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A SUBLIMAÇÃO E OS IDEAIS

2.6 Pulsão de vida e pulsão de morte

2.6.2 A desfusão pulsional

Ao admitir a fusão das pulsões (FREUD, 1923/1996), Freud reconhece que a hipótese contrária – ou seja, a possibilidade das pulsões de vida e de morte se separarem – se impõe, cada uma seguindo seu objetivo e sua direção, que, como vimos, são opostos. Eros promove a união, a ligação em unidades cada vez maiores, visando o todo. A pulsão de morte, por sua vez, busca a fragmentação, o desmembramento em unidades cada vez menores. A pulsão de morte trabalha silenciosamente na busca do retorno ao estado inanimado, portanto, não é fácil encontrar para ela um representante. Quando endereçada ao mundo externo, pode, contudo, confirmar sua potência destrutiva através das manifestações agressivas e destrutivas contra os objetos externos. A pulsão agressiva é representante da pulsão de morte, para a qual o ódio aponta o caminho (Cf. FREUD, 1930/1996). As conseqüências da desfusão das pulsões vão depender da quantidade de força que pressiona em cada um dos lados, pois se tratam de quantidades diferentes e desconhecidas.

Freud, buscando compreender o processo de transformação do amor em ódio, quando ela sugere ser decorrente de uma desfusão pulsional, admite a existência de uma energia livre e deslocável que, por sua natureza, pode se somar a um impulso destrutivo ou a um impulso erótico, ambos os impulsos qualitativamente diferenciados. Quanto à existência inquestionável dessa energia neutra e deslocável, Freud supõe que ela seja “Eros dessexualizado”, proveniente do “estoque narcísico de libido”, pois suas observações mostraram que a pulsão erótica é mais plástica, podendo, portando, ser desviada e deslocada mais facilmente que a pulsão de morte (Cf. FREUD, 1923/1996, p.57).

A partir da nova tópica e da nova dualidade pulsional, Freud retoma o processo de identificação ao objeto investigado no texto sobre o narcisismo. O id efetua seus primeiros investimentos objetais à revelia do eu, que ainda está em formação. O eu se constitui a partir da diferenciação do id, tentando se apoderar da energia investida nos objetos pelo id e convertendo-se em seu objeto de amor. Desse modo, o eu desvia para si a energia investida nos objetos sexuais, operando uma dessexualização da pulsão, ou seja, a transformação da libido de objeto em libido narcísica. Esse processo descreve a dessexualização ocorrida na sublimação. A energia dessexualizada resultante do processo constitui o estoque de libido do eu, pronta para ser reinvestida. Freud observa que a energia dessexualizada preservaria de Eros a “capacidade de unir e ligar” (FREUD, 1923/1996, p.58), e, por outro aspecto, o eu, ao agir assim, está trabalhando contra os objetivos de Eros e colocando-se a favor da pulsão oposta, a pulsão de morte (Cf. FREUD, 1923/1996, p.58). Pode-se concluir que o eu não é imparcial com as duas classes pulsionais: “Mediante seu trabalho de identificação e sublimação, ele ajuda os instintos de morte do id a obter controle sobre a libido, mas, assim procedendo, corre o risco de tornar-se objeto dos instintos de morte e de ele próprio perecer.” (FREUD, 1923/1996, p.69).

Para ocorrer a substituição dos objetos, a pulsão tem que se desligar dos objetos aos quais se encontra fixada; esse processo, que é o mesmo da identificação, se repete indefinidamente na sublimação, acarretando, como vimos, uma desfusão pulsional que resulta no acréscimo de pulsões destrutivas no supereu. O eu, ao se colocar como objeto, impede a proteção à vida proporcionada pelo endereçamento da pulsão de morte ao mundo externo. O supereu, como lugar das pulsões de morte, é fortificado na desfusão pulsional, pois o componente destrutivo, ao se entrincheirar no supereu, pode se voltar contra o eu, expondo-o a maus-tratos e morte (Cf. FREUD, 1923/1996, p.60). O desligamento das conexões com os objetos, para possibilitar a mudança radical de meta e de objeto, expõe o eu ao risco de tornar- se objeto das pulsões de morte e acabar por se extinguir (Cf. FREUD, 1923/1996, p.69).

Freud aponta três destinos possíveis para a pulsão de morte:

Os instintos de morte são tratados no indivíduo de diversas maneiras; em parte são tornados inócuos com sua fusão com componentes eróticos; em parte são desviados para o mundo externo sob a forma de agressividade; enquanto que em grande parte continuam, sem dúvida, seu trabalho interno sem estorvo (FREUD, 1923/1996, p.66).

Podemos, então, vislumbrar o perigo do que se anuncia para a sublimação, em especial, para os processos mais comprometidos com a novidade e a criação e para aquele sujeito cujo supereu é constituído aos moldes do supereu sádico do melancólico. A reserva libidinal do eu, como vimos, quando em luta com um supereu sádico, encontra-se geralmente depauperada. O eu pode não ser capaz de superar qualquer reforço que venha a se somar ao campo oposto, dando-se por vencido. O destino sublimatório, nessas condições, consiste num processo angustiante, dispendioso e dependente da estrutura do eu. Sem a fusão com Eros, a pulsão de morte, de difícil domesticação, “fica com as mãos livres para realizar seus objetivos” (FREUD, 1923/1996, p.60):

A transformação da libido do objeto em libido narcísica, que assim se efetua, obviamente implica um abandono de objetivos sexuais, uma dessexualização

– uma espécie de sublimação, portanto. Em verdade, surge a questão, que merece consideração cuidadosa, de saber se este não será o caminho universal à sublimação, se toda sublimação não se efetua através da mediação do ego, que começa por transformar a libido objetal sexual em narcísica, e depois, talvez, passa a fornecer-lhe outro objetivo (FREUD, 1923/1996, p.43).

Se este é o caminho universal às sublimações, só uma longa e extensa investigação poderia responder. Pretendemos, entretanto, verificar em alguns casos e situações os efeitos do que Freud revela nessa formulação, em especial as conseqüências da desfusão pulsional na sublimação para o sujeito.