implica compreender o silêncio, primeiro, como

possibilidade da vontade em negar e, segundo, como eloquência (por ser impossível realizar, conceptual e factualmente, o puro silêncio absoluto) veja-se o importante texto de Susan Sontag, The Aesthetics of

Silence, 1994. No qual a autora, referindo-se a Wittgenstein, Rimbaud e Duchamp, fala do ideal do silêncio como uma ausência que se constituí como abertura, como um elemento dialéctico que permanece elemento de diálogo e, se entendo-se o silêncio desta forma, pode falar-se da história da arte, da filosofia e da poesia “como uma sequência de transgressões bem sucedidas.” (p.8)

Nessa carta, de Outubro de 1919, Wittgenstein descreve e avalia da seguinte forma o projecto do TLP: “O sentido do livro é ético. Quis, em tempos, incluir no prefácio uma frase, que

de facto não está lá, a qual vou aqui escrever, para que possa ser para si uma chave do trabalho. Assim, o que eu queria escrever era: o meu trabalho consiste em duas partes – a que está presente e a que não escrevi. E é precisamente esta segunda parte a mais importante. Traço os limites à esfera ética a partir do interior do meu livro e estou convencido ser essa é a única forma rigorosa de traçar esses limites. Em suma, acredito que onde hoje muitos sussurram consegui no meu livro através do silêncio colocar tudo no seu lugar […] Por agora, recomendo-lhe a leitura do prólogo e da conclusão porque contêm a expressão mais directa do sentido do livro.”103

Não se trata de uma desconfiança relativamente à escrita, mas da indicação que o único modo [nur so] rigoroso de traçar os limites da ética [das Etische] é a partir do interior do TLP. E que sob a aparência de um livro de lógica, a ética tem o lugar decisivo, importante e crucial. Ao que Wittgenstein acrescenta que o modo encontrado para tratar o problema da ética não é através da linguagem, nem na linguagem, mas através do silêncio: neste está o que importa, aquilo que decide o sentido e as conquistas do livro. No TLP, bem como no possível livro de ética invocado na CE, pode encontrar-se a descrição de todos os factos observáveis no mundo, mas “este livro não conteria nada a que pudéssemos chamar juízo ético ou algo que logicamente

implicasse um tal juízo.”104 A ética no sentido quer da CE quer do TLP não é um facto, nem nada

de observável enquanto coisa do mundo, porque “a ética não é um estado de coisas.”105

De acordo com as próprias condições da dizibilidade estabelecidas no TLP, a ética é qualquer coisa que não se pode dizer. Logo, o central do “livro” é mantido na região do não-dito, o seu sentido ao ser ético está fora dos limites da linguagem e do pensamento com sentido.

103 “[…] der Sinn des Buches ist ein Ethischer. Ich wollte einmal in das Vorwort einen Satz geben, der nun

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